Da convivência com Romário no sub-17 do Vasco ao jogo no Iêmen com 15 mil torcedores armados com faca na arquibancada. Dos trens nos subúrbios cariocas para ver jogos na Rua Bariri ou no estádio Ítalo del Cima às duas Copas do Mundo como integrante de comissão técnica. Marcelo Cabo, técnico líder da Série B com o Atlético-GO, é um sujeito que já viveu histórias que fazem parte do lado glamouroso do futebol, mas também coleciona causos de um andarilho da bola, que já visitou 38 países a trabalho, e apesar disso não nega suas origens.
- Sou carioca da Penha e faço questão de dizer isso com muito orgulho. Só saí de lá aos 40 anos, e alguns amigos brincam que eu fiquei besta depois que me mudei, mas não é verdade - diz.
Além de nascido no Rio de Janeiro, Marcelo Cabo é um saudosista do futebol carioca. Daqueles que ama o campo, o salão e também a arquibancada, sempre se preocupando com os mínimos detalhes do jogo. E consciente das voltas que o mundo da bola dá. Aos 49 anos, o técnico iniciou a temporada no Tigres e passou pelo Resende antes de assumir o desafio de comandar o Atlético-GO. Não era a primeira opção, mas topou o desafio, e está prestes a viver o maior momento de sua carreira no Brasil. Ironicamente, ao sair de sua cidade, acredita ter se aproximado de sua meta, que é justamente comandar um grande do Rio de Janeiro na Série A e mantém os pés no chão em relação ao já quase garantido acesso (veja entrevista no vídeo acima).
Em entrevista ao GloboEsporte.com, ele conta um pouco dessa trajetória, que continua neste sábado, contra o Criciúma, no estádio Heriberto Hülse - Com quatro pontos de vantagem sobre o Vasco, segundo colocado, o Atlético-GO continua na liderança mesmo se perder a partida. Confira:
GloboEsporte.com: Vamos começar pelo atual momento. O que, na sua opinião, tem sido determinante para a campanha do Atlético-GO?
Marcelo Cabo:Recebi um convite do Adson Batista, diretor, quando faltava uma semana para o início da Série B. Nosso acerto foi muito rápido, eu conhecia a estrutura do clube, topei o desafio. Iniciamos a competição, temos uma regularidade boa e estamos há 30 rodadas no G-4. A única que não estivemos foi a primeira, quando vencemos, mas ficamos fora por critérios de desempate. Isso só é possível graças à integração de todos os setores do clube. A entrega, o comprometimento dos jogadores é fundamental. Não adianta termos o melhor planejamento do mundo se os jogadores não comprarem a nossa ideia.
Como essa integração funcionou nos momentos difíceis?
Esse planejamento é sempre mais testado nas derrotas. Quando perdemos para o Londrina e para o Tupi em sequência, isso fez com que a gente parasse e refletisse e entendesse que, apesar das derrotas, estávamos no caminho certo. A parada para a Olimpíada foi fundamental. Fizemos uma intertemporada muito boa e sentimos que voltamos melhores, técnica e taticamente.
Você apontaria algum destaque individual?
É difícil falar em nomes. Nossa força é coletiva. Somos fortes como grupo, e isso potencializa a questão individual.
Antes de comandar o Atlético-GO na Série B e o Ceará no ano passado, você rodou por vários clubes pequenos do Rio de Janeiro. Você temeu em algum momento ficar rotulado como treinador exclusivamente carioca?
Eu temia, sim. Via os exemplos de amigos que tinham muito sucesso por aqui, mas não saíam do Rio. Você começa a criar uma imagem, e depois para desfazer é difícil, os outros centros acabam não vendo o seu trabalho. Por isso, saí do Rio muito cedo, fui para o Maranhão, trabalhar no São Bento em 2004, depois rodei o mundo. Mas tenho muito carinho pelo futebol daqui, o saudosismo pelo futebol carioca sempre me fez voltar Rio de Janeiro.
Você sempre faz questão de dizer que é saudosista do futebol carioca. Muitas lembranças de infância, adolescência?
Sou muito, mais até do que eu deveria ser. Eu tava lá fora, nos Emirados Árabes, na Arábia Saudita, não perdia um jogo do Campeonato Carioca. Aqui, eu via jogos na Bariri, Teixeira de Castro, Bangu, Ítalo del Cima. Todo mundo tem um sonho, e hoje o meu é dirigir um dos quatro grandes do Rio. É a minha meta profissional.
Você acha que no Atlético-GO está mais próximo dessa meta do que estava no início do ano, quando disputava o Carioca pelo Tigres?
Com certeza. Pela visibilidade da competição, que te coloca em evidência no cenário nacional. No ano passado, vencemos o Botafogo pelo Macaé. Agora derrotamos o Vasco em Cariacica. Além disso, a diferença dos grandes para os pequenos no Rio é muito grande, é uma luta desigual. O último clube de menor investimento a ser campeão no Rio foi o Bangu em 1966, o ano em que eu nasci.
