Zagueiro do Vasco nos anos 60, Brito salvou abre-alas da União da Ilha com Fusca do Tri em 1977

Sábado, 14/02/2015 - 20:17
comentário(s)

"Vem, amor, vem à janela ver o sol nascer...", diz o primeiro verso do samba da União da Ilha do Governador de 1977. Para falar sobre o domingo, a escola inovou com o estilo "bom, bonito e barato", foi pioneira ao escolher um dia da semana como tema e bateu na trave para conquistar seu primeiro título no Carnaval carioca - perdeu para a poderosa Beija-Flor, de Joãosinho Trinta, por apenas um ponto. Presente logo no início da letra, o Astro-Rei também era parte fundamental do desfile com uma reprodução no abre-alas. Mas foi graças a um tricampeão do mundo de futebol que o sol pôde brilhar na passarela: o ex-zagueiro Brito, titular da Seleção na Copa de 1970, foi o responsável por rebocar a alegoria até a concentração após os componentes terem desistido de levá-la para a avenida. Para isso, usou o Fusca que os heróis do México ganharam do ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, como prêmio pela conquista da Taça Jules Rimet.

O SOL NA AVENIDA

A história começa sete anos antes daquele Carnaval. Após o terceiro título mundial do Brasil, os jogadores convocados por Zagallo ganharam um Fusca de presente da prefeitura de São Paulo - atitude polêmica de Maluf, que acabou acusado de ter lesado os cofres públicos e só foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2006. Foi com o fusquinha do Tri que Brito entrou também para a história da União da Ilha, escola do bairro onde nasceu e vive até hoje.

Se atualmente há uma estrutura profissional na Cidade do Samba, na região central do Rio, para o desenvolvimento do trabalho das escolas, em 1977 o barracão da União era na própria Ilha do Governador e os carros alegóricos eram empurrados pelos componentes até o local do desfile - na época, a Av. Presidente Vargas, no Centro, em um trajeto de quase 20 quilômetros.

O sol era o tema do abre-alas idealizado pela carnavalesca Maria Augusta Rodrigues e prometia ser um dos pontos altos do enredo "Domingo". Porém, na hora de tirar a alegoria do barracão, as luzes do carro não acendiam. Testa daqui, testa dali... e nada. A direção decidiu então abandonar o abre-alas e desfilar sem ele. Até que surgiu Brito para dar um empurrão - literalmente - à escola.

Vizinho do barracão no sub-bairro do Tauá, o tricampeão saía de casa com seu fusquinha para ir à avenida desfilar pela bateria da União - craque no tamborim, Brito também costumava defender a Mangueira. Ao ver o abre-alas abandonado, o ex-zagueiro estacionou, amarrou o sol no veículo dado por Maluf e o rebocou até a Av. Presidente Vargas - ao contrário da grandiosidade atual dos desfiles na Marquês de Sapucaí, a alegoria tinha praticamente as dimensões de um automóvel. Para surpresa dos componentes, o abre-alas apareceu na concentração da escola, as luzes acenderam em um novo teste e o Astro-Rei estava pronto para desfilar.

- Quando eu vi o abre-alas no barracão, eu falei: "Não, isso não vai ficar aqui não. Vai pra avenida!". Tinha dado um trabalho danado fazer aquele carro, ele tinha que ir para o desfile. Amarrei o carro no para-choque e fui devagarinho pela Avenida Brasil até o Centro, atrapalhando o trânsito. O pessoal buzinava, mas eu levei assim mesmo. O sol era o ponto forte da escola, o samba começava com ele... Como que vai sair sem o sol? - lembra o tricampeão.

No fim das contas, o abre-alas levado por Brito ganhou ainda mais brilho com o sol - de verdade - que já brilhava no céu do Rio quando a escola foi para avenida na manhã de segunda-feira. O resultado do esforço do ex-jogador foi um desfile histórico da União da Ilha. Em apenas seu terceiro ano no principal grupo do Carnaval carioca, a agremiação insulana ficou na terceira posição e perdeu o título por somente um ponto para a Beija-Flor (nos critérios de desempate, a Portela ficou em segundo lugar).

O inédito enredo sobre um dia da semana caiu no gosto popular e possibilitou à carnavalesca Maria Augusta o uso de materiais simples e de fácil entendimento do público - uma oposição ao estilo luxuoso que Joãosinho Trinta começava a impor. Na parte sobre o futebol, por exemplo, cerca de 200 torcedores de Flamengo, Vasco, Fluminense, Botafogo, América e Bangu desfilaram com as bandeiras e camisas dos seus clubes, as mesmas que levavam para o Maracanã aos domingos. Havia ainda surfistas com pranchas, bermudas e chinelos brincando nas alas. Um parquinho do bairro emprestou uma roda gigante para servir como alegoria e até pipoqueiros desfilaram com seus carrinhos de verdade.

