Há pelo menos quatro décadas, em suas crônicas, Nelson Rodrigues já reivindicava a presença mais ativa da mulher nos campos. “Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: a inexistência do histerismo feminino.”
Histerismo ou histeria. Traduzindo literalmente. "É um distúrbio específico, que se manifesta fisicamente. Muito freqüente entre as mulheres."
E traduzindo para o mundo da bola. É um sentimento muito parecido com a paixão, reconhecido pelos homens como ingrediente indispensável para o evento futebol.
Futebol, mulheres, homens, paixão e bola. Fatores que deveriam se misturar e não se discriminar ou dividir. Mas, infelizmente, em pleno ano de 2010, enquanto os homens do futebol são reverenciados, donos das maiores fortunas, verdadeiros "popstars", as mulheres que se metem com a bola são discriminadas e só jogam no país do futebol por amor. Isso mesmo, em nosso país, o futebol feminino ainda é considerado esporte amador.
Poucas vencem porque é preciso persistência e determinação. Precisam também ter um ponto de partida. Um exemplo a seguir. Hoje, este exemplo unânime chama-se Martha Vieira da Silva.
Marta. Rainha do Futebol ou se preferir: Pelé de saia. Nascida em Dois Riachos, interior de Alagoas, hoje, aos 25 anos, é nada mais, nada menos que a recordista em prêmios FIFA. Quatro vezes eleita a melhor jogadora do mundo. Conseguiu superar atletas reconhecidos mundialmente, como Ronaldo Fenômeno e Zidane.
Marta chamava a atenção de todos desde muito pequena pela habilidade durante as peladas que disputava com meninos, em sua infância. Depois de passagens por CSA (AL) e Santa Cruz (PE), se mudou para o Rio, com apenas 14 anos, atrás da grande oportunidade.
Neste domingo, a equipe da Super Rádio Tupi/Superesportes conseguiu promover o reencontro entre Marta e Helena Pacheco, sua primeira treinadora no Rio. As duas não se viam há mais de sete anos e a Rainha do Futebol não conteve as lágrimas.
"Ela tem a facilidade de perceber as coisas. E Graças a Deus me iluminou, me protegeu várias vezes. Diziam até que eu era a protegida da Helena... Mas foi ali que tudo começou."
Lembrança de quando chegou ao Vasco
"Eu tinha só 14 anos. As meninas me chamavam de bicho do mato porque eu só ficava no meu canto. E eu só respondia para elas. Dizia que elas iam ver o bicho do mato quando eu entrasse em campo.(risos). Eu só estava ali para fazer testes. Mas a Helena já me deu um papel para assinar e disse que eu ficaria."
Pelo Vasco, Marta chegou à Seleção Brasileira adulta. Ali, foi vista pelo mundo. A conquista do Pan-Americano e as boas atuação na Copa do Mundo feminina, em 2003, garantiram à jogadora uma chance de atuar no futebol europeu.
Helena relembra as dificuldades que Marta enfrentou
Em 2001, a equipe do Vasco foi desfeita e ela ficou largada porque o futebol feminino no Brasil não existia mais. Ela ia do Rio para São Paulo, para Minas e, apesar de já ter até um status de jogadora da Seleção, não tinha um reconhecimento no Brasil.
Despojada de qualquer vaidade, a Rainha do futebol lembra que era Helena quem a ajudava a manter-se no Rio, mesmo sem clube. Novamente, ela se emocionou. "Ela era uma mãe para mim sim. E o Marco, auxiliar dela, era meu pai. Eles me aconselhavam, me ajudavam, falavam muito comigo e era difícil porque eu era cabeça dura."
O orgulho da treinadora
Virar a Rainha do Futebol foi mérito exclusivamente dela. Porque a qualidade sempre existiu. O mais importante foi a coragem que ela sempre demonstrou de sair de Dois Riachos para vir para o Rio, onde se mata dois leões por dia. Depois ela começou tudo de novo, saiu do Brasil para a Suécia, não falava uma palavra de inglês e foi pra lá, conquistou todo mundo e ainda aprendeu a falar sueco. Muitas começam, mas poucas tem a determinação da Marta.
Logo em seu primeiro ano na Suécia, Márcia foi artilheira do campeonato nacional, com 22 gols, e faturou o título da Copa Uefa feminina. A brasileira foi decisiva na competição européia, com três gols nas finais. Nos anos seguintes, manteve o sucesso no Umea. Marta liderou a equipe na conquista do tetracampeonato sueco (2005, 2006, 2007 e 2008). Pela Seleção, fica ainda o desejo de faturar um título de grande expressão Já foram três tentativas.
O dia que o Rei telefonou
"Eu jogava na Suécia e eu era patrocinada pela mesma empresa que Pelé. De repente eu estava em casa vendo TV e meu telefone tocou. Do outro lado, uma voz masculina dizia: Martha? É o Edson Arantes. Aquele que jogou no Santos...Sabe? Por um momento, pensei que o Edson do santos era o Pelé, mas não acreditei. Mas era ele mesmo. Depois em 2008 tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente na festa da FIFA."
A Pelé de Saia
Um apelido dado a ele pelo próprio Pelé e confirmado pela imprensa e pelo público na final da Copa UEFA quando ela também foi campeã onde Pelé conquistou seu primeiro título mundial. A comparação foi inevitável.
A gratidão de Marta
Sem conter o choro, Martha fez seu agradecimento a quem sempre acreditou em sua capacidade.
"Muito obrigada por ter acreditado, por estar sempre de alguma forma querendo ajudar o futebol feminino. No Rio de Janeiro, se existe o futebol feminino é muito graças a ela (Helena Pacheco).E poderia até ser melhor. As pessoas deveriam dar mais valor. Já foi bom, mas poderia ser melhor."
Helena retribui a gratidão
Se hoje caiu o tabu de que meninas não podem jogar futebol, foi muito por causa delas. Eu fiz a minha parte e elas fizeram a delas.
O reconhecimento fora do Brasil
"É triste saber que a gente tem que sair do nosso país para ser reconhecida. Mas tenho esperança de que antes de encerrar minha carreira eu ainda vou poder ver o futebol feminino ser reconhecido no Brasil. Hoje, aqui, as meninas ainda não podem viver só de futebol. "
Em sua passagem pelo Santos FC, a Rainha do Futebol conquistou dois títulos inéditos em sua carreira, o da Copa do Brasil e o da Copa Libertadores da América. Marta balançou as redes por 28 vezes em 15 partidas disputadas. A camisa 10 ainda foi artilheira da Copa do Brasil com 18 gols em 7 confrontos.
Dona de uma velocidade incrível, enfeitada por dribles desconcertantes, ainda tem faro de gols e é "uma mãe" no quesito assistências. Com apenas 1,60 de altura consegue virar gigante diante das adversárias. Uma jogadora completa. Uma pessoa simples. Marta definitivamente é uma vitoriosa.
Fonte: Superesportes