Veja mais um trecho do e-book 'Vamos todos cantar de coração: os 100 anos do futebol no Vasco da Gama'

Sábado, 17/12/2016 - 09:26
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"Tradicionalmente aberto, já àquela época, o Vasco contava com jogadores negros e operários, não aceitos nos grandes clubes da Série A da Primeira Divisão, o que viria a originar grandes polêmicas no futuro. Em 1922, já com o sonho de chegar à Série A da Primeira Divisão, o Vasco contratara como técnico o uruguaio Ramon Platero. Sob seu comando, o Vasco levantou pela primeira vez um troféu no futebol, como campeão carioca da Série B da Primeira Divisão, que lhe daria o direito de finalmente chegar à Série A da Primeirona. Era a vez de enfrentar os grandes. Em 1923, tendo ainda Platero com treinador, o Vasco ia surpreendendo seus adversários, um por um, incluindo os grandes América, Botafogo, Flamengo e Fluminense.

Além de ser uma espécie de estreante abusado, por ganhar dos grandes, o Vasco chocava o público do futebol, precisamente pelo fato de seu time reunir jogadores - oriundos das peladas da Liga Suburbana, diferente da liga oficial - negros, analfabetos, residentes no subúrbio e vindos das classes populares, algo inimaginável nos grandes, cujos atletas eram brancos, filhos das boas famílias da Zona Sul carioca, boêmios ou estudantes, alguns até com formação no exterior. Vale lembrar que num futebol elitizado e amador, ainda que só oficialmente, a atitude vascaína era um ultraje, até porque o clube pagava gratificações aos atletas. Era o chamado bicho, porque os valores eram tirados do ainda conhecido jogo de bicho.

Diferentemente de hoje, o futebol era um evento social, ao qual as jovens mais bonitas da cidade compareciam aos estádios com vestidos longos, chapéus e lencinhos nas mãos. Nervosas com os lances, elas ficavam torcendo esses lencinhos, o que deu origem à palavra "torcida".

Apesar das críticas e das acusações dos rivais, os Camisas Pretas, como os vascaínos eram conhecidos por causa do uniforme preto (ainda sem faixa diagonal branca), levantaram o título carioca logo no ano de sua estreia, apesar de uma derrota para o velho rival do remo, o Flamengo (3 a 2), num domingo de público recorde nas Laranjeiras. Segundo Mário Filho, no livro "O Negro no Futebol Brasileiro", o jogo terminou em briga entre as torcidas, já que um gol vascaíno (o do 3 a 3 teria sido anulado injustamente pelo juiz Carlito Rocha, ligado a Botafogo). Mário Filho conta que remadores rubro-negros usavam remos enrolados em jornais, para bater em torcedores vascaínos, no que entrou para a história do futebol carioca, como o Jogo das Pás de Remo.

Apesar de o Bangu ter tido atletas negros antes do Vasco, em 1906, o feito dos vascaínos foi um divisor de águas, pois pela primeira vez uma equipe com negros havia sido campeã. Muito desse sucesso se deveu aos métodos de trabalho de Platero, que não dava apenas a preparação técnica e tática, mas também física aos jogadores que viviam uma rigorosa rotina de alimentação na hora certa e descanso. Eram os primeiros traços de um futuro profissionalismo.

Na virada de 1923 para 1924, os grandes clubes da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT) resolveram abandoná-la e fundar uma nova entidade, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA). Para entrar nessa nova liga, um clube teria de cumprir uma série de exigências, como as de ter estádio próprio e comprovar que seus atletas não eram de profissões inferiores, como as de operários ou pequenos comerciantes. A liga se dava a luxo de ter fiscais que investigavam a profissão de alguns jogadores e visitavam estabelecimentos comerciais.

