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A nossa personagem desta segunda-feira (1º) da série especial sobre os atletas olímpicos é uma alagoana que saiu de Dois Riachos pra conquistar duas pratas olímpicas e se tornar cinco vezes a melhor jogadora do mundo.
Estamos falando da Marta, líder do time feminino de futebol, que estreia nesta quarta (3), às 16h, contra a China, com transmissão da Globo.
Um rio seco. Duas pontes. Um chão enrugado. Cabras, jumentos, moscas. Uma carroça passando. Isso é o que nós enxergamos.
O professor Tota enxergou muito mais. Olhou pra tudo isso e viu uma escola.
Em vez de quatro paredes, quatro linhas e duas traves embaixo da ponte.
“A gente fazia aquele campinho. Botava duas varinhas, duas aqui, duas ali, amarrava em cima”, lembra Tota.
Ele só não imaginava que uma menina fosse aparecer pra jogar: “Naquele tempo era só ela”.
Em Dois Riachos, no sertão de Alagoas, mulher e futebol eram duas palavras separadas pelo destino.
“Eu pensava que era o que o povo dizia. Porque só era ela assim de mulher que tinha em Dois Riachos, que jogava mais os meninos. Só ela. Aí o povo tinha aquele preconceito ruim”, relata a mãe, Teresa.
Agora, quanta diferença. Quando a cidade para, é porque uma notícia está correndo de boca em boca: a filha da dona Teresa está por lá.
“A gente roda o mundo inteiro, mas, nas férias, sempre que a gente pode a gente está aqui. Porque é aqui que eu nasci e aqui que eu quero morrer”, garante Marta.
No primeiro campo oficial, nasceu uma dupla imbatível: a coragem da Marta e a valentia do Tota. Graças a ele, a menina não desistiu.
“No campeonato, teve um professor que queria proibir ela de jogar com os meninos. Porque ela é mulher e os meninos levavam drible dela, ficavam com vergonha e faziam queixa ao professor”, conta o professor.
Foi Tota quem ensinou Marta a driblar os absurdos que surgiam no caminho. “Discriminaram a Marta, Marta foi discriminada várias vezes por alguém por aí afora”, diz Tota.
Marta aprendeu a ser forte com o exemplo da mãe. Dona Teresa separou-se do marido com seis filhos pra criar.
Ela acompanhava o esforço de Marta de coração apertado. E, muitas vezes, de estômago vazio. Se hoje Dona Teresa tem uma casa em que daria pra jogar futebol na sala, não esconde que chegou a passar fome junto com a filha.
“Teve vezes de eu caçar os quatro cantos da casa pra dar de comer a ela mesmo. E não tinha nada pra dar”, lembra a mãe.
Aos 14 anos, Marta soube que, no Rio de Janeiro, o Vasco procurava talentos.
“Eu digo: ‘Tu vai, Marta?’ ‘Vou’. ‘Mãe, deixa?’ Eu digo: ‘Deixo, por mim eu deixo’”, afirma Dona Teresa.
Vou, deixa, deixo. Daí em diante, tudo foi rápido assim. Em cinco meses, Marta foi pra Seleção Brasileira. Com 17 anos, estava na Copa do Mundo Feminina.
Logo depois, o telefone tocou. Era da Suécia. De onde?
“Caraca, Suécia? Deve ser um trote! Eu nem sei onde fica a Suécia", lembra a jogadora.
Marta encontrou a Suécia no mapa e se encontrou na vida. Lá, ela se tornou a melhor jogadora de futebol do mundo. Nessas terras úmidas e frias, ela se adaptou a um estilo de vida bem diferente... e ainda conseguiu fazer novos amigos.
Marta chegou levando um inseparável amigo sueco, o Candinho.
O viking mora em um vilarejo, perto da cidade de Malmo. A poucos quilômetros do prédio mais alto da Europa, as pessoas se vestem e seguem os costumes de 900 anos atrás.
As casas dos vikings tinham jardim no telhado, pra ajudar no aquecimento. E um dos produtos mais valiosos era o couro dos animais.
Candinho não corre nenhum risco de virar tapete de viking se Marta lutar por ele com a mesma garra que mostra em campo.
No estádio do Rosengard, de Malmo, ninguém precisa falar sueco pra entender quem é a estrela do time.
Marta dá atenção a todos, o tempo todo. Em sueco, o humor brasileiro.
O que emociona mais: um segundo ao lado de Marta ou 90 minutos de jogo? Escolha difícil, porque Marta não se cansa de provocar felicidade.
Em nove anos jogando lá, Marta foi sete vezes campeã sueca. Sem falar nas outras conquistas, nos gols que viraram imagens eternas do futebol.
Marta ganhou duas medalhas olímpicas: prata em Atenas e Pequim. E foi eleita a melhor do mundo cinco vezes seguidas.
Dois Riachos é a única cidade no planeta que recebeu tantas vezes esse troféu. E se Marta ganhou tantos prêmios por tudo o que mundo viu, merecia ainda mais pelo sofrimento que o mundo não viu.
Nessa terra sempre tão seca, foi uma enchente que marcou a vida da família.
“Deu uma trovoada. E a minha casa era um salãozinho, se encheu de água. Ficou uma coisa horrível. Eu me ajuntei mais esse menino mais velho, nós, todos dois, chorando, aí a casa cheia d’água. Um dia, eu pedi, ‘meu Deus, um dia eu vou morar numa casa, Deus vai me dar ainda a oportunidade de eu morar numa casa’. Eu morava num salãozinho. Aí Jesus parece que ouviu meus pedidos naquele dia, porque era muito pequenininha a casa, o esgoto era pequeno, a água invadia todinha dentro de casa. E hoje em dia eu tô morando numa mansão dessa, eu vô reclamar por quê? Vou ter que agradecer a Deus! Que Deus deu a oportunidade da minha filha... Ela dizia: ‘Oh, minha mãe, a senhora vai ver, ainda um dia a senhora ainda vai ter uma vida sossegada, com fé em Deus’. Aí eu pensava, dizia assim: ‘Ê, minha filha, pare de sonhar alto. Não sonhe alto não, porque nós não tem condição minha filha, como é que você vai fazer isso?’ ‘Não se incomode, minha mãe, deixe comigo, um dia a senhora vai ver’. E foi dito e feito!”, conta a mãe.
“Só o fato de eu ter conseguido fazer isso pra minha mãe, dar uma casa pra ela, dar um lar... E ela hoje tá vivendo de uma maneira mais tranquila. E imaginar tudo o que ela já passou na vida dela, é a minha maior conquista”, diz Marta.
Agora ela vai em busca do ouro. Já ajudou muita gente. Quer ajudar muito mais.
“Você vê o Tota, que é uma figura fantástica. Ele hoje ainda faz isso, a vida inteira se dedicou ao esporte e com tanta dificuldade”, afirma a jogadora.
O esforço do professor Tota já valeu a pena, mas ele continua. Traçou uma linha reta e dela não desvia. Ele sabe que quem desiste de mudar o mundo não passa de um riacho seco.
Fonte: G1