Um dia após o ministro do Esporte, George Hilton, dizer que a Medida Provisória do Futebol é inegociável, O GLOBO publica, com exclusividade, o texto redigido em conjunto pela CBF, federações e clubes, pedindo alterações na MP 671. O documento será entregue ao Congresso Nacional na tentativa de mudar a legislação de refinanciamento das dívidas dos clubes. De acordo com o novo vice-presidente de finanças da CBF, Rogério Caboclo, “houve unanimidade entre os clubes no sentido de que a MP merece reavaliação, revisão”.
- A presunção de todos é de que as coisas não aconteçam como previstas na MP. Ela tem força de lei, e o texto vigente hoje é o que nós temos, embora muita gente não acredite que vá vigorar. A Constitução garante a liberdade associativa e também a autonomia de funcionamento das entidades. Existe um outro princípio da não interferência do estado na atividade privada. São alguns temas que já merecem a incostitucionalidade (da MP). O documento foi adaptado para estabelecer aquilo que foi consenso na reunião (entre CBF, federações e clubes). Está finalizado e oportunamente vai ser entregue aos parlamentares para que eles possam discutir no alcance da MP talvez até os aspectos que ela ultrapassa a razoabilidade dentro daquilo que foi a razão da sua concepção - explicou Caboclo em entrevista ao GLOBO.
Confira, abaixo, a íntegra do texto:
“Algumas razões para se modificar a Medida Provisória nº 671:
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é favorável a contrapartidas para o refinanciamento das dívidas dos clubes de futebol, com ênfase na modernização da gestão, pagamentos em dia, administração financeira responsável, rígido controle orçamentário e ajuste fiscal e trabalhista.
Prova disso é a inclusão, no regulamento do Campeonato Brasileiro das séries A, B e C de 2015, do artigo que instaura o Fair Play Trabalhista. Entretanto, em que pese seu apoio irrestrito às medidas para a melhoria de nosso futebol, a CBF não pode deixar de registrar sua contrariedade ao texto atual da Medida Provisória (MP) Nº 671, de 19 de março de 2015.
A fim de levar informação ao torcedor brasileiro e à sociedade em geral, a CBF lista alguns motivos que apontam para a necessidade de revisão do texto da MP 671:
1) Caso a Medida Provisória nº 671 seja convertida em lei com o texto atual, os Clubes que aderirem ao refinanciamento poderão ficar impedidos de participar de campeonatos se ocorrer um dos dois seguintes fatores: (i) não conseguirem obter a CND – certidão negativa de débitos ou (ii) as Assembleias Gerais das Federações e da CBF ou seus Conselhos Técnicos não aprovarem a alteração dos estatutos e regulamentos de tais entidades. Em relação à CND, o paralelo que se utiliza é com as empresas que queiram participar de licitações, hipótese em que tal documento é indispensável. Ocorre que se uma empresa não obtiver a CND e, por consequência, não conseguir participar de licitações com o Poder Público, ela poderá se relacionar comercialmente com todo o restante do mercado. O clube, ao contrário, se não obtiver a CND ficará completamente impedido de exercer suas atividades, pois não poderá disputar nenhum campeonato. É o que determina o art. 5º, inciso V, alínea “b” da Medida Provisória.
Em relação à alteração de estatutos e regulamentos, tal medida não pode ser aplicada em âmbito administrativo pelos gestores das entidades de administração do desporto, pois dependem de aprovação de órgãos colegiados, como as Assembleias Gerais e os Conselhos Técnicos. Assim, os clubes que aderirem ao refinanciamento poderão ficar impedidos de participar das competições, caso a Assembleia Geral da entidade de administração do desporto não aprove eventual alteração estatutária exigida pela MP ou se os Conselhos Técnicos não aprovarem as exigências relativas aos regulamentos gerais das competições.
Nesse particular, merecem especial atenção as exigências de representação da categoria de atletas no âmbito dos órgãos e conselhos técnicos incumbidos da aprovação de regulamentos das competições (art. 5º, inciso II) e a participação de atletas nos colegiados de direção e na eleição para os cargos das entidades de administração do desporto (art. 5º, inciso IV, alínea “b”). Isso porque os atletas não reúnem condições legais nem estatutárias para integrar tais órgãos colegiados. A Assembleia Geral da CBF é composta pelas Federações e pelos Clubes participantes da Série A. As Assembleias Gerais das Federações são compostas pelos Clubes a estas filiados. Nesse contexto, os atletas seriam corpos estranhos à entidade e sua participação nos órgãos colegiados poderia até mesmo acarretar a nulidade das decisões. De se observar, ainda, a enorme distorção que seria causada, pois cada atleta integrante do órgão colegiado teria paridade de votos com os clubes. Ou seja, um atleta teria direito de voto igual a um Clube que
comporta e congrega centenas de atletas.
