Arthur Friedenreich, El Tigre

De como o fabuloso Friedenreich, um fogoso mulato de olhos verdes,se fez passar por branco e marcou tantos gols que até ele acabou perdendo a conta.

OS 1239 GOLS DE "EL TIGRE"

Carlos Maranhão

Publicada numa revista Placar da primeira metade da década de 80. Infelizmente as páginas foram arrancadas da revista e nao dá para saber exatamente a data da publicação.

Um craque maior que Pelé? Mais fino do que Di Stefano? Mais boemio do que Heleno? Do grande Friedenreich se diz tudo isso e muito mais. Com suas façanhas, comeca uma nova série: as lendas e mistérios do futebol brasileiro.

Uma dúvida terrivel desafia os raros historiadores do futebol brasileiro há quase meio seculo, quando a genialidade do grande Arthur Friedenreich comecou a entrar num lento e patético processo de decadência que, anos depois, terminaria por levá-lo a se esquecer do seu próprio nome. Talvez a incerteza nunca venha a ser suficientemente esclarecida. Pois quem é capaz de provar, de modo irrrefutavel, quantos gols marcou em sua carreira, que atravessou quatro décadas, esse bailarino mulato de olhos verdes, cabelos alisados e pés magicos?

Ninguém, provavelmente. O registro de seus incontáveis gols - que se acredita terem ultrapassado de muito a barreira dos mil - foi levado por um caminhão de lixo da Prefeitura de Santos, em 1962, entre restos apodrecidos de comida, latas vazias e papéis inúteis. Perdido, portanto, para sempre.

Suas glórias e façanhas, que hoje poderiam fazer parte da memória da cultura nacional, transformaram-se então numa coleção de lendas fantásticas e numa antologia de histórias maravilhosas. Se houvesse meios de recuperar tais registros, Friedenreich sem duvida se consagraria perante a posteridade como o maior jogador que o mundo conheceu antes do aparecimento de Pelé.

Dentro e fora do Brasil, no entanto, nao falta quem ainda lhe reconheça tamanha grandeza. No ano passado, por exemplo, uma respeitada obra de referência sobre o futebol - The Encyclopedia of World Soccer, editada nos Estados Unidos por Richard Henshaw - dedicou-lhe um espaço igual ao do argentino Alfredo Di Stefano e maior do que o do holandes Johann Cruijff, figuras obrigatórias em qualquer relação das principais estrelas do esporte neste século. Lá está a definição, com todas as letras: "Foi o maior artilheiro da história do futebol, com seus 1329 gols".

É uma imprecisão, infelizmente. A propagação do equívoco se deve a um pequeno deslize cometido pelo jornalista carioca João Maximo no apaixonante texto sobre Friedenreich que escreveu no livro "Os Gigantes do Futebol Brasileiro", publicado no Rio de Janeiro, em 1965. Ele assegurou, baseando-se nas pesquisas do veterano jornalista Adriano Neiva da Motta e Silva, o De Vaney, que Friedenreich teria marcado os 1329 gols, devidamente registrados na ex-CBD e reconhecidos pela FIFA.

Seria realmente um imbatível recorde mundial, mesmo porque Pelé completou a inalcançável marca de 1284 gols, esses sim, registrados e reconhecidos. Houve aí, além do mais, uma troca de algarismos. Segundo De Vaney, que em 55 anos de trabalho reuniu mais de 30 mil fichas sobre futebol - o que lhe permitiu, entre outras coisas, precisar o momento da marcação do milésimo gol de Pele' -, Friedenreich disputou 1329 jogos. E assinalou 1239 gols. De Vaney, pessoalmente, tem absoluta confiança nos resultados das duas estatísticas. Só que nao pode comprová-las.

A história desses numeros começa, a rigor, junto do sucesso do próprio Friedenreich. Tao logo percebeu seu talento para jogar com bola de capotão em peladas improvisadas nas ruas mal calçadas do bairro paulistano da Luz - onde nascera a 18 de julho de 1892, na esquina das ruas Vitória e Triunfo, nomes que profetizaram seu destino esportivo -, o comerciante alemão Oscar Friedenreich resolveu acompanhar de perto os passos do filho.

O futebol, que continuava uma novidade, fora trazido ao Brasil em 1894 pelo estudante paulista Charles Miller, de volta de uma viagem de dez anos à Inglaterra. Praticado a princípio nos ambientes fechados dos chamados clubes elegantes de São Paulo e do Rio de Janeiro, sobretudo os que congregavam colonias estrangeiras, nao demorou para que o jogo se difundisse nas várzeas. O futebol, de qualquer maneira, custou a se popularizar. Clubes como América, Fluminense, Rio Cricket, Germania, Paulistano e São Paulo Athletic, que participaram dos campeonatos principais das duas cidades, tinham entre seus jogadores apenas filhos de boas famílias, com título de doutor e pele invariavelmente branca.

