Passaram 20 anos e o Brasil não viu surgir um jogador com as características de Dener. Craque de uma época de transição do futebol brasileiro, o eterno camisa 10 da Portuguesa era um vento de genialidade arrancando nos gramados e desviando dos rivais. Não ganhou fortuna, mas começava a conquistar o mundo do futebol. Isso tudo recebendo dinheiro em pacote de pão e guardando dentro do armário da tia. Falecido 17 dias depois de completar 23 anos em acidente de carro no dia 19 de abril de 1994 - e dois jogos antes de conquistar seu segundo título profissional, o tricampeonato carioca pelo Vasco -, Dener Augusto de Souza gerou um espólio de R$ 5 milhões à viúva e aos três filhos. Mas até hoje o clube de São Januário não quitou o acordo assinado em 2007. Vinte anos depois da morte dele, após longa batalha judicial, Luciana Gabino reclama de 14 meses de atraso de pagamentos do Vasco, que ainda possui débito superior a R$ 1 milhão no espólio do craque.
O imbróglio jurídico que a morte de Dener gerou é dividido em duas histórias e tem o mesmo motivo: o Vasco não fez seguro de vida para o jogador. Para a Portuguesa, o clube acordou em 1999 um pagamento de R$ 4,6 milhões. Para a viúva, R$ 5 milhões.
Entre os clubes, tudo já foi resolvido, mas quem sofre ainda para receber o espólio do jogador é a viúva Luciana Gabino. Namorada desde a adolescência do ex-jogador, com quem teve três filhos, ela, através dos seus advogados, entrou com pedido de penhora no fim do Brasileiro de 2013 e também na reta final do estadual deste ano. Mas foi em vão. A diretoria vascaína, diz o advogado Renato Menezes, alega que os gastos com aluguel de estádio, entre outros custos, não permitem a retirada de parte da verba para penhora. O clube de São Januário não cumpre um pagamento do espólio assinado em 2007 há mais de um ano e meio. Resultado: os cerca de R$ 700 mil que o Vasco devia - das últimas parcelas da dívida - hoje já passam de R$ 1 milhão com acréscimos de multa e os juros por atraso do acordo.
Valores e morte no dia do acerto
A contratação de Dener pelo Vasco era a mais badalada do grande time montado para a disputa do tricampeonato carioca de 1994. Astro da Portuguesa, campeão gaúcho em curta passagem pelo Grêmio em 1993, ele era cobiçado por grandes clubes do futebol brasileiro e chegava ao Rio determinado a impressionar o técnico Carlos Alberto Parreira para tentar vaga na Copa do Mundo nos EUA. O seguro de vida previsto no empréstimo ao Vasco era o mesmo preço da cláusula de venda do jogador: US$ 3 milhões.
No dia da sua morte, Dener retornava ao Rio depois de uma reunião com o então presidente da Portuguesa, Manoel Pacheco Gonçalves, que acertara verbalmente sua venda pelos mesmos US$ 3 milhões para o Stuttgart, da Alemanha. Por volta das 5h15 da madrugada de 19 de abril, o Mitsubishi branco com a placa DNR-0010 bateu numa árvore na Avenida Borges de Medeiros, na Lagoa, bairro da Zona Sul do Rio. Otto Gomes Miranda era o motorista. O jogador do Vasco dormia com o banco do carona deitado, foi asfixiado pelo cinto de segurança e ainda bateu com a cabeça no teto do carro que estava em alta velocidade, segundo a perícia. Otto disse que dormiu no volante. Dener morreu por causa de uma asfixia por lesão da laringe e com uma contusão no pescoço
Pelo acordo, o Vasco pagaria 85% do valor - R$ 3,2 milhões - através do ato trabalhista no Tribunal Regional do Trabalho do Rio - o espólio de Dener passaria ao topo da lista de credores vascaínos -, mais os 15% restantes - R$ 1,8 milhão - em 36 parcelas mensais de R$ 50 mil. O valor de R$ 5 milhões acordado era bem inferior aos R$ 15 milhões pedidos no início do caso.
- Esse espólio deveria ter se encerrado em setembro de 2010, pois foi assinado em setembro de 2007. Estamos em 2014. A última vez que o Vasco pagou faz mais de um ano e meio. E ainda pagaram metade do valor - afirma Renato Menezes, advogado de Luciana Gabino.
Renato faz duras críticas à administração Roberto Dinamite:
- Ele nos recebeu apenas uma vez, mas nem atende o telefone. É um mau pagador, digo isso com todas as letras.
Durante a campanha para a presidência do Vasco em 2006, conforme recordam o advogado e a viúva de Dener, Dinamite entrou por telefone ao vivo no programa "Superpop", da apresentadora Luciana Gimenez, e prometeu que, caso fosse eleito presidente, resolveria antes de qualquer coisa o pagamento aos familiares do ex-jogador.
- Ele disse “eu joguei com ele, imagino o que a família deve estar sofrendo, faço aqui essa promessa”. Mas, assim que assumiu a presidência, logo no primeiro mês já atrasou o pagamento - lembra o advogado.
- Na época dele, o Eurico Miranda contestou muitas coisas ao longo do processo, demorou anos para fazermos o acordo. Queria contestar que ela não era casada no papel com Dener, o que não existia, já que era uma união estável, tinham três filhos, moraram na mesma casa. Ele também achava que já tinha pago uma quantia para a mãe e isso bastava, mas a herdeira era a mulher, os filhos. Mas, a partir do momento em que foi feito o acordo, ele cumpriu com tudo. Até ele sair da presidência, foram 12 parcelas pagas à Luciana.