Trata-se de flagrante afronta ao princípio da liberdade de associação preconizado no art. 5º, inciso XVII, da Constituição Federal.
2) Outra peculiaridade da MP 671, estabelecida no art. 5º, inciso VI, é a determinação para que as entidades de administração do desporto estendam a todos os clubes participantes das competições os rigores direcionados pela MP aos clubes que aderirem ao refinanciamento, mediante a edição de normas nos regulamentos gerais das competições.
Caso a entidade de administração assim não proceda, os clubes aderentes ficarão privados de participar das referidas competições. Isso significa dizer que, se um clube aderir ao refinanciamento, a única hipótese deste clube seguir nas competições será mediante a extensão dos efeitos do art. 4oda MP a todos os demais clubes participantes.
As regras restritivas constantes da MP 671/15, especialmente no que tange ao tempo de mandato, à composição do corpo diretivo (integração de segmento específico, a saber, dos atletas) e manejo de recursos financeiros constituem extravasamento da competência legislativa da União; implicam a substituição da vontade associativa pela vontade legislativa (lato sensu), indicando um dirigismo estatal estatutário constitucionalmente inaceitável.
Como se estender a quem não se beneficia de programa de parcelamento fiscal contrapartidas que deveriam ser destinadas apenas aos aderentes, prejudicando aqueles que foram bem administrados ou que se encontram em situação de regularidade, por já terem aderido a outros programas de refinanciamento do Governo Federal? Onde está a isonomia?
O alcance das modificações que se pretende implantar com a MP 671/15 não se cinge, na prática, apenas às entidades esportivas que venham a se inserir no modelo de financiamento e dirigismo da medida provisória. Todo o sistema estruturado atualmente para o futebol profissional acaba sendo atingido, direta ou indiretamente, por meio da negativa de que entidades esportivas optantes do parcelamento financeiro permaneçam integrando-o, caso o sistema como um todo não se curve às deliberações da MP, seja, ato contínuo, pelo desmantelamento de todo o sistema atual.
As competições serão impactadas em seu número de participantes e, sobretudo, em sua organização. Importante notar que os maiores prejudicados serão os direitos relacionados à promoção social de formas de lazer e, ainda, as próprias entidades esportivas em dificuldades financeiras, que se agravarão pela exclusão que lhes é imposta quanto ao sistema atual, que envolve campeonatos não apenas nacionais, mas também regionais e internacionais. Isso representaria verdadeira exclusão dos clubes ou apequenamento e marginalização de competições, que reuniriam apenas parcialmente os clubes, desprovidas de critério técnico, separando em campeonatos distintos tradicionais competidores.
3) Outro aspecto que merece atenção especial é o conjunto de condutas exigidas pela MP aos clubes que pretendam obter o refinanciamento, bem como o prazo definido para a adesão ao parcelamento. Os clubes deverão fazer a confissão irrevogável e irretratável dos débitos, desistir de impugnações, recursos, ações e defesas, além de renunciar a quaisquer alegações de direitos, no prazo de 90 dias.
Porém, não há nenhuma garantia de aprovação final da MP e sua conversão em lei. Isso significa que os clubes podem ter desistido, renunciado, confessado e consolidado seus débitos em larga escala, tornando-os líquidos, certos e exigíveis, sem obter o parcelamento almejado.
4) No tocante às entidades internacionais, a CONMEBOL e a FIFA, como se sabe, não estão sujeitas à legislação brasileira e, portanto, não estariam subordinadas à MP. Ocorre que, pelo texto atual, caso tais entidades não sigam as regras estabelecidas pela MP, o clube que aderir ao refinanciamento estará automaticamente proibido, por lei, de participar de campeonatos internacionais promovidos por tais entidades, como a Copa Libertadores da América, Copa Sul-Americana, Recopa Sul-Americana, Copa Suruga e Mundial de Clubes.
Além disso, a MP 671, sob a nomenclatura de “equiparação”, estabelece verdadeira sobreposição de uma liga à entidade de administração do desporto, o que caracteriza infração ao sistema internacional do futebol. A intervenção de governos em entidades nacionais de administração do futebol viola as normas da FIFA.
Nos dois casos, os clubes nacionais e a Seleção Brasileira ficariam sujeitos a sanções que vão da perda do direito federativo dos atletas vinculados às agremiações que disputem uma nova liga até a impossibilidade de participação de clubes nacionais e da Seleção Brasileira em competições internacionais, como a Copa Libertadores da América, Mundial de Clubes, Copa América, Copa das Confederações e até da Copa do Mundo.