Mas mesmo sem os pequenos ganharem títulos durante todo esse tempo, você viu muitos jogos deles ao vivo. Lembra de alguma história marcante?
Eu tava vendo Flamengo x Olaria na Bariri, estádio lotado, faltando 15 minutos para o fim o lateral-direito do Flamengo foi expulso. E o Zico jogou 15 minutos de lateral-direito. Foi o maior que eu vi jogar. Conto essa história para os meus atletas como exemplo. Falo também da humildade do Jorginho, que mesmo com o nome que tem, até hoje carrega material de treino como todo mundo, não tem medo de trabalho, sem vaidade nenhuma.
Como é disputar um título com Jorginho, de quem você foi auxiliar-técnico em várias oportunidades?
É uma satisfação muito grande estarmos juntos, dividindo a primeira e a segunda colocação, competindo de maneira saudável com um grande amigo, um cara que confiou em mim, me deu oportunidades. Eu o tenho como um irmão mais velho, que me ajudou como treinador e como pessoa, me aconselhava em todas as áreas e me fez crescer.
Vocês conversam sobre isso?
Sim, trocamos mensagens, sempre muito respeitosos, um com o momento do outro.
Da arquibancada para o campo: como foi a carreira do Marcelo Cabo jogador?
Ah, eu era um volante coadjuvante (risos). Fui levado pelo René Simões ao sub-15 do Fluminense, depois fui dispensado porque era muito franzino, tinha só 55 quilos. Depois, fui para o sub-17 do Vasco. Minha geração era acima da média. Tinha, entre outros, Lira, Mazinho e um tal de Romário. Era difícil até de treinar (risos).
Como era o Romário na época?
Do mesmo jeito que se revelou depois. Personalidade forte, arrumava confusão, dava dor de cabeça para o técnico. Mas todo sábado eram dois, três gols por jogo.
Depois você foi para o futsal...
Isso. Joguei por vários clubes tradicionais do Rio de Janeiro, Tio Sam, Flamengo, Fluminense, onde parei aos 32 anos, para virar treinador, "contra a minha vontade".
Como foi esse processo?
O Tadeu Sérgio, que era diretor de futsal, fez o convite. Eu era o capitão do time e não queria parar de jogar, estava com 32 anos e bem. Ele chegou para mim, disse que enxergava um perfil de treinador em mim e lançou o argumento decisivo: "Eu dobro o seu salário e assino a sua carteira". Falei: "Amanhã eu começo". Pouco depois fui para o Olaria, onde fui campeão carioca de futsal em 2002.. Acumulei campo e futsal até 2003.
Há também uma ligação forte sua com a base dos pequenos do Rio então, sobretudo Olaria e Madureira.
Sim, pelo Olaria fui campeão da Taça OPG em 2001. O Antônio Carlos (zagueiro, ex-Fluminense, Botafogo e São Paulo), quando eu assumi, era centroavante. Eu o coloquei na zaga, e em pouco tempo, foi comprado pelo Fluminense e se tornou um grande zagueiro. No Madureira, em 2003, fomos vice-campeões cariocas de juniores, com um timaço. Léo Fortunato, Carlinhos Paraíba, Maicon, André Lima e Muriqui faziam parte daquela equipe. Perdemos a final para o Fluminense.
A partir dali, você foi para o Bangu (acabou rebaixado no Carioca de 2004, no centenário do clube) e ganhou o mundo.
Rapaz, eu andei bastante (risos). Fui trabalhar no São Bento, no Maranhão, fomos vice-campeões maranhenses perdendo a final para o Moto Club. Depois fui para o time sub-17 do Al Hilal, da Arábia Saudita. De lá, o Marcos Paquetá me chamou para ser auxiliar dele na seleção nacional em 2005 e eu fui para a Copa do Mundo nessa condição em 2006. Trabalhei também em clubes do Kuwait e dos Emirados Árabes.
E o que você viu de mais pitoresco, diferente, nessas andanças?
O Iêmen. Conheço 38 países, e o mais inusitado em que eu estive foi o Iêmen, quando estava com a seleção da Arábia Saudita. Me assustei quando cheguei lá, porque todos os homens andam com uma faca no bolso. Então imagina, um estádio lotado, com 15 mil pessoas, todas elas com uma faca na mão? Deu pra ficar com um pouco de medo. Na Índia, em Calcutá, vi andaime de bambu, gente tomando banho na rua... Uma cultura bem diferente da nossa. Uma história bonita foi quando fomos campeões da Copa das Confederações na África do Sul, em 2009, com a Seleção. As funcionárias do hotel fizeram uma dança típica para se despedir do grupo, foi emocionante.
Entre 2007 e 2010, você foi observador da Seleção brasileira. É verdade que tinha que se disfarçar para não ser descoberto?
A gente dava um jeito (risos). Eu ia para treinos e jogos disfarçado de turista, às vezes até pedia autógrafos para que não desconfiassem. Uma vez, no Chile, eu disse que era jornalista, porque me viram anotando coisas. Mas fazia parte do trabalho para entregar a informação mais precisa possível.
Fonte: GloboEsporte.com