A Evolução Tática do Futebol

UM TEXTO DE JOÃO SALDANHA


Preâmbulo

Na Boca do Tunel Em 1968, dois anos antes do Brasil cumprir a vitoriosa campanha que culminou com a conquista definitiva da Copa Jules Rimet no México, foi lançada uma obra única na nossa parca literatura esportiva: Na Boca do Túnel, um livro publicado pela hoje extinta Livraria Editora Gol, apresentando depoimentos por parte de nada mais, nada menos, que os trinta e três técnicos mais em evidência no futebol brasileiro na época. A apresentação do livro ficou a cargo do então comentarista e colunista esportivo João Saldanha. Como se sabe, em 1969, meses depois do lançamento deste livro, João Saldanha assumiu a direção técnica da seleção brasileira para levá-la à classificação nas eliminatórias da Copa, no que foi a arrancada para o tricampeonato mundial.

Achamos que o texto de apresentação merece ser divulgado, levando-se em consideração a sua qualidade didática; o seu estilo, bem característico de João Saldanha; o fato de ter sido escrito num momento crítico do futebol brasileiro, que tentava encontrar caminhos de recuperação do fracasso de 1966; e, finalmente, que Na Boca do Túnel encontra-se fora do prelo há muito tempo, podendo-se inclusive afirmar que atualmente constitui-se numa raridade.

Salientamos que a maioria dos textos do livro são também bastante instrutivos (destacando-se, ainda no tema da evolução do futebol brasileiro, o de Flávio Costa), mesmo nos casos em que houve perda de atualidade. Todavia, por vários motivos, não consta dos nossos projetos a divulgação deles.

Mauro Prais



NA BOCA DO TÚNEL

APRESENTAÇÃO

João Saldanha

Este livro marca uma importante etapa do futebol brasileiro: pela primeira vez, os mais renomados treinadores do futebol brasileiro juntam-se para opinar ou expor idéias. Mais do que em qualquer outra época, estão se fazendo cada vez mais necessários o debate, a discussão e a divulgação de idéias sobre o treinamento de futebol e seus problemas.

O treinamento do futebol, sua tática e preparação, històricamente, está dividido em 4 épocas nìtidamente marcadas: antes da primeira lei do impedimento, depois do surgimento desta lei, o surgimento da segunda lei de impedimento e o surgimento da medicina esportiva e da preparação física dos jogadores.

Como muitos sabem, a lei do impedimento foi determinante das diferentes táticas e formações de jogo. Antes dela, apenas havia jogadores que corriam ou ficavam parados dentro do campo, sem posições definidas. O futebol era feio e esteve a ponto de sucumbir como jogo ou competição porque não tinha graça. Não adiantava ser um bom jogador, que soubesse driblar e dominar a bola, porque um perna-de-pau qualquer, cômodamente encostado perto a uma das balizas, esperava a bola chegar e fazia o gol que dava tanto trabalho ao outro que era bom jogador. O fato de não existir "off-side" levava a que um grupinho ficasse perto de um gol e outro lá do outro lado também esperando a bola. O resultado era que não adiantava ser superior. Mas os estudiosos do assunto, em 1896, modificaram esta situação. Resolveram que "um jogador para receber uma bola deveria ter pela frente pelo menos três adversários". Isto foi uma autêntica revolução no futebol e principalmente na sua tática de jogo. E surgiu pela primeira vez uma definição de posições. Tão clássica que até hoje é vulgarmente usada em vários países. Trata-se daquela do "gol keeper", os dois "backs", os três "half-backs" e os cinco "forwards". Claro que havia as subdivisões das posições, tais como "back" direito, esquerdo; "half" direito, "center-half", etc. Esta organização de jogo foi apresentada em primeiro lugar por dois clubes ingleses, o Nottingham Forest e o Blackburn Rovers, e o sistema de jogo, também conhecido por 2-3-5 durante muito tempo e de acordo com as simpatias, adotava o nome daqueles dois clubes.

Mas o tempo passou e este sistema dos dois "backs" foi superado. Por quê? Porque tinha uma falha séria que impedia o jogo de se desenvolver. Impedia que a principal condição de um jogador de futebol pudesse prevalecer: o talento. Sim. De acordo com a lei, dois beques sabidos paravam todo o ataque adversário. Lógico, se a lei dizia que o atacante, para receber uma bola, necessitava ter pelo menos três adversários pela frente, bastava que um dos zagueiros se adiantasse, no momento do lançamento, para que todo um ataque fosse destruído. Foi assim que surgiu a antiga nomenclatura de "beque-espera" e "beque-avança". O "avança" adiantava-se e liquidava todo o mundo. O ataque tentou defender-se desta artimanha e formava em linha porque a lei também dizia que se o atacante estivesse atrás da linha da bola não estava impedido. Foi por isto, inclusive, que os atacantes ficaram sendo chamados de jogadores da "linha". Mas a artimanha dos beques levava a melhor e enfeiava o jogo. Dois becões, mesmo "grossos", paravam com facilidade os mais hábeis atacantes. Isto era uma contrariedade ao que há de mais puro no futebol - e o que mais deve ser defendido: o talento. Sempre o talento, que é o que desenvolve o futebol e apaixona a multidão. Por esta imposição, a lei teve novamente de ser modificada fazendo surgir a mais importante etapa do futebol.

