As prisões realizadas na manhã desta quarta-feira pela Polícia Civil no Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará, em operação denominada "game over" para combater a manipulação de resultados no futebol foram baseadas, além de grampos telefônicos, em relatórios sigilosos de empresas especializadas no ramo. Elas já trabalham de forma pró-ativa de olho no mercado brasileiro, identificado como próximo grande alvo das quadrilhas asiáticas que fraudam resultados esportivos. O GloboEsporte.com teve acesso aos relatórios sigilosos que embasam as denúncias contra os presos nesta manhã. Os documentos mostram detalhadamente a oscilação de apostas antes e durante os jogos, com a movimentação suspeita que aponta a fraude. Esse tipo de relatório, de acordo com um executivo de uma dessas empresas especializadas consultados pela reportagem, só é feito em casos de suspeita muito forte de manipulação.
A única entidade no Brasil que faz um trabalho de prevenção efetivo é a Federação Paulista de Futebol (FPF). No início do ano, ela contratou a Sport Radar, empresa que também trabalha para outras entidades do futebol como Uefa, Concacaf, AFC, além de outros esportes. A situação é crítica no país, e o cenário é perfeito para a atuação dos grupos organizados. Competições de baixa visibilidade, jogadores com salários baixos, árbitros não profissionalizados, e nenhuma fiscalização preventiva pelas entidades que regem o futebol do país.
Mais de 10 anos depois do escândalo que abalou o Campeonato Brasileiro de 2005, envolvendo o árbitro Edílson Pereira de Carvalho, a CBF não tem qualquer equipe especializada interna ou terceirizada para monitorar e garantir a integridade dos jogos que organiza. A função fica nas mãos do corregedor de arbitragem Edson Rezende que, sozinho, pouco tem a fazer e admitiu depender basicamente de "denúncias" para agir:
- Pode ser que em razão dessa possibilidade da presença em mais jogos no Campeonato Brasileiro ela venha a contratar alguma empresa nesse sentido. Hoje está na situação de depender das denúncias.
Rezende também comentou o trabalho que existe atualmente:
- A estrutura que existe são os eventos realizados aonde são proferidas palestras pela Procuradoria do STJD, alertando clubes, jogadores árbitros, em função de qualquer suspeita tem de haver denúncia. Quando ocorrem possíveis suspeitas e a gente toma ciência, encaminhamos para os órgãos competentes. Esse trabalho tem de ser feito pelos órgãos competentes.
O procurador do STJD, Paulo Schmitt, que vem há algum tempo participando de eventos e seminários até da Interpol, já tinha conhecimento dos relatórios obtidos pelo GloboEsporte.com e afirmou ter informado CBF e Ministério Público dos respectivos estados sobre os casos.
- As autoridades não estão preparadas para combater. É um esquema muito grande, tanto no volume de apostas, como pelo número de apostadores espalhados pelo mundo inteiro. Imagino que tenha material para trabalhar contra esse crime organizado por muito tempo. O Brasil tem fatores que propiciam essas fraudes. O país é muito grandes, tem muito produto para manipulação, e não temos divisões especializadas nem nas federações esportivas, à exceção da paulista, como também não tem no Ministério Público e nas autoridades policias uma importância dada ao tema. As primeiras capacitações sobre o tema foram há cinco, seis anos, e a evolução do problema é muito rápida. Ainda estamos desprotegidos - explicou.
Veja abaixo as informações confidenciais contidas nos relatórios das partidas sob suspeita de manipulação:
SOROCABA 0 X 9 SANTO ANDRÉ - PAULISTA SUB-20 - 27/09/15
O relatório de investigação da partida ao qual o GloboEsporte.com teve acesso foi feito pela empresa Indexxdata, que trabalha em parceria com a Fifa. O documento destaca o placar "surpreendentemente alto" e descreve o cenário de que a partida foi jogada na primeira fase, com o Sorocaba sem chances de classificação. O relatório explica a razão da investigação:
"O Santo Andre venceu o primeiro jogo contra o Sorocaba, em casa, por 2 a 0 (1/07/2015). O jogo foi relativamente parelho, até o minuto 75 o Santo André liderava por 1 a 0. O Sorocaba perdeu oito em 21 jogos, todos relativamente parelhos, e o time só sofreu mais de três gols uma vez. Os jogos terminaram geralmente com um máximo de dois gols de diferença. A defesa do time era muito sólida, mesmo contra as melhores equipes do grupo, como Santos ou São Paulo. Não havia razão para que o clube sofresse um número tão elevado de gols. As probabilidades ("odds") de uma vitória fora estavam caindo de forma massiva antes do jogo nos mercados europeu e asiático. Além do pré-jogo, também houve movimentação anormal monitorada em mercados com aposta durante as partidas".
Em seguida, o documento traz a investigação do jogo, apontando que o Santo André terminou o primeiro tempo vencendo por 1 a 0. Em 39 minutos, marcou oito gols. Três jogadores do Sorocaba receberam cartões vermelhos, e o técnico também foi expulso. Depois, uma constatação suspeita:
"No jogo bem sucedido contra o time mais forte do grupo, o São Paulo, em 1 de agosto de 2015 (0 a 0), o Sorocaba atuou com jogadores totalmente diferentes. Dos 18 relacionados, somente dois foram novamente relacionados para o o jogo suspeito contra o Santo André dois meses depois. Ambos os jogadores foram reservas não utilizados contra o São Paulo. O mesmo aconteceu no dia 9 de setembro, contra o segundo time mais forte do grupo, o Santos, três semanas antes do jogo contra o Santo André. O Sorocaba atuou com um time diferente e muito mais forte (idêntico ao da escalação contra o São Paulo). Novamente, somente dois relacionados para este jogo atuaram contra o Santo André.
