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Vascaínos falam sobre confrontos contra o Urubu
Domingo, 28/08/2011 - 11:32
Acima de qualquer rivalidade, o Cristo funciona como guia do torcedor. Situado a 6km da Gávea e a 11km de São Januário, o monumento estende uma mão para o Flamengo e outra para o Vasco, que se enfrentam, hoje às 16h, no Engenhão. Na realidade terrena e gramada do futebol, transformar confronto em comunhão é tarefa para os mais elevados. Novamente no alto da tabela, os times afirmam a importância capital do Rio no Brasileiro. O próximo passo é recuperar o bom humor para transformar intolerância em festa. Mais do que resultados e a obrigação de vencer a qualquer custo, ficam as boas lembranças para quem esteve nos dois lados do clássico.
— Acabou o jogo é paz e amor. Tem que saber levar na sacanagem — disse o ex-zagueiro Júnio Baiano, que não tinha a mesma serenidade nas caçadas a Edmundo. — A gente era igual cachorro de briga. A torcida do Flamengo é que me agitava. Quando gritava meu nome, não podia perder uma. Se minha mãe estivesse do outro lado, eu ia correr atrás do meu.
Gentileza e pancadaria
Se chegarem à última rodada do segundo turno na situação atual, Vasco e Flamengo podem disputar o título como jamais fizeram. Quando as semifinais eram disputadas em sistema de grupos, um eliminou o outro antes da final. Em 1997, após empate em 1 a 1, Edmundo comandou o baile com goleada por 4 a 1. Cinco anos antes, Júnior Baiano afiava a sua tesoura voadora para conter o Vasco. Aos 41 anos, guarda com carinho os recortes do confronto animal com Edmundo e com um bom cabrito que trazia o berro no nome:
— O Bebeto era uma dama. A gente chegava forte, e ele ainda pedia desculpas.
Entre algozes e vítimas, a inversão de papeis foi a marca daquela semifinal em que o Vasco teve posse de bola e chances de liquidar o rival. Numa delas, Cássio entrou livre, a armou a bomba fatal e... sofreu uma distensão. Após empate em 1 a 1 e derrota por 2 a 0, a superioridade vascaína escorreu pelas mãos do goleiro Régis, que falhou em dois gols quase iguais de Júnior. Havia algo de sobrenatural no ar até a última rodada quando o Flamengo precisava vencer o Santos e torcer para o Vasco ganhar do São Paulo.
— Ganhamos de 3 a 0 daquele timaço do meu querido Telê Santana — conta o então técnico vascaíno Nelsinho, que foi vaiado após rara exibição de futebol e ética. — A torcida me xingava de flamenguista.
Apesar da conquista do Brasileiro de 1989 em São Januário, Nelsinho é lembrado como um rival de respeito. Regente do meio-campo rubro-negro ao lado de Carlinhos nos anos 60, ainda escuta os ecos da ópera do Maracanã.
— Lembro de uma vitória nossa de virada por 4 a 3, com três gols do Aírton Beleza. O Vasco tinha um uruguaio Danilo Menezes, que era meio metido a intimidar, mas não me lembro de ter pedido para eles — recorda Nelsinho, um exemplo de que nem sempre é uma questão de força. — Fiz um gol de fora da área no Marcelo que foi o maior frango da história. A bola saiu tão fraca que eu dei as costas já voltando quando ouvi o grito da torcida. Só vi o gol depois no videotape.
Por estarem gravadas na memória afetiva, as reminiscências dispensam imagens.
— Como nossa carreira é muito curta, o que ficam são as amizades e as histórias. Se a gente senta para conversar, tem papo para o dia todo — diz Andrade, campeão brasileiro por Flamengo e Vasco. — Passar pelo clássico era tirar o documento de que o menino tinha virado homem.
O batizado se deu num período sagrado em que os dois times eram comandados por seus maiores ídolos. Acompanhados desde os juvenis no início dos anos 70, Zico e Roberto Dinamite eram rivais que jogavam juntos para atrair multidões. Ao lado de Tita, Júlio César e Adílio, Andrade chegou na segunda metade da década. Do lado vascaíno, seus contemporâneos eram Dudu, Wilsinho e Guina, mas o maior confronto era entre gerações. Sete anos mais velho, o saudoso lateral vascaíno Orlando Lelé saía do sério com a ousadia dos dribles de Júlio César, conhecido como Uri Geller em alusão ao médium que entortava talheres na TV.
— O Júlio César gostava mais de driblar do que de fazer gols, e o Orlando entendia isso como ofensa. O Julinho dava um drible, virava para o banco e dizia: “passou lotado” — conta Andrade, sobre a brincadeira que não perdeu a graça nem quando virou ameaça. — Um dia, Orlando jurou que ia dar no meio dele. Quando o clássico se aproximava, a gente já brincava: “Essa semana tem Orlando”.
Andrade entendia o sofrimento de Orlando. Obrigado a marcar Roberto Dinamite, recorria aos bicos no tornozelo. Apesar das marcas pelo corpo, o atual presidente vascaíno tem o coração livre de mágoas. Além das defesas, Zico e Roberto costuravam uma rivalidade com laços de família.
— No juvenil, nossos pais sentavam juntos no Maracanã. Depois, nos encontrávamos no estacionamento — recorda Roberto.
Herdeiros de Zico e Roberto, Bebeto e Romário inauguraram uma era em que um clube passou acolher o talento formado no outro. Júnior Baiano era reserva do Vasco na goleada por 5 a 1 sobre os rubro-negros na final da Taça Guanabara de 2000 e só pensava em acabar o jogo para debochar dos ex-companheiros. Até o início dos anos 80 jogar em times diferentes era viver em mundos paralelos. Sem conhecê-lo, Roberto não gostava do jeito de Júnior. Com Zico, por serem capitães, apenas se cumprimentavam antes do jogo. Não havia palavras para demonstrar o respeito.
— Sem falar mal um do outro, a gente nunca levou menos de 100 mil ao estádio. Com o tempo, fomos ficando amigos. Foi muito legal essa coisa familiar — disse Roberto.
A coragem de Lopes
As rusgas ficam em casa. Para conquistar seu primeiro título carioca em 1982, Antônio Lopes comprou uma briga eterna.
— Até hoje o Mazzaropi não fala comigo — disse, referindo-se ao goleiro, um dos seis titulares barrados às vésperas da decisão em que o Vasco venceu o Flamengo, então campeão do mundo, por 1 a 0, gol de Marquinho.
No último jogo do returno, apenas para cumprir tabela, Lopes testou as mudanças com vitória por 3 a 1 sobre o Flamengo. O apoiador Ernâni, que fez um gol ao passar a bola entre as pernas de Mozer, foi mantido no lugar de Dudu. Acácio, Galvão, Ivan e Jérson, “com jota”, na ressalva de Lopes, ganharam as posições de Mazzaropi, Rosemiro, Nei e Palhinha. Reunido com o time no centro do campo, foi perguntando se alguém tinha algo a dizer sobre as mexidas. Apenas Palhinha se manifestou: “O senhor já devia ter me tirado antes, porque eu não estou jogando nada faz tempo”.
A situação, relatada por Lopes, lembra que a coragem e o bom humor são indispensáveis no clássico. A experiência de quem já saiu do calor da disputa também ajuda a entender a importância da instituição. Com o tempo, a tentativa de eliminar o rival se mostra autodestrutiva. Nos relatos dos apóstolos de Flamengo e Vasco, percebe-se que um não vive sem o outro. De braços abertos, na posição de goleiro, o Cristo joga na defesa dos melhores momentos do futebol do Rio.
Fonte: O Globo