Conheça a história do enganador Carlos Kaiser e sua passagem pelo Vasco
Domingo, 08/05/2011 - 18:57
A bola nunca foi uma das suas melhores amigas. Mas ele era craque em se relacionar com algumas estrelas do futebol brasileiro. A vida de Carlos Henrique Raposo, mais conhecido como Kaiser, é digna de um filme de Hollywood. Por mais de 20 anos, ele fez parte do elenco de grandes clubes brasileiros. Foi para a França, passou pelos Estados Unidos, fez uma escala no México... sem praticamente ter entrado em campo para uma partida oficial. Entre alguns amigos, ele é conhecido como o Forrest Gump do futebol brasileiro. Apesar da sua história estar mais para outro sucesso do cinema americano... "Prenda-me se for capaz".
Aos 48 anos, Carlos Kaiser atualmente mora no Flamengo, no Rio de Janeiro. E depois de muito tempo resolveu revelar as suas histórias. No currículo, passagens por Botafogo, Flamengo, Vasco, Fluminense, América, Bangu, Palmeiras, Ajaccio...
– Pinóquio perdia. Pior do que cara de pau, esse rapaz é o maior 171 do futebol brasileiro - brinca Ricardo Rocha, um dos amigos de Kaiser.
A estratégia do suposto atacante para enganar dirigentes e treinadores era elaborada. Desde cedo, Kaiser sempre foi muito bem relacionado. E fazia amizade com facilidade com jogadores importantes do futebol brasileiro. A lista de amigos era grande... Carlos Alberto Torres, Rocha, Moíses, Tato, Renato Gaúcho, Ricardo Rocha, Romário, Edmundo, Gaúcho, Branco, Maurício... apenas para citar alguns nomes.
Em uma época em que os meios de comunicação ainda não eram tão desenvolvidos, em que não existia Internet, TV por assinatura transmitindo ao vivo jogos de todo o mundo ou empresários circulando pelos corredores dos clubes com DVDs editados de dezenas de jogadores, Kaiser se aproveitava da falta de informação. Sempre que algum de seus amigos famosos era contratado por um clube, ele era levado como contrapeso para fazer parte do elenco.
- Eu assinava o contrato de risco, mais curto, de normalmente três meses. Mas recebia as luvas do contrato e ficava lá este período - conta.
- É um amigo nosso, uma ótima pessoa, um ser humano extraordinário. Mas não jogava nem baralho. O problema dele era a bola (risos). Nunca vi ele jogar em lugar nenhum. É um Forrest Gump do futebol brasileiro. Conta história, mas às 16h da tarde, num domingo, no Maracanã, nunca jogou. Tenho certeza - disse Ricardo Rocha.
Kaiser tinha uma vantagem. Alto, sempre teve um porte físico avantajado. Tinha pinta de jogador. E puxava a fila nos treinos físicos. Como alegava que chegava fora de forma, conseguia ficar duas semanas só correndo em volta do campo. O problema era quando a bola rolava. Aí entrava em cena a segunda parte do plano.
– Eu mandava alguém levantar a bola pra mim e errava a bola. Aí sentia o posterior da coxa, ficava 20 dias no departamento médico. Não tinha ressonância (magnética) na época. E quando a coisa ficava pesada para o meu lado, tinha um dentista amigo meu que dava um atestado de que era foco dentário. E assim ia levando - explica Kaiser.
– Sei que ele era um inimigo da bola. A parte física era com ele. No coletivo ele combinava com um colega... na primeira jogada me acerta porque eu tenho que ir para o departamento médico - corrobora Renato Gaúcho.
– Sei de história que ele ia para o clube jogar e, na hora de entrar em campo para mostrar alguma coisa, simulava contusão. Aí não participava, falava que era estiramento e ficava de dois a três meses sem treinar. É 171 nato - conta Ricardo Rocha.
