Tico deixa escapar um sorriso na maior parte do tempo em que lembra de Dener. Ex-ponta-direita da Portuguesa e um dos melhores amigos do craque, ele viu o “Reizinho do Canindé” em sua essência: desde a arte dos dribles e gols fantásticos até as travessuras e rebeldia do garoto que conheceu aos 12 anos. Foi ainda no dente de leite, em amistoso da Lusa contra o Vila Maria, um clube que era mais conhecido pelas disputas de futebol de salão na Zona Norte de São Paulo, que Dener se destacou e chamou a atenção do seu Pixú, falecido olheiro da Portuguesa que à época o levou para o Canindé.
- Ficamos amigos de cara - lembra Tico, hoje com 43 anos, e coordenador de uma escolinha de futebol na Freguesia do Ó, em São Paulo.
Era o início de uma trajetória marcada por uma ascensão fulminante, muita arte dentro de campo e, na mesma medida, polêmicas fora das quatro linhas.
- Ele andava com os meninos de mais idade, saía com eles para as festas - conta Vladimir Huertas, que foi treinador de Dener no Vila Maria.
O garoto aprontava e brilhava quase que com a mesma intensidade.
- As irmãs dele vinham ver os jogos, às vezes, não era só para vê-lo jogar, mas para saber dele, porque ele não dormia em casa. Queriam ver se estava aqui mesmo – lembra o ex-técnico de futebol de salão.
PESO DA AUSÊNCIA PATERNA
Filho da dona Vera Lúcia, que era cozinheira numa escola municipal próximo à Vila Ede, onde o garoto nasceu e cresceu, Dener mal conheceu o pai, de quem sua mãe se separou antes de o menino nascer e de quem o craque ficou órfão aos nove anos. Para muitas pessoas entrevistadas pelo GloboEsporte.com, a ausência paterna é fundamental para entender a personalidade controversa do garoto.
- Dener era brincalhão, sorridente, mas tinha um ar meio triste, acho que era essa coisa de não ter conhecido muito o pai - conta Tico.
Amigo desde o início da Portuguesa, ele define o enigma em torno da história de seu Wilson, pai de Dener, como “segredo de família”. A tia Vanda, irmã de dona Vera, não vê um vazio na falta do pai na vida do garoto. Para Dener e para a família, o avô José Lourenço foi quem virou um pai para ele - assim como Seu Pixú, que o levou para a Portuguesa.
Luciana Gabino pensa diferente e acha que Dener sentia falta do pai que conheceu pouco.
- Ele falava que queria dar tudo para os filhos dele. Queria ser o pai que ele não teve. Dener fazia de tudo pelos filhos - lembra a viúva de Dener, que o conheceu com 13 anos - ele tinha 15, idade de quando começaram a namorar.
A DETENÇÃO
“Bicho esperto”, segundo descrição de Cristóvão Borges, técnico do Fluminense que jogou no meio de campo da Portuguesa no início da carreira do craque, Dener chegou a ser preso com outros cinco garotos menores de idade em 1987. A passagem é desconhecida da biografia do jogador e um ponto delicado para muitos dos personagens ouvidos pela reportagem comentarem.
Dener foi detido junto com outras cinco pessoas e levado para a 9ª Delegacia de Polícia de Carandirú, na Zona Norte da capital paulista. A detenção ocorreu no dia 17 de outubro de 1987, quando Dener tinha 16 anos e já era jogador de destaque da base da Portuguesa.
Nos arquivos do processo no judiciário de São Paulo, aos quais o GloboEsporte.com teve acesso, consta o seguinte relato no boletim: “o menor foi orientado e advertido e convidado para uma vez por mês aparecer na Divisão de Apoio ao Menor na Comunidade Posto Norte. Frente ao exposto, considerando que o menor é primário, não denota vivência infracional, pareceu-nos sincero no discorrer de seu relato de que não participou do ato de furtos e danos, demonstra ser oriundo de família de boa índole, onde os membros são ativos. Não permaneceu em nenhuma unidade da FEBEM”.
José Carlos, o Taquá, ex-jogador da seleção brasileira de futsal, era um dos amigos do futebol nessa época e foi quem o ajudou a logo deixar a delegacia. A pedido da mãe de Dener, Taquá foi até José Rubens, diretor do Colégio Bilac, onde o futuro craque estudava e jogava futebol de salão. “Rubinho” assinou um termo de responsabilidade, e Dener foi liberado dois dias depois da delegacia, encaminhado para o programa de liberdade assistida da Febem. O adolescente foi levado durante seis meses, uma vez a cada 30 dias, para consulta com assistentes sociais e psicólogos da instituição de recuperação de menores de São Paulo.
- Ele ia porque seu Mário Fofoca levava. Ele fez muito pelo Dener - recorda o ex-atacante Sinval, hoje dono de motéis no interior paulista.
Tico atribui os momentos mais difíceis de Dener às más companhias e a um comportamento um pouco permissivo, apesar da personalidade forte. Lembra que, às vezes, o amigo estava na concentração - a dupla dividia quarto na Portuguesa - “sossegado”, mas o procuravam e ele não sabia dizer não.
- Ele teve problemas na infância. Aquela coisa de criança pobre, criada na periferia, acontecem algumas coisas. Ele tinha andado por uns lados meio tortos, teve essa parte da Febem, começou a fazer umas artes erradas, mas graças a Deus apareceu o esporte, aquele amistoso com a Portuguesa, que o tirou da Vila Maria, e ele subiu. Entre erros e acertos, conseguiu chegar longe - lembra Tico.
