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Pai Santana queria morrer no campo, conta viúva


Quinta-feira, 03/11/2011 - 13:42

Já conversava há mais de 20 minutos com a viúva de Pai Santana quando um funcionário do Vasco se aproximou. Era o massagista do profissional. O nome dele só vim a descobrir no site do clube, embora sempre o veja em São Januário.

- Com licença, eu sou massagista do Vasco. Cheguei aqui para fazer estágio em 1997 e seu Santana me recebeu, me ensinou muita coisa. Vim trazer meus sentimentos e dizer que todos nós aprendemos muito com ele – disse Curumim, apelido bem apropriado para entrar nas histórias lendárias de Santana.

Dona Carmen, que se levantou para falar com o massagista, se emocionou mais uma vez e voltou a se sentar para me contar mais história. Lembrou como eles se conheceram. Era 1969, os dois estavam no ônibus e iam para Jacarepaguá, zona oeste da cidade, onde moravam. Aquele negão, gordo, e ela, uma morena “gostosa”, segundo palavras da senhora.

- Ele ficou me encarando. E eu, que sempre fui metida a gostosa, pensei: ‘esse negão vai se mancar que sou muita carne seca pro feijão dele.’

Dois ou três dias depois eles se encontram na mesma linha de ônibus. Desta vez, Eduardo Santana (nome do Pai) a acompanhou até o trabalho, mas antes deixou cair um bilhete com o número do telefone no colo de Carminha. “Vai me ligar, morena?”, perguntou Pai.

- Quando cheguei no trabalho, todo mundo viu ele atrás de mim. Começou aquela gozação. ‘Vai encarar o negão é?!’

Ela ligou, eles começaram a sair e ficaram juntos 41 anos, até a manhã de ontem, no Hospital Central do Exército. Pai Santana era militar reformado. Foi também boxeador e era o mais famoso macumbeiro do futebol brasileiro. Foi graças a um “trabalho”, aliás, que o Vasco uniu o casal. Carminha era vascaína fanática, mas Santana ainda trabalhava no Fluminense.

- Eu ia para o jogo e xingava ele, xingava o Fluminense. Eles sempre foram freguês do Vasco. Aí no dia 4 de abril, o João Silva (dirigente do Vasco) chamou Santana para ir o escritório dele. Era para ele assinar com o Vasco, fazer um ‘trabalho’, o time não era campeão há sete anos – lembrou ela. Na verdade, o Vasco não era campeão carioca há 12 anos, mas vencera o Rio-SP de 1966.

Nisso, o namoro já tinha engatado e Santana comprara para Carminha um apartamento todo mobiliado em Copacabana. Ela nada de ir morar lá.

- Quando ele me ligou e disse que estava indo para o Vasco combinamos de nos encontrar em Copacabana. Daquele dia em diante nunca mais nos separamos.

As interrupções, no máximo, foram por causas sérias, mas nada nobres. Como na Guerra do Golfo, quando Santana trabalhou no Kwait. Ela não se adaptou muito ao Oriente Médio. Quando o Iraque invadiu o país onde Pai trabalhava, ele estava na Espanha, em excursão, e nem voltou para a casa.

- A nossa janela era de frente para o quartel. Aquilo tudo lá foi bombardeado – contou ela, que se divertiu ao lembrar como os árabes também o reverenciavam – Era impressionante, ele fazia igualzinho aqui, beijava a bandeira, se ajoelhava: ‘Santana, Santana’ – cantou Dona Carmen, tentando fazer um sotaque árabe.

No último mês de internação, o danadinho do Pai (“era cheio de graça com a minha irmã, se conhecesse ela antes eu estava lascada”) tinha pouca saúde. Quando o Vasco foi campeão da Copa do Brasil, cerrou os punhos, vibrou discretamente. Carminha disse que ele às vezes nem queria mais ver os gols do time, que sentia muita falta do dia a dia do clube, onde chegou em 1953. No hospital, Dona Carmem ainda brincava com ele.

- Ainda ontem (véspera da morte), a enfermeira deu banho nele, aí mexi com Santana: ‘Já está de paquera, né, olha que ainda sou ciumenta.’ Por incrível que pareça ele deu um sorriso no canto da boca – lembrou, com carinho e emoção. Era o pouco que ele conseguia fazer. O AVC de 2006 deixou Pai na cadeira de rodas e já com nível de consciência bem baixo.

Dona Carmem lembrou que queria levar o Pai para algum jogo, mas tinha medo do sol, tinha preocupação normal com a saúde já debilitada do marido, temia a chuva.

- E foi logo uma pneumonia que levou ele. O me deixou para morrer é que ele tinha melhorado. Não esperava que ele fosse ficar bom, mas imaginei que ele fosse morrer em casa, sair do hospital. Por ele, morria no campo. Ele sempre disse: ‘Quero morrer no campo.’

Não preciso nem dizer que o Pai, que voltou do Oriente Médio muçulmano, rezou como um deles e desistiu depois de duas derrotas do Vasco (“esse negócio deles só serve lá, vou voltar para a macumba”) ficou na memória de todo garoto, que nem eu, que entrou em São Januário, que viu no Maracanã, aquele senhor negro, todo de branco, ajoelhar e beijar a bandeira do Vasco. Não preciso nem dizer que Pai é mais um símbolo imortal do Vasco.


Uma funcionária do Vasco chora na despedida do Pai. Foto de Raquel Vieira.


Fonte: Yougol