No caso do Vasco, que só tinha um campinho alugado na Rua Moraes e Silva, entre Maracanã e Tijuca, e contava com tantos negros e operários, a AMEA exigiu, para que este fosse aceito, que eliminasse 12 de seus atletas, justamente os negros e oriundos de classes mais baixas. Seria um golpe fatal. Mas o então presidente vascaíno, José Augusto Prestes, escreveu ao presidente da AMEA, Arnaldo Guinle, a 7 de abril de 1924, a “Resposta Histórica”: a página mais bonita do esporte brasileiro, no que diz respeito à integração social, enviando-lhe uma carta em que o clube, mesmo campeão do ano anterior, desistia de jogar na liga mais importante em 1924:

"Quanto à condição de eliminarmos doze (12) dos nossos jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

Estamos certos que Vossa Excelência. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923.

São esses doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias.

Nestes termos, sentimos ter que comunicar a Vossa Excelência que desistimos de fazer parte da AMEA".

Talvez sem o saber, Prestes conquistava para o Vasco o maior de todos os seus títulos, mais importante que todos os ganhos até aquele momento, e os que possam ser conquistados no futuro: campeão na luta contra preconceitos raciais e sociais, algo ainda mais representativo num país que havia abolido a Escravidão em 1888, apenas 35 anos antes de 1923, o que permite imaginar o quão discriminatória deveria ser aquela sociedade. Tais atitudes tornaram o Vasco a instituição esportiva brasileira com a história mais bonita, além de ser, entre as entidades fundadas no país, nas mais variadas áreas, uma daquelas com trajetória mais genuinamente popular.

Em 1924, longe dos grandes, mas sem perder sua dignidade, o Vasco permaneceu na LMDT, mesmo contra times de menor expressão. Foi bicampeão invicto, ganhando todos os 16 jogos, ao passo que no campeonato da AMEA o vencedor foi o Fluminense. Graças às suas origens populares e a essa luta contra os preconceitos, o Vasco começava a formar naquele período uma grande torcida. Apercebendo-se disso, Carlito Rocha, o ex-juiz, mas agora dirigente do Botafogo, conseguiu fazer a intermediação para que o Vasco fosse aceito na AMEA em 1925, sem ter de eliminar seus atletas. Uma vez na AMEA, o Vasco era chamado de time de “galegos” (portugueses) e de “zé povinho”, pela classe social de seus atletas. Juntava-se a isso um certo sentimento contra portugueses já que o Brasil havia acabado de completar cem anos da independência de Portugal.

Disposto a mostrar sua força e obviamente pensando no futuro, o presidente vascaíno Raul da Silva Campos lançou uma ousada campanha, a de construção de um estádio para o Vasco, que até então, tinha de alugar os campos dos co-irmãos para jogar. Numa grande campanha popular, entre sócios e torcedores, na qual cada um colaborava com o que podia, o clube arrecadou 685 contos e 895 mil réis, suficientes para comprar, no bairro de São Cristóvão, a chamada Chacrinha da Marquesa, porque no século 19 a área havia pertencido à Domitília de Castro e Canto Melo, a Marquesa de Santos, favorita do Imperador Dom Pedro I.

Adquirido o terreno, no começo de 1926, junto ao empresário alemão do ramo de tintas Carlos Kuenerz, seu então proprietário, houve nova campanha financeira, desta vez para tocar a obra, iniciada a 6 de junho de 1926, graças à arrecadação de dois mil contos de réis. Em dez meses, a 21 de abril de 1927, o clube inaugurava seu estádio, no amistoso em que perdeu para o Santos por 5 a 3.

Dois anos depois da abertura de seu estádio, o Vasco teve em campo aquela que é considerada sua primeira grande equipe, a campeã carioca de 1929, superando o América numa melhor de três. Depois de empates em 0 a 0 e 1 a 1, o Vasco ficou com a taça, goleando o rival por 5 a 0, com gols de Russinho (três) Mário Mattos e Sant'Anna. Dirigido pelo inglês Harry Welfare, o elenco contava, entre outros, com os zagueiros Brilhante e Itália, o médio Fausto e o centroavante Russinho, que integraram a seleção brasileira na primeira Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai."

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Fonte: Divulgação