Uma história de vida que tinha tudo para acabar no anonimato ou até algo pior que isso. Um perfil físico que remete a histórias de super-heróis e chega a intrigar cientistas e pesquisadores da saúde. Assim pode ser definida a definição da carreira de Maria Cecilia de Almeida Maia, a Ciça do caratê. Pouco lembrada, para não dizer esquecida, a lutadora chega aos 44 anos com um desempenho superior ao de muitas atletas mais jovens. À sombra do sucesso, a tricampeã mundial se torna objeto de estudo. O motivo? A jovialidade de uma garota.
Apesar da idade avançada para a modalidade, Ciça luta até hoje nas categorias livre e peso médio (55kg a 61kg). E é justamente este fato que deixa os pesquisadores da Escola de Educação Física do Exército e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EsEFEx) sem entender o que se passa com o corpo da atleta.
- Um fato que sempre nos chamou a atenção é como ela tem uma frequência cardíaca menor que a de meninas muito mais novas. E outro: como a velocidade de reação dela é tão mais rápida que a dos homens, essa questão do reflexo. Não é a toa que ela chegou cinco vezes à final do mundial - disse o instrutor de lutas da EsEFEx e um dos que estudam o caso, Capitão Pedro Ivo.
Outro fato curioso é que, mesmo em um esporte de tanto contato físico, Ciça, que compete há 25 anos, nunca sofreu uma lesão. Mas a vida da atleta nem sempre foi de pontos positivos. Além dos problemas de falta de patrocínio e das dificuldades no meio esportivo, Ciça sofreu durante a infância e a adolescência.
Vida complicada desde a infância
Filha de Ângela Augusta de Almeida, uma diarista mãe de sete filhos que hoje tem 65 anos, Ciça nem chegou a conhecer o pai. Aos 7 anos, morou na rua por um tempo, quando sua família foi despejada da casa onde morava, no Centro do Rio de Janeiro, por falta de pagamento. Sem condições de criar os filhos, Ângela deixou as crianças com uma vizinha, que se solidarizou com a história. Mas Ciça, com seu comportamento rebelde, não se adaptou e deixou a casa. Foi morar então com outra família, onde permaneceu por 11 anos. Lá, cuidava de uma criança. Certo dia, ao buscá-la na creche onde estudava, foi convidada a trabalhar lá. Com seu primeiro salário, se inscreveu em uma academia, onde conheceu o caratê.
- Quando cheguei lá e vi aquilo falei: 'É isso que eu quero”. Assisti à primeira aula numa sexta-feira, voltei com um quimono emprestado e me matriculei. Daí foi uma ascensão muito rápida. Em oito meses o treinador me botou para competir no Campeonato Carioca. Tive um desempenho que surpreendeu todos – conta.
Com os colegas dando apoio, Ciça foi convidada a integrar a seleção carioca para disputar um torneio em Minas Gerais. Lá, a “Trombadinha do Rio”, como era chamada, brilhou e ganhou a chance de disputar uma vaga na seleção brasileira. Quando atingiu esse nível, passou a se destacar também em competições internacionais.
Na linha tênue entre o sucesso e o fim
No entanto, o que parecia ser o ápice da carreira se transformou em pesadelo em pouco tempo. Ciça conheceu um italiano, com quem passou a dividir um apartamento. Certo dia, o companheiro sumiu de casa. A lutadora conta que só foi descobrir o seu paradeiro alguns anos depois. E a notícia que chegou não era nada animadora: o italiano, portador do vírus HIV, tinha morrido. Desesperada, Ciça foi buscar refúgio nas drogas e quase se rendeu ao mundo do crime. Mas foi no próprio esporte que encontrou a recuperação.
- Eu caminhava nessa linha tênue, era um precipício que estava do meu lado, mas eu cai no lugar raso e me salvei. Nos treinos, eu extravasava. Comecei a canalizar de uma maneira muito positiva toda essa minha raiva da vida. Poxa, por que logo comigo, que já tinha sofrido tanto? De uma certa forma, minha vida foi melhorando, fui conhecendo outras culturas e isso foi gerando em mim um sentimento de conquista - explica.
Focada no sucesso, Ciça voltou a conquistar vitórias, títulos e amigos. Mas o reconhecimento parece nunca ter se aproximado muito da lutadora. Mesmo tricampeã mundial (92, 98 e 2008), pentacampeã sul-americana, tetracampeã pan-americana, 13 vezes campeã brasileira, 13 vezes estadual, campeã dos Abertos de Paris, África do Sul e Angola, ela não perde a humildade. Aliás, perder é um verbo que a atleta tenta não conjugar. Foram apenas três Brasileiros perdidos em 25 anos de carreira.
A lutadora teve uma longa história também no Vasco. Defendeu a Cruz de Malta por dez anos. Com o fim da modalidade no clube, Ciça se diz decepcionada, mas não magoada com os cruzmaltinos.
- Quando você dedica suor, sangue, lágrimas, esforço e vê tudo indo embora é triste. Mas tenho um carinho muito grande pelo Vasco. Tenho gratidão por ter sido o único clube no Rio a abrir as portas e proporcionar a cada um de nós a possibilidade de sonhar - conta.
Hoje mãe de três filhos - todos lutadores de caratê - , Ciça espera continuar lutando, apesar da idade. Para ela, ficar grávida não atrapalhou sua carreira. Pelo contrário, foi um incentivo.
- É engraçado, porque depois que tive meus filhos senti que meu rendimento melhorou muito. Foi como a quebra de um mito. Acho que é porque melhora muito a cabeça - argumenta.
Vencedora na vida e nos tatames, Ciça tem planos de encerrar a carreira em breve. A intenção é de se tornar treinadora e voltar a estudar, já que parou ainda no primeiro grau. Entre as opções, faculdades de Educação Física, Fisioterapia e Psicologia.
- Pena que perdi muito tempo. Mas enquanto se respira e tem vida, podemos continuar sonhando, essa é a força que não me deixa desanimar - conclui a vencedora lutadora.
Fonte: GloboEsporte.com