Ex-capitão da seleção brasileira, Hilderaldo Luís Bellini — que, em 1958, consagrou-se ao erguer com as duas mãos sobre a cabeça a Taça Jules Rimet — começou a perder a memória há 18 anos. De início, esquecia-se de itens da lista do supermercado, e, com a evolução do quadro, chegou a pedir a um taxista que o levasse ao treino do Corinthians (décadas antes, ele jogou no São Paulo). O diagnóstico na época foi de mal de Alzheimer, e assim o ex-craque foi tratado até sua morte, em março passado, aos 83 anos. Mas, pela desconfiança de médicos que o acompanhavam, a família concordou em doar seu cérebro ao banco de encéfalos humanos da USP. Seis meses depois, uma surpresa: Bellini sofria, na verdade, de encefalopatia traumática crônica (ETC), doença neurodegenerativa que acomete principalmente atletas de esportes violentos.
Os detalhes da análise do cérebro de Bellini serão apresentados hoje no Rio, durante o Congresso Internacional de Neuropatologia. A doença, que ocorre pela repetição de golpes na cabeça, já foi encontrada em jogadores de futebol americano, boxeadores e até militares que vão para o front de batalha e sofrem com a proximidade de bombardeios. Já havia suspeitas quanto a futebolistas, mas os pesquisadores da USP finalmente conseguiram caracterizar a doença nesses atletas, abrindo portas para novas investigações.
— O problema não é exatamente a batida, mas a sacudida do pescoço quando ela ocorre. O cérebro faz uma espécie de dança e bate nas partes da frente e de trás, iniciando as alterações — explica a autora do estudo, a médica patologista Lea Grinberg, professora da USP e da Universidade da Califórnia em São Francisco. — Não há cura, mas a ETC é prevenível. O brasileiro quase que aprende a andar e a jogar futebol ao mesmo tempo, portanto é preciso pesquisar mais sobre ela. Será que o risco de futebolistas é grande? Será que é preciso nos preocuparmos com o jogador de final de semana? E as crianças, que têm um pescoço mais frágil, teriam mais risco? Ainda não temos essas respostas.
ANÁLISE DO CÉREBRO LEVOU A DESCOBERTA
Também veio ao Rio para o congresso uma das principais especialistas no tema no mundo. Neuropatologista e pesquisadora da Universidade de Boston (EUA), Ann McKee lembra que a doença foi apresentada em 1928 como a síndrome do pugilista. Por anos, pensou-se que afetava só esse grupo.
— Apenas recentemente descobrimos que a ETC podia atingir atletas que praticam esportes populares, incluindo jogadores de futebol americano, hóquei, rúgbi e futebol — acrescentou Ann, em entrevista ao GLOBO. — A doença pode ter sintomas clínicos do Alzheimer, mas dentro do cérebro a patologia é diferente.
Por isso, a autópsia após a morte do indivíduo ainda hoje é a forma mais segura de definir o diagnóstico da ETC. Não há cura nem tratamento específico. Fatores genéticos podem estar envolvidos, mas são os traumas os principais algozes. A doença pode atingir atletas jovens, por volta dos 20 anos, que começam a mostrar mudanças de comportamento e humor. Ela progride muito lentamente, e os demais sintomas aparecem anos após a aposentadoria. Os pesquisadores acreditam que aqueles que sofrem frequentes pancadas na cabeça poderão ser avaliados com mais cuidado aos primeiros sinais de demência. Inclusive, eles supõem que muitos dos diagnosticados com Alzheimer poderiam ter ETC. Já se cogitou que o boxeador Muhammad Ali seria um deles.
Quem inicialmente desconfiou do quadro de Bellini foi o neurologista Ricardo Nitrini, professor da USP, que atendeu o ex-jogador em seus últimos anos. Ele só cogitou que poderia ser algo além do Alzheimer porque, anos antes, o grupo da USP diagnosticou um boxeador brasileiro com ETC, trazendo à tona a grande similaridade de sintomas entre as doenças.
— Os primeiros estudos sobre a demência pugilista davam conta de comportamentos mais violentos, mais abobalhados. Mas nesses dois casos os sintomas eram clássicos do mal do Alzheimer — comentou o médico, citando perda de memória progressiva, assim como dos movimentos e, depois, das funções vitais.
Nitrini diz que uma nova fronteira sobre a doença está se abrindo, mas ainda é cedo para alarmes sobre possíveis mudanças nas regras de futebol, discussão que tem sido mais intensa no caso do futebol americano:
— Um caso confirmado é só um indício de que é preciso estudar isso.
PROCESSOS CONTRA LIGA AMERICANA
Segundo Ann McKee, entretanto, para prevenir a doença, o debate sobre ações que reduzam o risco de traumas na cabeça em esportes deveria entrar logo em pauta. A pesquisadora, por sinal, fez parte de uma recente polêmica sobre o tema nos Estados Unidos.
Em 2002, um pesquisador da Universidade da Nigéria, Bennet Omalu, foi o primeiro a relacionar a doença com jogadores de futebol americano. Ele encontrou o mal entre atletas que morreram por suicídio, acidentes ou abuso de drogas. Suas descobertas foram, no entanto, descreditadas e, segundo ele, autoridades do futebol chegaram a insinuar que ele “praticava vodu”. Em 2012, Ann — que tem um banco com mais de 200 cérebros de atletas — mostrou numa conferência que, dos 34 cérebros de ex-jogadores de futebol americano analisados, 33 tinham a doença. Ao todo, ela diagnosticou o problema em 120 atletas e veteranos militares.
Com mais evidências científicas e a pressão popular, a Liga Nacional de Futebol Americano dos EUA (NFL, na sigla em inglês) anunciou, no ano seguinte, o investimento em US$ 100 milhões em pesquisa, assim como avaliações das contusões de jogadores. Ela pagará ainda US$ 765 milhões a algumas centenas de processos judiciais de ex-atletas que estavam expostos ao risco e afirmam que a liga omitiu a informação deles.
ESPOSA NOTOU PRIMEIROS SINAIS
Bellini era “bem família” e chegou a recusar convites para estrelar filmes em Hollywood ou ser técnico de futebol. Após a aposentadoria, aos 40 anos, preferiu a tranquilidade de uma escolinha que montou e onde permaneceu até os sintomas da doença piorarem. Giselda lembra-se com detalhes dos primeiros sinais de esquecimento do marido, que começaram há 18 anos, quando ele deixava de trazer itens da lista de compras.
— Ele viveu muito bem por vários anos, porque sempre se cuidou muito. Dava entrevistas, até porque eram sempre sobre o seu passado — lembra Giselda. — O problema piorou logo depois que voltamos da Copa na Alemanha, em 2006.
Dessa época ela se lembra de dois episódios que a assustaram. Uma vez ele fez saques de dinheiro, que foram achados depois em sua casa. Noutra, pediu para um taxista levá-lo à unidade do Corinthians dizendo que ia treinar.
Mas o que Gilselda prefere recordar é da vida de “cinema romântico” que teve com um dos mais famosos jogadores do mundo. Ambos de Itapira, interior de São Paulo, eles se conheceram numa festa em homenagem ao jogador, quando ela tinha 14 anos.
— Fiquei envaidecida de estar perto daquele homem lindo. Começamos a namorar e nos casamos em seguida — recorda Giselda, que completou suas bodas de ouro ano passado.
Fonte: O Globo online