TRABALHO NO BARRACÃO

Além de tocar tamborim na avenida, Brito envolvia-se com a União durante praticamente o ano todo. O ex-zagueiro não só rebocou o abre-alas de 1977, como ajudou a construir vários carros alegóricos da escola em outros anos.

- Sempre ajudei o barracão e saí na bateria. Sempre gratuitamente, não cobrava nada. Ajudava a ornamentar carro, fazia esculturas, decorava... Naquela época, o pessoal empurrava os carros no braço da Ilha até a avenida. Não era mole não, causava um transtorno grande no bairro. Os carros tinham que sair de madrugada para atrapalhar menos - conta o ex-zagueiro.

No momento do desfile, mesmo quando se misturava aos foliões na bateria, era encontrado pelos fotógrafos que viam no tricampeão uma figura ilustre na escola insulana, ainda modesta na época. Quarta colocada na disputa de 2014 e cotada para voltar no desfiles das campeãs novamente em 2015, hoje a Ilha atrai os flashes por si só, enquanto Brito curte seus 75 anos com muita pescaria e longe da passarela entre os amigos do bairro ou na casa de praia em Maricá.

- Todo mundo queria ir com ele na bateria, porque a única foto da Ilha que saía no jornal era a do Brito tocando tamborim. Hoje ele não frequenta tanto, mas seus filhos costumam ir à quadra - diz o jornalista Anderson Baltar, que revelou a história do Fusca de Brito no livro "As primas sapecas do samba", que conta as trajetórias da União, da Caprichosos de Pilares e da São Clemente.

A presença de Brito não é a única relação da escola da Ilha do Governador com o futebol. Fundada em 1953, a União originalmente era um time que disputava peladas pelo bairro e usava as cores azul, vermelha e branca. Até o símbolo da agremiação tem influência do esporte mais popular do país, já que o brasão repete o formato do escudo do Bangu e a faixa na diagonal seria uma referência ao Vasco (conheça a história no vídeo abaixo). Há ainda outro campeão mundial nascido no bairro: Nilton Santos, bi em 1958 e 1962, mas que não era muito de samba:

- Ele gostava, mas não desfilava. Tinha vergonha - brinca Brito.

MALUF E OS FUSCAS

A doação de 25 Fuscas verdes aos campeões mundiais de 1970 (22 jogadores e parte da comissão técnica) foi uma das primeiras polêmicas da vida política de Maluf. Prefeito de São Paulo duas vezes (entre 1969 e 1971 e de 1993 a 1997) e governador do estado de 1979 a 1982, Maluf atualmente está em seu terceiro mandato como deputado federal.

Em 3 de julho de 1970, os vereadores paulistas aprovaram a lei municipal 7.485 autorizando a prefeitura a pagar Cr$ 315 mil para a compra dos automóveis. A entrega dos fusquinhas aos campeões aconteceu no dia 20 de julho, praticamente um mês após a conquista definitiva da Jules Rimet (21 de junho).

O ato rendeu dor de cabeça a Maluf por mais de 30 anos. Acusado de ter lesado o erário (as finanças da cidade), o político foi processado e condenado a devolver o dinheiro em 1974. Maluf recorreu, mas voltou a ser condenado em 1981 pelo STF - o tribunal alegou que a doação aos jogadores não poderia ser bancada pelos cofres públicos por não atender ao requisito do interesse social. O ex-prefeito (então já governador) depositou o valor em juízo e recorreu novamente em 1983. O caso teve outras ações e embargos, e em 1995 o STF decidiu que Maluf não deveria devolver o dinheiro da compra dos carros. Mas o processo só transitou em julgado em 2006.

Apesar da polêmica, os tricampeões aceitaram o presente. Alguns demonstraram arrependimento depois, como Tostão. Outros negociaram o carro para usar o dinheiro (Piazza investiu em um posto de gasolina, por exemplo). Brito usou o fusquinha por 11 anos e depois o vendeu para um amigo da Ilha do Governador.

Assim como o automóvel, a União hoje também não faz mais parte do dia a dia do ex-zagueiro de Vasco, Flamengo, Botafogo, Atlético-PR, Internacional, Cruzeiro e Corinthians. Brito deixou de lado o tamborim e o barracão para virar apenas um torcedor pela televisão:

- Desfilei pela escola desde quando ela estava no terceiro grupo. Agora me afastei um pouco. A Ilha sempre foi uma escola alegre, esse é o seu forte. Acho que esse ano vai fazer um grande desfile e voltar no desfile das campeãs. A União vai voltar sim.

E, dessa vez, para voltar não precisará do empurrão de um tricampeão do mundo.



Fonte: GloboEsporte.com