Isso poderia ser um obstáculo para o jovem Arthur Friedenreich, que herdara da mãe, uma lavadeira mulata, as características raciais que fizeram dele um mestiço. Mas nao foi. Com 17 anos incompletos, arranjou uma vaga no time do Germania, onde receberam sem problemas aquele rapaz magricela de jogo habilidoso e de cabelos que lembravam os de um europeu. Embora fossem naturalmente ondeados, ele os alisava com pacientes aplicações de gomalina, uma espécie de brilhantina, e de toalhas quentes. Tratava-se de um processo demorado, mas eficiente: Friedenreich, sempre o último a entrar em campo, por causa dos cuidados com o penteado, chegou a ser considerado um branco. Bronzeado, porém branco. Foi o preço que pagou para que lhe fossem abertas as portas do nascente e elitista futebol brasileiro. Agora não mais um mulatinho de um bairro da baixa classe média, eis Friedenreich fazendo gols em cima de gols pelos clubes por onde passava: Mackenzie, Paulistano, Germania outra vez, e bem depois São Paulo e Flamengo.

Pai cioso, o velho Oscar, que nunca perderia o sotaque, comecou a anotar os gols de seu filho, selecionando as súmulas dos jogos, e não se cansava de comentar com os amigos: "Pézinho de Arthur vale ourrrro..." Prosseguiu anotando até 1918, quando Friedenreich, já maduro e famoso, transferiu-se para o Paulistano, o aristocrático clube do Jardim América em que ele viveria os mais fulgurantes e inesquecíveis momentos de sua carreira. A partir daí, passou a incumbência a um de seus novos companheiros de equipe, Mario de Andrade, que nao era parente de seu homonimo escritor. Mario, que logo se tornaria seu amigo, cumpriu a missão ao longo de 17 anos.

Enquanto cada um de seus jogos ia sendo documentado, Friedenreich projetava-se como uma celebridade nacional, dimensão que atingiu durante o Sul-Americano de 1919, realizado no Rio. Tudo contribuiu para que ele virasse ídolo do país inteiro: suas belíssimas atuações, o gol histórico na segunda prorrogação da final contra o Uruguai e, como pano de fundo, o crescente entusiasmo popular pelo futebol, que virava uma paixão brasileira. Com a vitória da Seleção e a inauguração do estádio do Fluminense, palco do campeonato, o público das grandes partidas passou de 4 mil para 20 mil espectadores.

Amador-marrom, pois o profissionalismo só seria oficializado em 1933, Friedenreich - chamado durante o Sul-Americano, pelos jornalistas argentinos e uruguaios, de "El Tigre" e de "El namorado de la America" - resolveu desfrutar de um outro tipo de vida. Vestia com aprumo seus ternos de linho irlandês S-120, bebia sua cerveja Sul-América, sorvia a noite seu conhaque francês na Confeitaria Vienense, perfumando o ambiente com o suave aroma de sândalo que se desprendia dos caríssimos cigarros "Pour la Noblesse", percorria os cabarés da madrugada paulistana e, naturalmente, acordava tarde no dia seguinte. No vestiário, enquanto esperava que a gomalina secasse nos cabelos, nao dispensava um traguinho. E alguém se importava? Magro (52 kg), alto (1,75 m), ágil, sutil, inteligentíssimo, com uma habilidade desconcertante, ele exibia preparo físico suficiente para jogar o futebol que se praticava naqueles anos românticos. Mesmo no fim da carreira, obrigado a enfrentar zagueiros violentos como Zezé Moreira, nao lhe faltou jamais jogo de cintura para fugir dos pontapés. Ou para marcar centenas e centenas de gols.

Quantos, precisamente? "Veja aqui, foram 1239", Mario de Andrade revelou um dia ao jornalista De Vaney, mostrando-lhe 1329 sumulas. De Vaney ficou excitado com a descoberta, pois ali estavam transcritos os detalhes técnicos não apenas de partidas oficiais, de campeonatos, como também dos inúmeros amistosos que Friedenreich disputou por vários clubes, no Brasil inteiro, para ganhar dinheiro. Mas Mário de Andrade preferiu não entregar imediatamente o tesouro para o jornalista. Pretendia rever tudo e, depois sim, passaria o material para suas mãos, esperando que ele divulgasse os números e os registrasse na FIFA e na CBD. Alguns dias após essa conversa, Mário de Andrade morreu. De Vaney, passada uma semana, procurou a viúva. Era tarde. Apesar de uma busca exaustiva pela casa inteira, os papéis nunca mais foram localizados - haviam sido despejados no lixo, pois a familia, desinteressada em futebol, achou que eram coisa velha e sem serventia.

Mesmo assim, De Vaney publicou - sem provas - os resultados de sua descoberta no jornal Tribuna de Santos. Houve repercussoes e desmentidos, o maior deles partindo do lendario Thomaz Mazzoni, o Olimpicus de A Gazeta Esportiva, de São Paulo. Só uma pessoa poderia esclarecer o mistério. Foram encontra-la em sua casa, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Ele respondeu às perguntas com palavras vagas, os olhos verdes sem vida voltados para um ponto indefinido, as mãos esfregando os cabelos impecavelmente alisados. Morreria alguns anos mais tarde, a 6 de setembro de 1969, sem se lembrar de seus gols, de suas glórias e de seu nome: Arthur Friedenreich.


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Atualizado em 23/dez/2004.

Mauro Prais
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