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Cocada vê elenco atual em momento parecido com o de 1988


Domingo, 01/05/2011 - 10:40

A vila de casas populares em Campo Grande-MS deu o caráter e o nome de fantasia que enfeita a vida modesta de Luiz Edmundo Lucas Corrêa. Com água na boca diante da vitrine do turco Massoud, o menino se viu em conflito. Entre as lições do pai e o desejo incontrolável, achou a solução que o faria habitar até hoje o Lar do Trabalhador e a galeria dos heróis. Após trocar serviços de limpeza por uma cocada e ganhar o doce como apelido, o período de fartura estava por vir. Além do gol do título de 1988, o ex-lateral foi responsável por um Cosme e Damião fora de época, com distribuição de cocadas pretas e brancas, nas cores do campeão daquele ano. Com o tempo, a saborosa ironia virou amargura. Desde a vitória por 1 a 0, em que precisava do empate, o Vasco jamais voltaria a ganhar uma final do Flamengo.

— Meus filhos ficam enchendo, querem ver o vídeo toda hora — disse Cocada, que dispensa imagens para reviver a arrancada pela direita, o corte em Edinho e chute de esquerda que entrou com a trajetória ascendente de um foguete, no canto direito de Zé Carlos. — É como se o jogo tivesse sido ontem.

Pelas mãos de Castilho

Nestes 23 anos, peregrinou para voltar ao mesmo lugar. Com a recente demissão do irmão Müller, ex-atacante da seleção, do comando do Imbituba-SC, Cocada, que era o seu auxiliar, encontrou abrigo na casa onde foi criado com os sete filhos do lavrador Edmundo.

— Vim da roça na barriga da minha mãe. Aprendi que não podia pegar nada do outros, sempre fui respeitador. Minha mulher reclama que chamo as amigas dela de senhora — disse o herói, que trabalhava numa distribuidora de medicamentos quando encontrou o remédio para sua febre de bola.

Marcado por amputar um dedo para atuar no próximo jogo, o saudoso Castilho estendeu-lhe a mão como lição de sacrifício. Ao vê-lo no time da empresa, o ex-goleiro tricolor o levou para o Operário, nome que se confunde à saga de Cocada:

— Já fiz de tudo, fui pacoteiro e lavei carro. Hoje não me sinto ex-jogador, sou professor.

Formado em Educação Física, Cocada oferece serviços de técnico ou preparador físico em troca do doce sabor da hospitalidade lusitana:

— Meu sonho é trabalhar no Vasco. Tinha prazer de ir ao clube, passava o dia todo lá.

Cocada morava na Praça da Bandeira, a poucos quilômetros do clube. Na época, a proximidade era também afetiva.

— Tínhamos um bastidor forte e tranquilidade para jogar. Quero voltar e ver o novo Vasco — disse, ainda disposto a correr pelo presidente Roberto Dinamite, que era o capitão na época. — Ele foi muito corajoso, entrou de peito aberto.

Em 1987, Roberto já matava a responsabilidade no peito antes de rolar a bola para Títa fazer o gol do título. O rubro-negro traz boas lembranças não só pela freguesia da época. Em 1983, aos 22 anos, Cocada passou oito meses na Gávea, tempo bastante para compor o elenco campeão brasileiro e trocar a glória pela mágoa ao ser dispensado em seguida.

— Na época, achei que foi sacanagem, hoje entendo. Passei a ganhar 20 vezes mais, não pensava em juntar dinheiro — disse ao assumir sua irresponsabilidade. — Era muita informação para um menino só.

A frase ambígua serve tanto para dizer que Cocada era apenas um garoto quanto para retratar a solidão na metrópole. Do Flamengo, passou por Guarani, Santa Cruz e Americano antes de iniciar a fase luso-brasileira com período no Farense, seguido de um ano no Vasco.

— Vejo o time atual num momento parecido com nosso — disse, ao comparar não a qualidade mas a necessidade de afirmação dos jogadores — Só o Roberto era consagrado. os demais buscavam seu espaço.

Entre eles, estava um gênio indomável de peito estufado, língua presa e rara capacidade para fustigar rivais. No primeiro jogo da decisão de 88, Romário marcou o gol da vitória de virada por 2 a 1 com um lençol sobre Zé Carlos que até hoje embala os sonhos de Cocada:

— Pena que ele e meu irmão jogaram poucas vezes. Com os dois na frente e o Bebeto mais recuado, o Brasil teria ganhado a Copa com mais facilidade.

Ao contrário da ascensão fulminante de Romário, a velocidade do ex-lateral não o fez ir longe. Depois do Vasco, passou por Fluminense, São José e Londrina antes de voltar à vila. Descendente de índios e escravos, Cocada saboreia a força da mistura brasileira.

— Aqui é arroz, feijão, mandioca e carne. É aroeira pura — disse, citando a árvore de propriedades medicinais como atestado de saúde. — Sou um jovem de 50 anos.

Quando tinha 28, o excesso de vigor tornava tudo mais intenso. Na final, Cocada entrou aos 41 minutos do segundo tempo, fez o gol aos 44 e foi expulso por tirar a camisa, que deixou com o filho, em São Paulo. Além das boas lembranças, passou a cultivar o desapego. Ao ser lembrado como o último herói, o orgulho se mistura à tristeza pela manutenção da escrita. Na torcida para ser destronado, Cocada tem lugar cativo na mística do clássico e no Lar do Trabalhador. Um doce para quem adivinhar onde será a festa.

Fonte: O Globo