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Jovem jogador haitiano torce para o Vasco por causa de Romário


Domingo, 23/01/2011 - 08:21

As 623 pessoas presentes nem de longe lotavam as arquibancadas do estádio Sylvio Cator, apesar da ajuda dos 17 vendedores de bebidas, biscoitos e carne ensopada com bananas e batatas cozidas, o principal pedido dos visitantes. Descendo as escadas, jogadores e comissão técnica do Eigle Noir faziam a preleção para a partida da tarde no vestiário que em 2004 foi ocupado por Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho. Pouco mais de seis anos depois, o palco do “Jogo da Paz”, disputado entre Brasil e Haiti, parece mais um campo de várzea abandonado, com entulhos jogados pelos cantos, rachaduras espalhadas pelas paredes e um abrigo de vítimas do terremoto no terreno ao lado.

Na tarde de quinta-feira em Porto Príncipe, o Eigle Noir, um dos times mais populares do Haiti, mas que não vai muito bem nesta temporada, recebeu o Racing des Gonavies, equipe do norte do país e que precisava da vitória para retardar o já esperado rebaixamento, no estádio. Jean Roland, técnico do time da casa, tentava passar ânimo aos seus jogadores, ainda na esperança de conquistar uma vaga entre os oito que se classificam para a fase final do campeonato.

- Hoje é muito importante nós ganharmos. Não devemos nos importar com o dinheiro. Ontem, tivemos problemas, mas agora devemos pensar que o problema passou. Somos um time e devemos tentar fazer o nosso melhor – afirmou o treinador, que jogou profissionalmente no futebol venezuelano.

O trabalho com o psicológico de seus jogadores, ele diz, é fundamental para mantê-los motivados, apesar de todos os problemas que abalaram o Haiti em menos de um ano. Se o terremoto, a epidemia do Cólera e a instabilidade política afastaram não só os profissionais, mas também todos os outros haitianos dos esportes, Roland é um dos que tentam apelar à paixão pelo futebol para mudar o panorama atual.

- Eu estava aqui no terremoto. Mas, primeiro, foi o futebol que deu alegria ao povo. A gente está triste, o clube está também. É a hora de todos se unirem. Eu tive jogadores que perderam toda a família, mas precisamos seguir em frente.

Tilme Wilson, de 18 anos, é um deles. Perdeu mãe, primo e duas irmãs, além do pai, que ainda não foi declarado oficialmente morto, mas que está desaparecido desde o desastre. O garoto diz ter ficado quase seis meses sem jogar, mas foi trazido de volta pelos companheiros. Torcedor do Vasco no Brasil, por ter visto o baixinho Romário marcar seus gols pelo clube carioca, ele espera brilhar nos campos haitianos para poder descobrir um mundo diferente fora dali.

- Eu perdi muita gente, mas tive sorte. Antes, era titular, mas depois do terremoto, perdi a paz e fiquei sem saber o que fazer. Meus companheiros que conseguiram me colocar para cima. Só no futebol que vejo o lado bom da minha vida. E por isso eu sou muito feliz – disse o jogador, que atua em todas as posições do meio-campo e sobrevive com US$ 100 (cerca de R$ 170) por mês.

Tilme pede licença e se junta aos outros jogadores do Aigle Noir para o aquecimento. Depois, retorna ao vestiário sujo e escuro para a preleção final e a última corrente antes da partida. Descem o mesmo corredor e sobem as mesmas escadas que os craques da Seleção Brasileira passaram em 2004. Atrasados em quase trinta minutos, não foram recepcionados por 25 mil pessoas como no “Jogo da Paz”, mas por torcedores - que agora já eram mais do que os 623 de antes - quase calados.

Após o apito inicial, muita vontade e pouca técnica no carpete sintético, de manutenção mais barata e fácil do que a grama tradicional. Com a mesma velocidade dos gols perdidos pela equipe da casa, os torcedores, quase nenhum com a camisa da casa, passaram a reclamar. Chegaram a irritar Roland, que sempre tinha uma resposta para cada grito mais abusado. Outros estavam ali só por tédio.

- Eu gosto muito de futebol, mas não tem nenhum time que eu torça. Eu estou aqui sempre porque moro perto do estádio – disse Louis Gregory, desempregado e que assistiu ao “Jogo da Paz” no estádio em 2004.

Os ingressos para a partida iam de 50 a 150 Gourdes (R$2,10 e R$6,30, na conversão). No portão para as arquibancadas, no entanto, alguns torcedores conseguiam, à base de pura pressão, entrar de graça. Técnico da seleção haitiana, o brasileiro Edson Tavares chegou ao estádio no intervalo da partida, ainda em 0 a 0. Ele garantiu, no entanto, que o interesse da torcida do Eigle Noir diminuiu muito devido à má campanha do clube no campeonato.

- Você tinha que ver isso antes da segunda fase, quando o time estava bem. A torcida lota o estádio, grita, canta muito – afirmou.

Edson, que assumiu a seleção do país no ano passado, está animado quanto ao futuro do estádio, o maior do Haiti. Ele afirma que devem ser gastos US$ 850 mil na reforma e que, quando estiver pronto, possivelmente em junho, o sonho é voltar a receber a Seleção Brasileira.

- A importância (da volta da Seleção ao Haiti), para ser honesto, é tentar dar um acalento à população. Está todo mundo com muito medo ainda, por conta dessa instabilidade política.

Enquanto isso, no gramado, os jogadores do Eigle Noir ainda desperdiçavam muitos gols. O castigo veio na metade do segundo tempo, quando o time de Gonavies abriu o placar. Logo depois, o juiz resolveu interromper a partida por conta da escuridão e da burocracia para ligarem os holofotes do estádio. A discussão, então, começou. Trocas de acusações e empurrões até resolverem continuar com o jogo, com as luzes acesas.

Apesar da pressão, o time da casa não conseguiu o empate, e a partida terminou mesmo 1 x 0 para os visitantes. Os torcedores saíram de cabeças baixas, e os jogadores de cara feia. No confuso calendário haitiano, no entanto, já no fim de semana o Aigle Noir tem outra chance de sonhar mais alto, enquanto o Racing des Gonavies pode adiar por mais uma rodada o rebaixamento. Nos dois casos, o caminho de reconstrução, porém, ainda é longo.

Fonte: GloboEsporte.com