Uma investigação mostrou que o Atlético Sorocaba disputou a partida com jogadores Sub-17 e Sub-16. Jogadores Sub-20 estavam completamente ausentes. De acordo com a nossa informação, o clube resolveu dar férias aos jogadores Sub-20. (...) Um dia antes do jogo contra o Santo André, um jornal local bem informado, concentrado em esportes na área de Sorocaba, informou a escalação prevista para a partida, que consistia no melhor time Sub-20 do Sorocaba. Nenhum sinal de Sub-17 no jogo".
AUDAX 3 X 0 DUQUE DE CAXIAS - COPA RIO - 22/10/15
A partida válida pela Copa Rio, competição disputada por clubes de menor porte no Estado, teve fortes suspeitas de manipulação com um agravante: as apostas indicam um grande volume colocado no resultado exato, o que torna a fraude mais complexa e possivelmente envolvendo os dois clubes. A reportagem teve acesso ao relatório da empresa Sport Radar sobre a partida. Foram monitorados 400 bookmakers (os que operam as apostas) e constatado que todos os bookmakers da Ásia retiraram o jogo da sua lista aos 84 minutos.
"Dado que os precisamente orquestrados padrões de apostas observados para a partida têm exatamente três gols no total, é provável que ambos os times tenham sido cúmplices na manipulação dessa partida. (...) Houve uma aposta altamente suspeita para que o Duque de Caxias essencialmente perdesse por um placar de 3 a 0, com padrões de apostas evidentes nos primeiros minutos do segundo tempo. As probabilidades de retorno para esse desfecho caíram a níveis preocupantes sem nenhuma justificativa e está claro que grandes quantias estavam sendo apostadas de modo a suprimir as probabilidades a níveis tão baixos.
(...) Dessa forma, os serviços de segurança acreditam que é muito possível que os sindicatos de manipulação de resultados asiáticos tenham infiltrado equipes nas ligas brasileira com o único propósito de gerar lucros de apostas fraudulentas".
RIO PRETO 4 X 0 BARUERI - PAULISTA SÉRIE A3 - 11/02/2016
Um dos casos, em São Paulo, já era conhecido e foi amplamente noticiado no início deste ano. O jogo entre Rio Preto e Barueri, em fevereiro, gerou um documento de 39 páginas da empresa. Diz o relatório, gerado pela Sport Radar:
"Nos live markets (como são chamados os sites que oferecem apostas também durante as partidas), houve apostas muito fortes e suspeitas de que o Barueri perderia a partida por pelo menos dois, três e quatro gols, ao lado de apostas igualmente suspeitas em partida com muitos gols. Embora tenha havido apostas suspeitas para esses desfechos em vários placares, o período mais significante de aposta foi observado com o placar em 1 a 0, e refletiu um nível muito suspeito de confiança na derrota do Barueri por um mínimo de dois gols de diferença em um jogo com pelo menos quatro gols no total".
BOTAFOGO X QUISSAMÃ - CAMPEONATO CARIOCA - 16/03/2013
Dois relatórios gerados pela equipe interna da Fifa e entregue aos GloboEsporte.com pelo procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) apontam suspeitas em dois jogos do Campeonato Carioca. O primeiro deles é da partida Botafogo 4 x 0 Quissamã, em 16 de março de 2013. Diz o documento:
"As probabilidades parecem suspeitas em todos os bookmakers da Ásia. Logo antes do intervalo, as probabilidades eram normais, mas então elas caíram drasticamente, significando que muitos apostadores estavam colocando dinheiro em mais de 2.75 gols na partida. (...) Como houve mais três gols marcados na partida, todas essas apostas venceram.(...) Do nosso ponto de vista, esses movimentos de probabilidades são suspeitos e essa partida provavelmente foi manipulada".
VASCO 3 X 1 QUISSAMÃ - CAMPEONATO CARIOCA - 13/04/2013
No outro relatório interno gerado pela Fifa, a partida entre Vasco e Quissamã pelo Campeonato Carioca também levantou suspeitas. O documento também foi entregue à reportagem por Schmitt e traz demonstrações dos mercados de apostas para embasar as suspeitas:
"As probabilidades caíram de 2.12 para 1.46 (ou seja, em 2.12, para cada 100 dólares apostados, o apostador recebe 212; com 1.46, para cada 100 dólares, o apostador recebe 146) nos primeiros 33 minutos do jogo, isso com uma linha constante de 2.75 gols. Como o jogo terminou com quatro gols no total, todas essas apostas venceram. (...) Baseado nos dados disponíveis, o comportamento das probabilidades durante o jogo é altamente suspeito e a partida provavelmente foi manipulada".
ITAPIPOCA 4 X 0 ICASA - CAMPEONATO CEARENSE - 25/03/2016
A partida também teve um relatório gerado por uma das empresas especializadas no ramo, mas a reportagem não teve acesso a esse documento. Um executivo da companhia consultado pelo GloboEsporte.com revelou que a aposta mais suspeita foi durante a partida, quando o Itapipoca já vencia por 3 a 0. Houve um grande volume de dinheiro apostando que haveria mais gols do Itapipoca, sem que sofresse nenhum gol. O profissional ressaltou que o último gol da partida foi "defendido de forma pobre".
Fonte: GloboEsporte.com