Algumas das melhores frases sobre futebol têm se inspirado na vida dos goleiros. Uma, de Dom Rossé Cavaca (frequentemente usada por outros escribas como se deles fosse), está hoje numa das salas do Museu do Futebol, em São Paulo: “Desgraçado é o goleiro, onde ele pisa nem grama nasce". Outra, de José Paulo Kupfer: “As vezes, o que passa entre as pernas do goleiro não é a bola, mas a tragédia.” Outra mais, de Araújo Netto: “O goleiro, no Brasil, se não for realmente a entidade infalível, não presta; e, sendo infalível, não faz mais do que a sua obrigação". Essas e várias outras caberiam como epígrafe de qualquer história que se fosse contar sobre Moacir Barbosa, o mais sofrido jogador de toda esta série dedicada a grandes personagens brasileiros em Copas do Mundo.
A razão de Barbosa ser tão maltratado pela História é conhecida por quem quer que algum dia tenha se interessado por futebol neste país: foi nele que o uruguaio Alcides Edgardo Ghiggia marcou o gol que impediu o Brasil de ser campeão mundial em 1950.
Melhor, contudo, seria rever o gol nas raras imagens que sobraram dele e concluir que não houve frango. Preocupado com a possibilidade de Ghiggia centrar para o meio da área, como fizera no primeiro gol uruguaio, Barbosa concentrou-se naquele ponto, o meio da área. Mas Ghiggia não centrou. Chutou prensado, rasteiro, não muito forte, no canto esquerdo de Barbosa, que saltou fração de segundo atrasado e não defendeu. Claro, dizer que não foi frango é negar a História. Ou melhor, é contrariar a versão dos primeiros historiadores.
A estreia de Barbosa na seleção brasileira deu-se em dezembro de 1945, no Pacaembu, pela Copa Rocca: Argentina 4, Brasil 3. Em 1948, graças às suas atuações pelo Vasco, Barbosa tomou-se o goleiro número um do país. Pela seleção, foi campeão sul-americano em 1949 e disputou as seis partidas da Copa do Mundo. Até a final fatídica, sofrera quatro gols (dois contra a Suíça, um contra a Suécia e um contra a Espanha), todos indefensáveis. Da mesma forma, não houve como impedir que o petardo desferido por Juan Schiaffino, emendando bola centrada por Ghiggia, empatasse o jogo. Até o gol de Ghiggia, aos 23 minutos do segundo tempo, Barbosa foi entidade infalível por 527 minutos. Mas ainda faltavam 23.
Barbosa jamais se esquivou de lembrar o fato, com detalhes, para jornalistas, do mundo inteiro, que o procuraram. Não foi por outro motivo que, em 1993, na véspera do Brasil x Uruguai decisivo das eliminatórias para a Copa do Mundo, aceitou convite de televisão britânica para conversar com Taffarel na Granja Comary. Infeliz ideia. Mais infeliz ainda foi a decisão do comando da seleção brasileira de barrá-lo na entrada. Motivo? Podia transmitir ao goleiro de agora a maldição de 1950.
Talvez tenha partido do próprio Barbosa a consciência mais nítida do absurdo de sua história: "A pena máxima no Brasil é de 30 anos, mas pago há 50 por um crime que não cometi", repetiu ele pouco antes de morrer, aos 82, em 2000. Discutia-se então se eram de fato as traves do Maracanã, as do gol de Ghiggia, as que ele queimou para exorcizar num churrasco o segundo gol uruguaio. Hoje, já não importa se eram as verdadeiras ou não. Se eram para ele, que sejam para nós. Resta a esperança de que a culpa que imerecidamente Barbosa carregou Dor tanto tempo tenha se ido com a fumaça.
Fonte: Extra