A viúva chegou a ser ameaçada de despejo por atraso no pagamento do condomínio da casa no Jardim São Paulo, bairro na Zona Leste paulista. Ela lamenta a situação e faz críticas aos dois dirigentes vascaínos:
- Eurico foi um filho da mãe, falava que não ia pagar, que não devia nada, mas, quando a Justiça apertou, ele me pagou, cumpriu o que foi acordado. Quando Dinamite entrou, pensei que estava tudo resolvido, mas, imagina, piorou.
Procurado para dar entrevista sobre a dívida que o clube ainda tem com a família de Dener e sobre as declarações do advogado e da viúva de Dener, o presidente do Vasco não respondeu ao GloboEsporte.com. O primeiro pedido de posicionamento, registrado em e-mail, foi feito no dia 24 de fevereiro. No período, até a publicação da matéria, houve diversos contatos para tentativas de retorno do clube, mas nada foi respondido.
Acordo sob pressão
A morte de Dener, uma perda irreparável para a família e para o futebol brasileiro, representou também um gasto de quase R$ 10 milhões para os cofres vascaínos - o clube também pagou cerca de US$ 20 mil para a mãe quitar um dos apartamentos que o filho comprara. Alto investimento da equipe para o tri de 1994, o empréstimo de Dener junto à Portuguesa custou US$ 350 mil ao Vasco, mais o empréstimo do zagueiro Tinho.
Sem o seguro de vida do jogador - o Vasco fez apenas seguro por acidente de trabalho -, o clube foi responsável pela maior indenização da história da Portuguesa. O fato gerou até uma homenagem inusitada.
O advogado Marcelo Ferro, à época do escritório Sergio Bermudes, um dos maiores do país, foi homenageado na Portuguesa pelo desempenho na ação contra o Vasco.
- Foi curioso que junto comigo foram homenageados, como pessoas que ajudaram a Portuguesa, o Zagallo e o ex-prefeito Celso Pitta - recorda ele, referindo-se ao político morto em 2009 que chegou a ser preso por denúncias de corrupção.
Além do escritório de Bermudes, atuou no caso outro sobrenome muito conhecido no judiciário brasileiro. Sérgio Zveiter foi contratado pelo Vasco e participou da ação até ser nomeado secretário de Justiça do Rio, se afastar e colocar Isaac Zveiter para seguir no caso. Antes disso, porém, sem o Vasco responder à citação da Portuguesa no prazo de 15 dias, o clube de São Januário terminou condenado a pagar os US$ 3 milhões à Lusa em menos de três meses de ação.
- Fora o seguro do empréstimo, do Vasco com a Portuguesa, o Vasco tinha que ter feito um seguro em nome da família. Não fizeram nenhum dos dois, por isso que pagaram os dois - relata o advogado de Luciana Gabino.
À época vice de futebol do presidente Antônio Soares Calçada, Eurico Miranda justificara dizendo que Dener não queria fazer seguro em nome da Portuguesa. O Vasco também alegava que não poderia fazer seguro de pessoa física para pessoa jurídica, o que terminou caindo por terra quando a Portuguesa apresentou um seguro de vida assinado no empréstimo anterior feito pelo Grêmio.
- Quando o emprestamos para o Grêmio, eles fizeram esse seguro de vida nos mesmos moldes que a Portuguesa pediu ao Vasco. Eles (o Vasco) ganharam a primeira ação, mas depois juntamos essas peças (o seguro que o Grêmio fizera) e reverteu a situação - lembra o deputado federal Arnaldo Faria de Sá, ex-presidente da Portuguesa no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990.
Depois de série de derrotas nos tribunais, até o caso chegar a Brasília, cinco anos depois da morte de Dener os dirigentes acertaram um acordo com a Portuguesa em consequência de uma pressão inesperada. O advogado do clube paulista conseguiu na Justiça que o novo patrocinador vascaíno, o Bank of America, colaborasse com o processo. Do investimento de R$ 34 milhões, porém, “apenas” R$ 16,5 milhões haviam sido registrados como pagamento em contas correntes do clube.
Faltavam R$ 17,5 milhões que o advogado Marcelo Ferro queria saber qual destino tinha: “O Vasco só não paga à Portuguesa porque não quer, eis que dispõe de todos os recursos para tanto”, dizia a petição de janeiro de 1999. Nela, ele pedia que fossem apresentados os demais valores, data, nome dos beneficiários e contas correntes pagos a terceiros. No desenrolar da história, em 13 de abril, o Vasco pediu a suspensão do processo por chance de acordo entre as partes e em seguida, no dia 27 de julho, os clubes de origem portuguesa acertavam o pagamento de R$ 4,6 milhões - valor bem inferior ao US$ 3 milhões do seguro de vida de Dener.
Craque que preferia o drible ao gol, Dener - nome escolhido pela mãe para homenagear um estilista e costureiro famoso no Brasil, um dos pioneiros da moda no país - não completou nem quatro anos como profissional. Mas escreveu história, arte e polêmicas que vão ficar para sempre entre torcedores, ex-jogadores e todos que conviveram com o Reizinho do Canindé.
Fonte: GloboEsporte.com