Os dirigentes dos clubes são cautelosos ao falar dela. Os advogados, mais ainda. Entre os especialistas, há quem defenda a ideia – mas outros a renegam. Mas a possibilidade de a Justiça comum voltar a ser acionada na elite do futebol brasileiro é grande neste fim de ano, em mais uma crise que envolve gigantes brasileiros e rebaixamentos decididos nos tribunais. E no que depender dos torcedores, é cada vez maior a chance de o Brasileirão 2013, que já deixou o campo, ir além da rua da Ajuda, local da sede do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
Sobre as consequências, as opiniões se dividem entre a certeza do triunfo e o pessimismo pelas mais duras punições da CBF e da Fifa. Exclusão, suspensão e eliminação são algumas delas, prevista no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), mesmo que não seja a agremiação a autora da ação – basta que ela se beneficie. Para os que defendem o recurso, o risco, porém, é mínimo. O que é quase certeza, segundo especialistas ouvidos pelo Portal da Band, é que a crise do futebol brasileiro pode se arrastar 2014 adentro. E há até quem defenda um “novo Brasileirão” com 24 clubes.
Nas torcidas de Portuguesa e Vasco, grupos estão se mobilizando para buscar os seus direitos e do clube em ações na Justiça comum, baseados no Estatuto do Torcedor e até na Constituição Federal.
Pela Lusa, segundo a colunista da BandNews FM, Mônica Bergamo, há uma movimentação por parte dos dirigentes para que torcedores influentes entrem com ações. O clube perdeu quatro pontos pela escalação irregular de Héverton e foi rebaixado.
Proibição é “lenda”
No lado vascaíno, o advogado Luiz Roberto Leven Siano tem prestado consultoria informal aos interessados, a maioria deles presentes no jogo contra o Atlético-PR, em Joinville, e representa um grupo de conselheiros do clube que entrarão com uma ação. Por causa da briga e a alegada falta de segurança – não havia policiamento dentro do estádio no início da partida –, os torcedores vão, em geral, tentar a impugnação do jogo, além de indenização pelo risco à integridade física, entre outras reivindicações.
“O Estatuto do Torcedor, no artigo 14, diz que em toda partida deve ser garantido o direito a segurança, e que ele deve ser feito por policiamento. E não havia policiais, somente seguranças privados. Se a partida não aconteceu conforme a lei, é nula. O árbitro foi negligente ao permitir a realização do jogo mesmo sabendo que não haveria polícia”, defende Leven Siano. Se os vascaínos tiverem sucesso, podem evitar o rebaixamento do Gigante da Colina.
Para o advogado, a crença de que não só pode ir à Justiça comum é “lenda”. “O que há é um grande mal entendido da CBF, que não entende a regra da Fifa e inventa moda”, dispara.
“O artigo 68 do estatuto da Fifa estabelece que os membros da Fifa devem inserir em seus códigos um artigo estipulando que seus associados não recorram à Justiça comum, desde que as leis do país permitam isso. No caso do Brasil, o artigo 217 da Constituição diz que não se pode ir à Justiça comum antes de esgotadas as instâncias na Justiça desportiva e, mesmo se esgotada, após 60 dias caso não haja decisão”, argumenta.
Constituição é o que vale
A ideia de buscar amparo fora do STJD também tem no renomado jurista Ives Gandra Martins um defensor. E não só por meio de torcedores.
“Ela mesmo (a Portuguesa) pode entrar na Justiça comum que não será punida. Se a Justiça é a favor dela, não pode ser punida. Só se perder, chance que considero muito pequena. A Constituição garante o direito do clube”, declara Martins, que cita o mesmo artigo 217 e o inciso 35 do artigo 5 em defesa dos direitos da Lusa.
“Se qualquer juiz decidir que a decisão do STJD foi ilegal, não existe CBF, Fifa ou qualquer coisa que possa punir a Portuguesa. Um tribunal que é apenas criação de uma resolução não pode sobrepujar a Constituição. A Lusa dificilmente perderia pela falta de razoabilidade e tratamento diferencial. A Fifa não pode valer mais que a Constituição. E o Estatuto do Torcedor é lei, o CBJD é resolução. O segundo é posterior e revoga o anterior”, diz Martins, que vê um clima favorável para que a Portuguesa se defenda na Justiça comum.
“Tenho falado com muitos especialistas, e há um sentimento geral de que está sendo feita uma injustiça”, declara.
Alerta aos clubes: arquem com as consequências
Na corrente contrária, o presidente da 4ª Comissão Disciplinar do STJD, Paulo Bracks, diz que os clubes não são impedidos de ir à Justiça comum. Mas alerta para os riscos de uma punição.
“É um direito do clube, assim como do torcedor. Mas depois tem que arcar com as consequências”, diz.
A pena prevista no artigo 213 do CBJD é de eliminação. Fica a cargo da procuradoria fazer a denúncia ao STJD, que julga. Em caso de condenação, a CBF é quem cumpre a punição. “A entidade pode multar, suspender, desfiliar, eliminar o time da competição”, diz.
Bracks lembra que os clubes concordam em respeitar o regulamento da competição, que prevê, no artigo 103, que os participantes não recorram ao Poder Judiciário. “Eles mesmo descumpririam o regulamento ao buscar a Justiça comum”, defende.