REBELDIA E TÍTULOS NA QUADRA
Edinho, ex-goleiro do Santos, filho de Pelé e um dos grandes amigos da vida de Dener, define os problemas num período da vida como casuais de um “rebelde sem causa”, de um moleque criado na rua, que já tinha passado por muita coisa na vida.
- Ele já tinha superado vários desafios, várias armadilhas que a vida oferece para jovens sem muita direção. Mas o futebol deu um norte para ele. Dener superou tudo através do futebol. Virou atleta profissional e era cobiçado pelo mundo inteiro - destacou Edinho.
Antes disso tudo, no Colégio Bilac, onde ganhou bolsa de estudos e foi reprovado na 1ª série do Ensino Médio em 1988, Dener era o craque de um time multicampeão. Também pudera. Na mesma equipe jogavam Gilmar (ex-zagueiro, com grande passagem pelo São Paulo) e Sandrinho (ex-jogador da seleção brasileira de futsal). Anos mais tarde, o garoto pobre da Vila Ede reapareceu de Mitsubishi Eclipse para visitar professores e diretores.
Pelo Colégio Bilac, Dener confirmou o talento no futebol de salão (Foto: Arquivo Pessoal)
- Ele uma vez me procurou dizendo que ia cancelar a matrícula no colégio, porque não tinha dinheiro para a passagem. Conseguimos arrumar passe (transporte) para ele, que ficou. Passados quatro, cinco anos, ele aparece com aquele carrão e, se quisesse, poderia comprar o colégio - lembra Rubinho, diretor da escola.
Paparicado desde os primeiros dribles na carreira, Dener fazia jogadas geniais quase na mesma proporção em que causava arrepios nos dirigentes.
Pepe, bicampeão mundial com o Santos de Pelé em 1962 e 1963, foi técnico da Lusa em 1993. Ele se diverte com as recordações do menino-craque do Canindé, a quem julga ser um dos cinco maiores atacantes de todos os tempos - no hall de jogadores como Pelé, Puskas e Eusébio.
- Lembro que o Capitão, que era um líder do grupo, me chamava: “Seu Pepe, não se preocupe se ele não aparecer, se não treinar, ele aparecendo para jogar já é um grande ganho para a gente. Precisamos muito dele”. De vez em quando, ele aprontava umas, sumia, mas não adiantava essa coisa de “Ah, vamos multar em 60%". Tive que me moldar a um tipo de comportamento de um jogador fora de série. E valia a pena. Porque ele resolvia - afirma o ex-ponta-esquerda santista.
ESTREIA COM LOPES E DURA DE LEÃO
Antes de despontar na Copa São Paulo de juniores de 1991, Dener estreara nos profissionais da Portuguesa em 1989, com Antônio Lopes. O atual diretor de futebol do Atlético-PR foi responsável pelo resgate do garoto que se afastara da Lusa para jogar futebol de salão. Dener atuava em vários times na quadra de cimento. Tinha sido campeão diversas vezes de intercolegial pelo Bilac, campeão pelo Vila Maria, entre outras equipes que defendia e lhe pagavam bem melhor do que a Portuguesa.
- No futebol de campo, às vezes não tínhamos dinheiro para pegar ônibus, para ir para o treino. Eu jogava na General Motors já, o Dener foi para lá, saiu do Bourdon, já tinha passado pelo Água Branca. Era onde a gente ganhava dinheiro - lembra Taquá.
Sinval lembra bem desse tempo. Comparando com os dias de hoje, o ex-atacante, que brinca e diz que graças a Dener e Tico virou profissional (“eles me davam as bolas e era só eu botar para dentro”), diz que era uma diferença muito grande no pagamento.
- Se comparar com os dias de hoje, na base a gente ganhava uns R$ 200 por mês, por aí. No salão, Dener ganhava por jogo muito mais que o dobro disso. Então ele simplesmente sumia. Aí iam lá, buscavam-no, mas depois se aporrinhava e desaparecia de novo. Até que finalmente o valorizaram e prometeram pagar mais, ajudar a dona Vera. E ele ficou de vez - conta Sinval.
O presidente da época na Portuguesa era o deputado federal Arnaldo Faria de Sá. Em 1991, depois de vencer a Copa São Paulo de juniores em campanha brilhante, Arnaldo levou toda a garotada para o Planalto para encontrar o presidente Fernando Collor de Melo. O ex-presidente da Lusa cita como episódios de indisciplina as vezes em que o jogador forçava a barra para levar mulheres - “as loiras dele” - para a concentração. Dener chegou a morar em alojamento da Portuguesa, mas logo o clube alugou um apartamento para ele, para Luciana Gabino e para os filhos em São Bernardo, onde foi vizinho de Tico.
Centro das atenções da Portuguesa, Dener era o ídolo da garotada e assunto obrigatório da imprensa no Canindé. Como acontecia dentro de campo, os repórteres marcavam em cima o craque da Lusa e qualquer deslize já ia parar nas páginas de jornais. “Vagabundo genial” e “À procura de um rumo” foram algumas das capas da Gazeta Esportiva que questionavam a postura fora de campo de Dener.
- Não podia dar colher de chá para ele. Senão estava perdido - recorda Leão, que o cobrava na frente de todos.
O treinador completa:
- Uma vez, ele chegou no vestiário chorando, contou que estava com um amigo que tinha sido morto pela polícia. Falei para ele: “Sorte sua que foi ele. Nessas horas a gente teme que seja você”.
Série especial
O GloboEsporte.com traz um especial para lembrar Dener e um webdoc sobre vida e morte do craque (assista no início da matéria). Depoimentos de amigos, família, ex-companheiros e técnicos. Casos dentro e fora das quatro linhas. Dribles e polêmicas. A história interrompida ainda nos seus primeiros capítulos.
Fonte: GloboEsporte.com