Festas nas concentrações
Para alguns dirigentes e treinadores, Kaiser não passava de um jogador azarado. E assim ele conseguia ganhar tempo. Colocava no bolso um ou dois meses de salário. Quando a situação começava a ficar difícil de ser sustentada, ele aproveitava um outro amigo e trocava de clube. Assinava um novo contrato de risco, recebia as luvas... começava tudo outra vez!
– Não me arrependo de nada. Os clubes já enganaram tantos os jogadores, alguém tinha que ser o vingador dos caras - brinca.
A tática era conhecida por vários companheiros, que encobriam a história. Afinal, Kaiser era bem relacionado em outras áreas também.
– Na época a gente ficava concentrado em hotel. Eu chegava três dias antes, levava dez mulheres e alugava apartamentos dois andares abaixo do que o time ia ficar. De noite ninguém fugia de concentração, a única coisa que a gente fazia era descer escada. Tanto que tem treinador hoje que bota segurança no andar.
Kaiser frequentava as casas noturnas mais badaladas do Rio de Janeiro e aproveitava o fato de ser jogador de futebol para se aproximar das mulheres.
– Mulher era a coisa mais fácil, podia ser em espanhol, inglês, francês. Porque jogador já tem esse assédio, eu não me considero um cara feio.
A semelhança com Renato Gaúcho também era bem-vinda. Os dois se divertiam bastante na noite.
– Se fui clone um dia de alguém na vida foi do Renato Gaúcho. A gente se conheceu em 83, ele jogava no Grêmio e vinha muito pro Rio. Essa fama que ele tem com as mulheres perto de mim não é nada. A gente saía muito, eu, ele e o Gaúcho (ex-atacante do Flamengo).
Para não ser desmascarado, Kaiser precisava ter boas relações ainda com a imprensa. Por isso, distribuia camisas do clube, passava algumas informações. Elogiado pelos amigos famosos, ele aparecia em matérias acompanhado de adjetivos como ‘artilheiro' e ´goleador`. Assim, os meios de comunicação davam respaldo à imagem de bom jogador que era vendida aos clubes. Quando foi jogar no Bangu, um jornal da época deu à matéria sobre sua contratação o título: ‘O Bangu já tem seu rei: Carlos Kaiser’.
– Eu tenho facilidade em angariar amizades, tanto que muitos da imprensa da minha época gostam de mim, porque nunca tratei ninguém mal.
Em cerca de 20 anos de carreira, Kaiser entrou em campo poucos vezes para disputar uma partida oficial. Nenhuma delas no Brasil:
– Jogo completo se tiver uns 20, 30, tem muito. Todo jogo eu dava ‘migué’. Todo jogo eu saía machucado, até treino, se eu pudesse, eu saía machucado - admite.
Kaiser encerrou sua carreira aos 39 anos, jogando pelo Ajaccio, clube da segunda divisão da França, no qual ficou por alguns anos. O atacante garante que desta vez ele jogou de verdade, porém, não mais do que 20 minutos por partida, poucas vezes por temporada. Mais experiente, Carlos Henrique não se arrepende do que fez, mas confessa que se tivesse uma chance de voltar no tempo, a história seria diferente:
– Pelas oportunidades, pelos times que passei, se eu me dedicasse mais, eu teria ido mais longe na minha carreira. De certa forma, me arrependo de não ter levado as coisas mais a sério. Se teve alguém que eu prejudiquei a vida toda foi a mim mesmo - disse.
Briga com torcedor, bolas na galera, celular falso... as aventuras de Kaiser
Histórias não faltam na vida de Carlos Henrique Kaiser, que por mais de 20 anos passou por elencos de diversos clubes brasileiros e do exterior sem praticamente ter disputado partidas oficiais. O próprio apelido já gera desconfiança. Ele garante que ganhou ainda pequeno, de amigos, quando jogava nas divisões de base. Mas para quem passou a vida enganando dirigentes e treinadores fica um ar de desconfiança. Afinal, era um marketing perfeito.
– Todo mundo acha que é sobrenome, mas quando eu era pequeno tinha uma semelhança com (Franz) Beckenbauer (considerado o maior jogador da história do futebol alemão). As pessoas com quem eu andava eram muito ignorantes, não sabiam pronunciar o nome direito, descobriram que o apelido dele era Kaiser e passaram a me chamar assim também - garante.