‘Fifa não pode legislar no país’
Os dirigentes dos departamentos jurídicos dos clubes garantem que não cogitam ir além da Justiça desportiva, mas falam apenas pelas agremiações. Tanto na Lusa quanto no Vasco, a opinião é de que não podem impedir ações dos torcedores.
“Há um conflito. A Fifa impede de ir à Justiça comum, o que vai contra a constituição. E não tem como negar uma sentença de um juiz. Mas a Fifa pune a CBF e determina que a entidade puna o clube. Vamos imaginar que um oficial de justiça intime a CBF, obrigando a colocar o Vasco na Série A, e intime o clube. O que a agremiação vai fazer? Não acatar?”, questiona o advogado do Vasco, Marcelo Macedo.
Na Portuguesa, oficialmente há a crença de que o clube será absolvido no julgamento de sexta-feira. Ainda assim, o assunto “justiça comum” não fica fora das discussões.
“A Constituição é a fonte de todas as demais. Tudo que vem depois está abaixo dela. Todo cidadão tem direito de recorrer ao Poder Judiciário. A Fifa é um órgão privado, que recomenda que os clubes percorram todo o ordenamento esportivo e evitem a Justiça comum, mas não é uma exigência. A Fifa não pode legislar dentro do nosso país”, argumenta o futuro diretor jurídico da Lusa, Orlando Cordeiro de Barros, que assumirá o posto em 2014.
24 clubes
A confusão prevista por algumas das fontes ouvidas pelo Portal da Band é que, por conta de um grande número de ações, a CBF fique paralisada em meio a uma guerra de liminares. Na última vez que algo parecido aconteceu, em 1999, o Gama conseguiu uma vaga na elite na Justiça comum, no chamado “caso Sandro Hiroshi”. A solução pode ser inchar o Brasileirão com 24 clubes e apaziguar a crise.
“Acho que a CBF tinha que se antecipar. A gente fica chateado de ver uma situação se resolvida fora de campo. Mas de quem é a culpa? Da própria CBF, que não está gerindo corretamente o esporte e usa um código que não está harmonizado com a Fifa. Mas a situação pode sair do controle, com muitas ações na Justiça. Acho que uma solução política por parte da CBF poderia preservá-la”, defende, apesar de o Estatuto do Torcedor determinar que a inclusão dos clubes se faça por critério técnico.
O que parece certo é que o campeonato nacional de 2013 não terá sua última “rodada” na próxima sexta e deve se arrastar até meados de 2014. E, dependendo do que aconteça nos tribunais, pode nem se chamar Brasileirão e ganhar o nome de algum cartola importante. As próximas sessões dirão.
Veja na íntegra alguns dos artigos citados nesta reportagem:
Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
CBJD
Art. 231. Pleitear, antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva, matéria referente à disciplina e competições perante o Poder Judiciário, ou beneficiar-se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiro.
PENA: exclusão do campeonato ou torneio que estiver disputando e multa de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais). (NR).
Regulamento Geral de Competições 2013
Art. 103 – Ressalvado o disposto no artigo 99, nos termos do artigo 90-C da lei nº 9615/98 e do artigo 1º da Lei nº 9307/96, bem como de acordo com os artigos 73 e 74 do Estatuto da CBF, federações, clubes, atletas e árbitros que tenham concordado em participar de quaisquer das competições, obrigam-se a valer apenas da arbitragem para dirimir quaisquer questões, litígios ou controvérsias que possam resultar de quaisquer das competições, sendo proibido postular ou recorrer ao Poder Judiciário.
Estatuto do Torcedor
Art. 10. É direito do torcedor que a participação das entidades de prática desportiva em competições organizadas pelas entidades de que trata o art. 5o seja exclusivamente em virtude de critério técnico previamente definido.
§ 1o Para os fins do disposto neste artigo, considera-se critério técnico a habilitação de entidade de prática desportiva em razão de colocação obtida em competição anterior.
§ 2o Fica vedada a adoção de qualquer outro critério, especialmente o convite, observado o disposto no art. 89 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998.
§ 3o Em campeonatos ou torneios regulares com mais de uma divisão, será observado o princípio do acesso e do descenso.
§ 4o Serão desconsideradas as partidas disputadas pela entidade de prática desportiva que não tenham atendido ao critério técnico previamente definido, inclusive para efeito de pontuação na competição.
Art. 14. Sem prejuízo do disposto nos arts. 12 a 14 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, que deverão:
I – solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos esportivos;
Artigo 68 do Estatuto da Fifa
3 . As Associações devem inserir uma cláusula nos seus estatutos ou regulamentos, estipulando que é proibido levar disputas na Associação ou disputas afetando Ligas , membros de Ligas , clubes, membros de clubes , jogadores, funcionários e outros funcionários da Associação para os tribunais ordinários da lei , a menos que o Regulamentos da FIFA ou disposições legais vinculativas prevejam especificamente ou estipulem o recurso aos tribunais ordinários da lei. Em vez de recorrer aos tribunais ordinários da lei, serão tomadas disposições para a arbitragem. Tais disputas devem ser levadas a um tribunal arbitral independente e devidamente constituído reconhecido pelas regras da Associação ou Confederação ou a CAS.
Fonte: Band.com.br