General Severiano, 12 de dezembro de 1948. Botafogo e Vasco chegam com o mesmo número de pontos ao jogo que vai decidir o Campeonato Carioca. O público, pouco mais de 18 mil pessoas, é o bastante para lotar o pequeno estádio, território botafoguense desde 1913. Clubes e Federação concordaram que o árbitro seja Mário Vianna, o que faz questão dos dois enes. Melhor ele, conhecedor das manhas e mutretas do jogador brasileiro, do que Barrick, Ford, Devine, Lowe ou Dundas, um daqueles “misters” contratados para ensinar os times brasileiros como será a arbitragem da Copa do Mundo, daqui a um ano e meio (até agora, a única novidade que eles parecem ter nos trazido são os números nas camisas dos jogadores, usado pela primeira vez nesta temporada). Tudo pronto, portanto, para aquela que será uma das mais memoráveis decisões de Campeonato Carioca.
Mas o que faz este jogo tão especial? De saída, o fato de ser a primeira vez que a decisão se dá entre os dois. Os estatísticos lembram que, desde 1923, quando estreou na primeira divisão, o Vasco só chegou atrás do Botafogo duas vezes, uma delas nos primeiros anos do profissionalismo, quando havia dois campeonatos, os oficiais (ganhos pelo Botafogo) e os piratas (disputados pela dupla Fla-Flu e outros grandes).
Ainda na questão dos números, valoriza esta final as campanhas que os dois vêm cumprindo. O Botafogo teve uma estreia desastrosa: derrota de 4 a 0 para o São Cristóvão, neste mesmo General Severiano. Depois, com os mesmos 11 jogadores, da segunda à última rodada, não perdeu mais. O Vasco, campeão invicto do ano passado, deu a impressão de que repetiria a façanha: oito vitórias nos oito primeiros jogos. Com as derrotas para o Fluminense e o próprio Botafogo, nas duas últimas rodadas do primeiro turno, ficou um ponto atrás do Botafogo, o novo líder. No segundo turno, enquanto o Vasco voltava a crescer, com nove vitórias consecutivas, Botafogo empatava com o Fluminense, na quarta rodada, e voltava a dividir a liderança com seu adversário desta tarde.
CACHORRO CAMPEÃO
Números à parte, uma verdade até o mais apaixonado alvinegro reconhece: a excelência deste time do Vasco, que ganhou meses atrás, no Chile, o primeiro título de um time brasileiro no exterior: o de campeão dos campeões sul-americanos. Dos onze jogadores escalados por Flávio Costa para hoje, nove têm status de seleção brasileira (Barbosa, Augusto, Wilson, Ely, Danilo, Friaça, Ademir, Ipojucan e Chico, seis dos quais estarão na final da Copa do Mundo de 1950). Os dois que completam o lado vascaíno, o lateral Jorge e o atacante Dimas, se jamais chegarão à seleção, são homens de confiança de Flávio Costa.
E o Botafogo? Do time que Zezé Moreira manteve depois da derrota da estréia — Osvaldo Baliza, Gérson, Nílton Santos, Rubinho, Ávila, Juvenal, Paraguaio, Geninho, Pirilo, Otávio e Braguinha — apenas um, Pirilo, já vestiu a camisa da seleção brasileira, mas há seis anos, quando tinha apenas 26. Nílton Santos, Otávio e o Baliza só serão convocados no ano que vem, e os demais, nunca. Assim, numa medição de forças, neutra, objetiva, não há como negar o favoritismo do Vasco.
Memorável, também, a decisão há de ser justamente por suas manhas e mutretas, todas fora do alcance de Mário Vianna. O presidente botafoguense, Carlito Rocha, homem supersticioso em cujo peito bate um imenso coração de torcedor, não perdoa o presidente vascaíno, Ciro Aranha, por ter proibido seu mascote, o cão Biriba, de pisar o gramado de São Januário no jogo do primeiro turno. Para Carlito, Biriba dá sorte, é imprescindível, uma espécie de décimo-segundo jogador. Na ocasião, ele não discutiu com Ciro. Preferiu entrar em campo com Biriba nos braços. Resultado: Botafogo 2 a 1. Agora, Biriba vai passear por entre as pernas dos jogadores do Vasco quando eles estiverem em campo.
Esses jogadores, porém, já vão para a decisão com outros desconfortos. Queixam-se dos olhos que ardem, incômodo talvez causado pela cal com que o Botafogo mandou pintar as paredes do vestiário, horas antes do jogo. Queixam-se da sujeira desse vestiário, de paredes pintadas, mas bicas e chuveiros secos. Queixam-se mais ainda da coceira que se agravará com o suor, na certa resultado do pó-de-mico que torcedores lhes atiraram ao se dirigirem para o campo.
CHORO DE PERDEDOR
Por fim, o jogo. Com mais vontade, autoridade e coração, o Botafogo venceu por 3 a 1, gols de Paraguaio, Braguinha e Otávio, marcando Ávila, contra, o único do Vasco. O Botafogo não era campeão há 15 anos e ficará mais nove sem novo título. O Vasco voltará a ser o Vasco nos anos que se seguirão. Mas nenhum dos dois lados esquecerá tão cedo a decisão de 1948. O que perdeu, atribuindo a derrota às manhas e mutretas, só possíveis num estadinho como este, pequeno, não à altura de um clássico (as próximas decisões de campeonato hão de ser no grande estádio que começaram a erguer, meses atrás, no antigo Derby Club). Quanto ao lado que venceu, faz o que merece: em vez de choro, festa.
Fonte: O Globo Online