Afonsinho, Reinaldo, Sócrates e Vladimir. Para um torcedor de futebol já cinquentão e nostálgico, o quarteto poderia ser parte de um time dos sonhos dos anos 70 e 80 jamais escalado. Para os órgãos de repressão da ditadura de 1964-85, porém, os quatro eram subversivos a serem seguidos e vigiados, comprovam documentos guardados no Arquivo Nacional agora liberados para consulta.
A papelada mostra que agentes dos extintos Serviço Nacional de Informações e órgãos militares, como os Centros de Informações do Exército e da Marinha, monitoraram atletas, times, entidades e jornalistas esportivos. Um dos dossiês arquivados, de 6 de março de 1972, do Serviço Nacional de Informações, tem como alvo o hoje médico aposentado Afonso Celso Garcia Reis, o Afonsinho, de 67 anos. O texto "Confidencial" faz um suposto perfil do meia que começou no XV de Jaú e passou por Botafogo, Olaria, Vasco, Santos, Flamengo, Fluminense.
Então estudante de medicina, o atleta lutava pelo passe livre e por melhores condições de trabalho e remuneração. Também usava uma barba que o indispunha com técnicos "disciplinadores". O perfil atraiu arapongas, comprova a documentação. "O jogador AFONSINHO, face ao elevado nível intelectual que possui em relação ao meio profissional (...) e em função de seu temperamento rebelde e irreverente, que lhe emprestam uma personalidade marcante, está sempre a liderar os seus companheiros de profissão", diz o documento.
"Quando jogador do Olaria, foi desligado da delegação (...) por conta de suas atividades extrafutebol. Assim é que, quando chegava nas cidades, onde os jogos seriam realizados, fazia conferências e frequentava reuniões comunistas." O documento atribui a Afonsinho "a imagem da rebeldia (...) através de sua aparência física e seu intelecto desenvolvido". Apresenta como suspeita uma lista de viagens do jogador ao exterior (México, Buenos Aires, Nova York, Paris). "No passaporte do objeto (sic) registra entrada na COREIA DO NORTE em 05/05/70 e em HONG KONG dia 20/05/70."
Outro dossiê sobre Afonsinho, de 29 de dezembro de 1971, foi produzido pelo Centro de Informações da Marinha. Diz que Afonsinho, então no Vasco, vinha "se constituindo num dos possíveis líderes do movimento subversivo junto a seus colegas de profissão". "Recentemente, criou um problema social, no Vasco da Gama, por ocasião da renovação do contrato do jogador Alcyr, tendo tirado partido da situação, inclusive explorando o problema racial", diz o texto. O documento ainda o acusa de, em férias na França, ter feito curso de capacitação política "junto a elementos ligados à AP (Ação Popular, grupo de esquerda)".
Delator. Mais de 40 anos depois, Afonsinho se intriga com a origem das informações - muitas sem fundamento, segundo ele. O ex-atleta se lembra do incidente na viagem do Olaria. O motivo foi o pagamento de um bicho (gratificação por vitória). Suspeita que dirigente "meio esquisito", que não citou, tenha sido o delator. "Uma delegação é um grupo restrito", diz, recordando o desligamento da excursão. Afirma ainda que as viagens citadas pelo SNI foram a trabalho, inclusive as visitas à Coreia do Sul (e não do Norte) e a Hong Kong.
"Não fiz curso nenhum, não, nem tive encontros de cunho político nas viagens", relata. Mas confirma amizades com militantes. "Tenho amigos que participaram de todas as formas." Afonsinho conta que fez amizade com atletas da Tchecoslováquia e Iugoslávia, então países comunistas. Afirma que não se recorda do episódio envolvendo Alcyr, mas admite que pode ter conversado sobre renovação de contrato.
Fonte: Estadão (texto), Reprodução internet (foto)