Carlos Henrique Raposo começou sua carreira como centroavante nas divisões de base do Botafogo, em 1973. Depois, foi levado por um amigo para o time juvenil do Flamengo. Na época, Kaiser ainda treinava normalmente, pensava seguir a carreira no futebol.
– Como todo jogador, eu vim de uma família pobre, mas eu queria crescer, ganhar dinheiro, para dar uma condição melhor para a minha família. E eu sabia que a melhor forma de acelerar isso seria através do futebol. Eu queria ser jogador e não queria jogar.
Quando tinha 16 anos, um olheiro foi até a Gávea para observar o atacante Beijoca. Mas ele roubou a cena no treino e acabou sendo contratado pelo Puebla, do México, onde se profissionalizou. Começavam ali as histórias de quem viveu do futebol pulando de clube em clube sem praticamente jogar partidas oficiais...
Briga com torcedor no Bangu
Kaiser vendia muito bem o seu filme. Foi assim no Bangu. Contratado com fama de artilheiro, vindo do futebol francês, era difícil ser esquecido no elenco. Após usar todas as táticas possíveis e enrolar por um bom tempo, chegou uma hora em que Castor de Andrade perdeu a paciência e mandou o então técnico Moíses relacioná-lo para um jogo.
- O Moíses me acalmou e me garantiu que eu só ficaria no banco, que não entraria - disse.
Mas o Bangu perdia por 2 a 0 e Castor de Andrade mandou a ordem para o banco de reservas para o treinador colocar em campo o atacante. Para não ser desmascarado, Kaiser garante que tomou uma atitude inesperada. Durante o aquecimento, partiu para cima de um torcedor. Arrumou uma briga. E foi expulso.
– Eu comecei a aquecer e vi os torcedores no alambrado xingando o time. Eu pulei o alambrado e fui brigar. Fui expulso antes de entrar em campo.
Kaiser precisou se explicar para um furioso Castor de Andrade. E contou uma história daquelas...
– Eu sentei no vestiário, o doutor Castor entra, quando ele chega próximo de mim eu falo para ele: ‘Antes que o senhor diga qualquer coisa, Deus me deu um pai e levou. E Ele me deu outro. Então jamais vou admitir que digam que meu pai é ladrão e os torcedores estavam atrás de mim falando isso.’ Ele me segurou pela nuca, me deu um beijo e me convidou para viajar. E renovou comigo por mais seis meses - garante.
Celular falso no Botafogo
Apesar de ter o aval de um ou outro jogador, Kaiser enganava muita gente nos clubes em que passava, que achavam que ele realmente era um jogador. Em uma das passagens pelo Botafogo, ele foi desmascarado pelo preparador físico Ronaldo Torres, atualmente no Fluminense. No início dos anos 90, Kaiser andava com um enorme celular de brinquedo. Na época, ter um aparelho móvel era um grande luxo, status de pouco. E no vestiário, quando todo o elenco estava se arrumando, ele fingia receber ligações de empresários interessados na sua contratação.
– Eu tinha um celular de brinquedo, colocava ele para tocar e falava ‘não estou a fim, estou bem aqui, vou ficar por aqui mesmo’. Fingia que estava falando com alguém. Quando fui tomar banho o Ronaldo Torres viu que o telefone era de brinquedo e falou para o time todo -revela o ex-jogador.
A cena, que se repetia toda a semana, chamou a atenção de Ronaldo Torres. Um dia, com a ajuda de outros jogadores que estavam "fora do esquema", ele agarrou Kaiser e pegou o celular.
– Ele estava sempre pelos cantos, falava com empresário, fingia falar inglês, falava tudo errado... Um dia eu descobri que ele não falava com ninguém. Fiquei por trás dele e ele não falava com ninguém - conta Torres.
Apresentação com bola no Ajaccio, da França
Kaiser foi levado por um amigo para o Ajaccio, time que na época estava na terceira divisão do Campeonato Francês. Na apresentação, se surpreendeu com a festa.
