Há 40 anos, a história do Carnaval carioca passaria por uma transformação definitiva. Após contratar a peso de ouro o carnavalesco Joãosinho Trinta, bicampeão pelo Salgueiro, uma pequena escola — a Beija-Flor de Nilópolis — rompeu o restrito clube das então quatro grandes (Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano) e conquistou o título do Carnaval de 1976. Comandando o canto de seus componentes estava Luiz Antônio Feliciano Marcondes, um jovem cantor que atendia pela alcunha de Neguinho da Vala e era um dos compositores do samba da agremiação. Hoje, a Beija-Flor é uma potência da Sapucaí, acumulando 13 títulos. E Neguinho deu uma nova roupagem ao ofício de cantar sambas na avenida. Marcou com seu grito de guerra inconfundível e vive uma carreira solo de bastante sucesso. Ao UOL Carnaval, o puxador faz um balanço de seus 40 anos de avenida.
Você imaginava chegar a 40 anos na avenida cantando sempre pela Beija-Flor?
A intenção era de começar e terminar a carreira pela Beija-Flor. Mas não imaginava que chegaria a esse ponto. A escola me abraçou, é um casamento que deu certo. Estou no meu segundo casamento, mas com a Beija-Flor já estou a caminho das bodas de ouro (risos).
Como a música entrou na sua vida?
Venho de uma família de músicos. Meu pai tocava trompete e piston. Quando criança, queria aprender o piston, mas minha mãe não deixava, porque o instrumento deixava uma marca feia nos lábios. Eu acabei seguindo a música de outra forma, passando a compor e cantar.
E a Beija-Flor?
Em 1971 eu entrei para o Cordão da Bola Preta e já fazia parte do bloco Leão de Iguaçu (atualmente, escola de samba). Fiquei no Leão até 1975. Neste ano, o Anísio (Abraão David, patrono da Beija-Flor) pediu ao Cabana, compositor histórico da escola, que me chamasse para substituir o Bira Quininho, que era o puxador e tinha falecido recentemente. Naquele ano, disputei o samba e venci. Assim, estreei no estúdio cantando meu samba e a Beija-Flor ainda foi campeã pela primeira vez com “Sonhar com Rei Dá Leão”. Dali, não parei mais.
Mas você ali ainda não era o Neguinho da Beija-Flor…
Não. Era o Neguinho da Vala. Porque, quando criança, no bairro Nova América, em Nova Iguaçu, vivia nas valas e lagos caçando rãs e muçuns. Era o rei da pescaria dos valões. Aí o apelido pegou. Passei a ser da Beija-Flor em 1978, por sugestão de um amigo. Estávamos em uma churrascaria e ele disse para o Anísio: “já que existe Martinho da Vila e Jorginho do Império, por que não mudar o nome dele para Neguinho da Beija-Flor?”. Ele concordou e mudei meu nome.
Você foi o precursor dos gritos de guerra nos discos de samba-enredo. O grito “Olha a Beija-Flor aí, gente!” surgiu por acaso, não?
Eu tinha um pagode chamado “Olha o Camburão” e ele estava começando a fazer sucesso quando fui gravar o samba da Beija-Flor. O refrão dizia “Olha o camburão, aí, gente!”. Estava aguardando a minha vez de gravar e, quando ela chegou, gritei para o Lourival Reis, que era o produtor do disco: “Olha a Beija-Flor aí, gente!”. Eu não sabia, mas o microfone já estava ligado e o grito foi gravado. Depois, quando foi mixar a faixa, o Lourival resolveu deixar para marcar que o samba era da escola. Me perguntou o que achava, se o Anísio deixava. Eu disse que sim, à revelia dele (risos). Quando o LP saiu, foi aquele sucesso. E, nos anos seguintes, as outras escolas passaram a copiar. Hoje é o grito mais famoso da avenida, já foi usado em várias propagandas. E eu não patenteei. Mas não me queixo, porque o grito só tem força com a minha presença. E aí eu faturo uma grana com comerciais.
Falando nisso, recentemente você teve um entrevero com a Friboi…
Eles me fizeram uma proposta indecente para fazer um comercial. Mas não foi igual a do filme, de 1 milhão de dólares. Em vez disso, me ofereceram uma merreca. Eu achei uma falta de respeito, não comigo, mas com o sambista. Eles pagam bem para todos os artistas, aí vem com esmola para o negão da escola de samba? Agora até parei de comer carne. Só vou no peixe e no frango (risos).
Você deu luz à figura do puxador de samba-enredo, já que Jamelão era mais conhecido por ser um cantor consagrado da MPB. O público passou a conhecer os puxadores e formou-se um mercado. Como você vê essa situação?
Cantores como Aroldo Melodia e Dominguinhos do Estácio começaram antes, mas concordo contigo. Acho que ajudei em fazer toda uma classe reconhecida, especialmente por conta da grande vendagem dos discos nos anos 70, 80 e 90. Hoje puxador é quase um jogador de futebol. Pede um rio de dinheiro para renovar contrato. Mas eu nunca fui assim. Nunca quis dinheiro da Beija-Flor e nunca quis sair daqui. Sou grato a tudo que a Beija-Flor me deu. Graças a Deus tenho uma carreira durante o ano que o Carnaval me propiciou. Viajo muito pelo mundo cantando. Em março passo um mês nos Estados Unidos. A partir de junho, farei show por três meses por toda a Europa.