5) O clube que aderir à MP 671 poderá ficar impedido de participar de campeonatos que geram relevantes receitas, como direitos de transmissão, patrocínios e bilheteria, fontes indispensáveis ao cumprimento de seus contratos e ao pagamento das próprias parcelas do refinanciamento.
Ou seja, a Medida Provisória, que parcela as dívidas, poderá impedir que os clubes consigam saldá-las. Importante lembrar que os clubes terão que conviver com uma nova realidade de gestão, enfrentando todo o passivo tributário e trabalhista, paralelamente ao pontual cumprimento das obrigações correntes de toda espécie.
E, isso, sem qualquer aumento de receita e sem a garantia da manutenção dos recursos já disponíveis, pois nenhum clube está imune, por exemplo, ao descenso de divisão. Um eventual rebaixamento pode impor a um clube a perda de receitas de até 90%, se considerada a queda para a Série B, e de 100%, em caso de queda para a Série C.
6) A MP 671 demonstra desconhecimento em relação à realidade financeira do futebol brasileiro, em que competições são deficitárias e consomem subsídios e subvenções da CBF em valor que chegou a quase R$ 100 milhões no ano de 2014.
A CBF cumpre, portanto, um papel fundamental na manutenção de empregos, na ocupação de jovens em práticas desportivas saudáveis, no entretenimento das famílias em todo o país, enfim, na prática da cidadania.
Quem vai sustentar as séries B, C e D do Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil Sub-17, Copado Brasil Sub-20, Copa Verde e inúmeras competições estaduais, todas deficitárias?
Imagina-se uma liga que cuide apenas da Série A do Brasileirão, lucrativa, ou que realize também todas essas competições deficitárias, que reúnem mais de 200 clubes e cerca de 4.500 atletas de todo o Brasil?
7) No que concerne aos aspectos práticos, a MP 671 permite ao Executivo Federal uma ingerência inaceitável na gestão das receitas dos clubes. Isso porque, pelo art. 8oda MP, os clubes serão obrigados a indicar uma instituição financeira centralizadora para receber, com exclusividade, todas as suas receitas e movimentações financeiras, incluindo os pagamentos de patrocinadores, direitos de televisionamento, etc. Os clubes deverão, ainda, outorgar plenos poderes à instituição financeira, para que transfira mensalmente os recursos de suas respectivas contas aos entes credores, independentemente de qualquer intercorrência.
8) Por fim, importante registrar que o texto atual da Medida Provisória 671, além de atropelar inúmeros princípios do Estado Democrático de Direito, está eivado de inconstitucionalidades. O art. 217 da Constituição Federal está sendo flagrantemente violado. Isso porque, ao imiscuir-se em assuntos interna corporis das entidades esportivas, o texto da MP fere de morte o referido dispositivo constitucional. Além disso, incongruências e antijuridicidades permeiam o texto da MP. Como se admitir, por exemplo, o estabelecimento de um teto - no caso, 70% (setenta por cento) da receita bruta anual - para as despesas dos clubes com a folha de pagamento e direitos de imagem dos atletas profissionais de futebol? Se o clube empregador quer destinar 60, 70 ou 80% de sua receita para fazer frente a tais obrigações, quem tem que decidir isso é o clube e não a MP.
Como se admitir que o clube seja obrigado a investir numa atividade que não esteja necessariamente entre suas aptidões e prioridades ou que não integre sua esfera de interesses, em flagrante afronta aos incisos III e IV do art. 217 da Constituição Federal?
A cláusula constitucional da autonomia desportiva constitui um direito fundamental; a ela está agregada a garantia institucional das entidades esportivas. Ambas concretizam-se pela liberdade de organização e funcionamento das associações e entidades desportivas; o seu alcance constitucional inibe a produção de leis (lato sensu), cujo conteúdo seja tendencialmente o de substituir ou obstar as deliberações internas, o que materializa a intromissão estatal inconstitucional. A competência legislativa da União, em matéria de desporto, se restringe à criação de normas gerais, sem ser interventiva em assuntos interna corporis, pertinentes ao funcionamento e organização das entidades desportivas; as regras gerais estatutárias inscritas no Código Civil configuram um limite máximo constitucionalmente aceitável, ao prever a roupagem jurídica das entidades desportivas e ao prescrever pautas mínimas a serem deliberadas na configuração dos estatutos. Ademais, há um dever imposto ao Estado de fomentar, garantir e tutelar o sistema do desporto. É sob este prisma que o tema deve ser abordado; regras decompliance e accountability, especialmente no manejo de verbas relacionadas ao Poder Público, serão sempre bem-vindas, mas não podem significar o descarte do sistema constitucional brasileiro”.
Fonte: O Globo Online