- Era brasileiro e brasileiro tem muita fama por lá. O estádio era pequeno, mas estava bem cheio. Pensei que iria só acenar e tal, mas vi um monte de bolas no campo e percebi que teria um treino. Fiquei nervoso porque logo no primeiro dia eles iriam ver que não jogava nada.
Então Kaiser teve uma ideia maluca. E colocou rapidamente em prática para não ser desmascarado.
- Comecei a pegar todas as bolas rapidamente e chutar para a galera. Os torcedores foram à loucura. Não sobrou uma bola em campo. Ao mesmo tempo beijava a camisa do clube. Conquistei o carinho dos torcedores e acabou só acontecendo um treino físico - garante.
Fingindo ser jogador do Fluminense
Kaiser chegou a ficar uma semana no Fluminense, mas logo foi descoberto. Mesmo assim, enquanto não arrumava um outro time, ele aproveitava para fingir ser jogador do clube e tirar vantagens com isso.
Kaiser andava por shoppings com o uniforme que havia ganhado para treinar, comprava camisas do Fluminense e distribuia pela cidade. Principalmente para mulheres...
– Ele dizia que jogava, mas nunca jogou. Ele dizia que jogava em um clube, vinha fazer um teste, mas não jogava nada. Ele era mentiroso para caramba. Ele comprava camisa do Fluminense, levava para o shopping e dava para as meninas, para dizer que jogava no Fluminense. Era gente boa. Era 171. 171 não, ele era 342 - disse Ronaldo Torres, atualmente preparador físico do Fluminense.
No Vasco durante o título brasileiro de 1989
Kaiser garante que a ida para o Vasco teve um motivo mais nobre do que as contratações pelos outros times. Ele foi levado para o clube para ajudar um jogador cruzmaltino que tinha problemas com álcool. Sua função, dada pelos outros jogadores, era cuidar do colega, o mantendo longe do vício e garantindo sua presença nos treinamentos e nos jogos.
– Fui levado para o Vasco por um jogador no auge de sua carreira, fiquei pouco tempo. Eu cuidava mais da carreira dele do que da minha. Cuidava dele, acordava ele para treinar...
Depois de alguns meses, o então vice de futebol Eurico Miranda apareceu no clube irritado por causa de uma derrota. Viu Kaiser correndo em volta do campo.
- Teve um dia que o doutor Eurico estava de saco cheio e me mandou embora. Ele falou... esse cara ainda está aqui? Ele nunca joga. Manda embora.
Clone de Renato Gaúcho na noite carioca
O porte físico era parecido. O cabelo, também. Kaiser aproveitava a semelhança com Renato Gaúcho para se passar pelo amigo. Principalmente na noite carioca...
- Apesar de ser um grande amigo, ele me atrasava. Ele se adiantava, só que me atrasava. Eu não estava nas paradas, e ele estava. Falava que era o Renato, e eu dormindo. Que amigo, hein! Dá um livro esse rapaz - disse Renato Gaúcho, atualmente treinador do Grêmio.
Certa vez, Renato Gaúcho foi barrado na porta de uma boate. Não entendeu nada, já que tinha uma área VIP reservada para ele.
- Um dono de boate em Búzios me convidou na praia para ir naquele local à noite. Resolvi aparecer lá com a minha galera. Só que quando eu estava entrando, um segurança me barrou e disse: "Você não pode entrar porque o Renato já está lá dentro" - disse o treinador do Grêmio
Na foto de campeão do mundo pelo Independiente?
Kaiser garante que fez parte do elenco do Independiente, campeão do mundo de 1984. E estaria na foto oficial do time. Ele teria ido para o clube levado por um amigo, Alejandro, que era amigo do Burruchaga, atacante campeão do mundo pela Argentina em 1986 ao lado de Maradona.
O Independiente diz que teve, sim, um Carlos Henrique no elenco naquele ano glorioso. Mas segundo o clube argentino, o jogador era argentino, e não, brasileiro.