Você nunca recebeu dinheiro da Beija-Flor, mas sabe-se que várias escolas já tentaram contratá-lo. Você nunca ficou balançado?
Hoje nem tentam mais. Nos anos 80, vinham com caminhões de dinheiro, mas eu nunca pensei em sair da Beija-Flor. E te digo, com a idade que tenho e a notoriedade, eu prefiro a vida que tenho do que ser um milionário desconhecido. Vivo com o suficiente. Tenho carro, moro de frente pro mar, faço quatro refeições por dia. Sou feliz.
Mas você poderia ser o Neguinho e estar em outra escola ganhando um bom salário.
Mas sou feliz assim. Tenho uma longa carreira, 39 discos, muitos sucessos em todo o Brasil. Não há necessidade. Acho até uma falta de consideração pedir dinheiro para cantar na avenida. Nada contra quem faça, acho até que eles estão certos. Mas a Beija-Flor me deu muito.
Nesse ano você cantou sambas nas disputas de outras escolas. Como foi a sensação?
Gravei sambas da Mocidade, da Ilha e da Grande Rio. Os compositores eram amigos e os sambas eram bons. Na única vez em que fui na Mocidade cantar, o samba foi eliminado. Acho que sou pé frio (risos).
Como cantor e compositor, você lançou o canto de torcida mais famoso nas arquibancadas. Você é rubro-negro, mas essa música foi feita pro Vasco, não?
Muita gente não conhece o meu lado compositor. Sempre achei que como cantor eu não daria certo, porque minha voz é rouca. Só sou cantor porque uma vez, no Leão de Iguaçu, uma amiga, chamada Edna, me perguntou por que eu não cantava. E me disse: “você conhece um cantor chamado Louis Armstrong? A voz dele é muito mais rouca do que a sua. Quem sabe você não vire o Louis Armstrong brasileiro?”. E aí eu me animei a cantar. “Domingo” surgiu da encomenda de um cara chamado Paulo Ramos, que era cantor da noite. Ele queria fazer uma torcida organizada para o Vasco. Fiz a música para a torcida dele. Um dia fui lá em Bento Ribeiro (subúrbio do Rio) ensinar o samba para a galera. Vi o pessoal cantando “ô,ô,ô,ô,ô, Vasco!” e reparei que tinha ficado legal. Dois dias depois ele me ligou dizendo que tinha se desentendido com o pessoal, que a torcida tinha acabado e eu poderia ficar com a música. Aí eu mexi na letra, tirei as citações ao Vasco e a música virou esse sucesso.
Certamente, o maior de seus sucessos…
De uns tempos para cá, está sendo alcançada por “Mulher”, que é uma música que fiz de brincadeira há uns 40 anos com um amigo engenheiro de Manaus, chamado Murilo Rayol, mas nunca gravei. Estávamos no Bola Preta e não parava de entrar mulher. Aí fizemos a música. Há alguns anos, estive em Manaus para um show, o reencontrei e ele me lembrou da canção. Cantei de brincadeira no show e o sucesso foi imediato. Ao voltar pro Rio, minha esposa, Elaine, que cuida de minha carreira, correu para reservar estúdio. Gravei e estourou. E olha que nem tocou muito nas rádios, foi basicamente por causa da internet.
Como você vê o espaço do samba na mídia atualmente?
O samba permanece, apesar dos modismos. Eu já vi bolero, iêiêiê, soul, lambada, axé, forró, tudo na moda. Hoje é o sertanejo universitário. Mas o samba permanece na dele, comendo pelas beiradas. Como diria Nelson Sargento, o samba agoniza, mas não morre. E te digo com plena convicção que o samba é a música que representa a nossa cultura fora do Brasil. É o que o pessoal lá fora quer ouvir.
Voltando a falar de carnaval, quais foram os desfiles que te marcaram?
“Sonhar com rei dá leão” (1976), “A criação do mundo na tradição nagô” (1978) e “A constelação das estrelas negras” (1983) me marcaram muito porque a Beija-Flor foi campeã com sambas meus. “O Mundo é uma bola” (1986) e “Ratos e Urubus” (1989) porque foram desfiles fantásticos, mas que não foram campeões. Mas tem um especial, o de 2009, quando cantei me recuperando de um câncer e me casei com a Elaine na Sapucaí. Tinha passado por um tratamento pesado de quimioterapia, desfilei com um médico do lado, mas consegui cumprir minha missão. Era um tipo de câncer pesado, em que minha possibilidade de sobrevivência era de 35%. Mas eu venci, graças a Deus. O carinho do povo foi muito importante na minha recuperação. Sou eternamente grato aos fãs.
Até quando veremos o Neguinho na avenida?
Bem, o Jamelão foi até os 95 anos. Acho que posso ir até aos 105. Como tenho 65, ainda faltam 40 anos.
Fonte: UOL