Reuniram-se os mentores do futebol e decidiram que a nova lei seria a seguinte: "Está impedido todo aquele jogador que, do meio do campo para a frente, não tenha pela frente pelo menos dois adversários". Claro que a lei também tem algumas particularidades, mas a sua essência é a questão dos dois homens necessários para dar condição de jogo. E tudo teve de ser modificado, pelo menos onde a lei foi imediatamente compreendida. Surgiu então a necessidade de mais um zagueiro. Dois só não bastavam. Aqueles dois espertalhões agora tinham também saber que jogar bola. Não bastava o artifício de um deles adiantar-se. Para deter o ataque era preciso que os três beques se adiantassem ao mesmo tempo, e deixassem apenas o goleiro entre o atacante que iria receber a bola, para colocá-lo em impedimento. Mas essa era uma manobra perigosíssima. Antes era feita por um só. Agora teria de ser feita por três, numa fração de segundos. Um que ficasse parado e tudo iria água abaixo. Não deu certo a tática de colocar intencionalmente em impedimento o adversário e o responsáveis tiveram que pensar em outras manobras ou táticas de jogo. Tanto na defesa como no ataque. Um homem chamado Chapman craniou o famoso WM como a melhor disposição e distribuição dos jogadores dentro da cancha. O jogo agora tinha que ser disputado em todas as partes do campo. Onde não tivesse ninguém tomando conta, o adversário se apoderava daquele lugar, porque, embora não fosse perto da zona de gol, era entretanto um excelente ponto de partida para uma jogada. Do WM surgiram, sem exceção, todos os sistemas de jogo postos em prática hoje. O 4-2-4, o 4-3-3, o 5-2-3 e outros. Sistemas estes que foram aparecendo em virtude da luta travada entre a marcação e a necessidade de se desmarcar. Os jogadores, de acordo com as suas características, vão tomando posições no campo que lhes favoreça o jogo. Assim, o Zagallo preferiu ficar não muito avançado nem muito recuado para poder jogar. Seu físico e seu talento o levaram a isto. O Ademir, que era meia-armador, lançava-se mais a frente como ponta-de-lança. O Perácio também fez isto. Era meia-esquerda do Botafogo, mas aparecia sempre em velocidade na área para finalizar.

Aí já não foi mais a lei do impedimento que levou a modificações táticas. Quando o Perácio ou Ademir vinham lá de trás, em alta velocidade, chegavam na zona de chute e formavam quatro atacantes com os que lá estavam. Como o WM só tinha três zagueiros, houve necessidade de recuar mais um, ficando, assim, quatro homens na retaguarda. Mas, por que jogadores, antes da época do Perácio e do Ademir, também não avançavam em alta velocidade, vindos do meio-campo para a ponta de lança? O que impedia isto? Do ponto de vista das leis do jogo, nada. Rigorosamente nada. Apenas um pequeno detalhe: se antes da época do Perácio e do Ademir alguém fizesse isto, cairia morto de cansaço. O Ademir e o Perácio cansavam, é certo. Mas muito menos. É que eles representam uma nova etapa do futebol: a do profissionalismo, onde o jogador não é apenas um futebolista na acepção da palavra, mas um futebolista e atleta, formado em toda a extensão. A medicina foi se especializando e os métodos de ginástica se aprimorando. O que era feito em ritmo lento se transformou totalmente. O material esportivo é aprimorado todos os dias e tudo isto conduz a estudos que não podem ficar atrasados. Se participamos bisonhamente de competições em épocas antigas, foi por atraso técnico. Um exemplo? Jogamos a Copa do Mundo de 1938 com dois zagueiros, quando a lei de impedimento já havia sido modificada há quatorze anos atrás.

Hoje, o futebol, como tudo aliás, evolui a passos gigantescos. A capacidade de resistência dos jogadores, sua habilidade com a bola, estão criando situações inteiramente novas em relação as posições clássicas dos sistemas, que estão sendo levados de roldão pela prática do jogo. Um jogador para ser eficiente tem que saber jogar em várias posições. Tem que saber defender e atacar, e qualquer sistema moderno que pretenda ser eficiente tem de compreender que não pode ser rígido. Antes, quando um jogador invadia a posição de outro companheiro, levava logo uma bronca: "Cai fora, aqui você atrapalha. Vá para sua posição". E o treinador apoiava esta réplica. Um jogador que disser isto hoje não merece entrar no campo. O futebol, comparativamente, esta caminhando para os rumos do basquete: todos jogam de tudo, menos o goleiro. Em sua evolução vertiginosa, apoiado pela ciência, está agora desafiando diàriamente os técnicos. Aquele que estagnar ficará superado.

Por isso a importância deste livro, que abre caminho para que os técnicos saiam de seus mistérios e venham a campo livre debater suas concepções, suas táticas, suas idéias.

Estamos mais do que nunca precisando disto. O futebol é arte popular. Isto é sabido por todos. Mas no Brasil é mais: É arte e paixão popular. Não podemos continuar atrasados.

Rio de Janeiro, 1968

Joao Saldanha


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Atualizado em 16/fev/1999.
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Mauro Prais
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