Mesmo quem acreditar que o tema esteja mais do que esgotado — ou simplesmente o achar inoportuno com 2014 tão perto — pode se surpreender com o documentário “Dossiê 50: comício a favor dos náufragos”, que a GloboNews estreia às 20h30min deste domingo. Seu realizador, Geneton Moraes Neto, é íntimo do que permanece como o mais dramático (para alguns, trágico) capítulo da história do futebol brasileiro, apesar de ele, Geneton, ter nascido seis anos depois.
Tendo colhido depoimentos dos 11 jogadores da seleção derrotada na final de 16 de junho, o repórter reuniu-os em 2000 no livro “Dossiê 50”, cuja segunda edição, revista e aumentada, sai agora com entrevista inédita do “carrasco” Ghiggia, o autor do gol, no caso, da derrota. Do rico material gravado para o livro é a matéria-prima do documentário. Durante 80 minutos, desfilam vozes e imagens dos jogadores que viveram aquela final, com um ou outro trecho de sua fala enfatizado por atores profissionais. Este recurso funciona perfeitamente quando, do jogador, só se tem foto.
O ponto de vista de Geneton – “É hora de anistiarmos os craques de 50” – está claro na epígrafe do livro e no título do documentário, um poema de Walt Whitman traduzido por Geir Campos: “Vivas àqueles que levaram a pior!/E àqueles cujos navios de guerra/afundaram no mar!/E a todos os generais/das estratégias perdidas/que foram todos heróis!” De fato, cada um daqueles 11, uns mais, outros menos, carregou até o fim da vida o peso de uma culpa que não teve: a de perder um jogo que lhe bastava empatar.
O documentário, como tudo que já se disse ou fez sobre a Copa do Mundo de 1950, não responde a pergunta fundamental: por que o Brasil perdeu a Copa do Mundo de 1950? Os jogadores ouvidos tentam respondê-la, mas o mais que fazem é falar de suas frustrações como perdedores, cada qual com uma parcela de “mea culpa”. Quase todos confessam terem sido perseguidos, vida afora, por sonhos, ou melhor, pesadelos que os colocavam outra vez na cena da derrota. Barbosa, o goleiro amaldiçoado, lembra que a pena máxima no Brasil é de 30 anos e que ele, o goleiro que Ghiggia venceu, foi condenado a provação perpétua. Chico, o ponta-esquerda, conta como pensou em provocar a expulsão de campo, sua com o capitão uruguaio Obdúlio Varela, no que foi impedido por Zizinho e Ademir. Estes, gênios da bola, passaram a ser vistos como meros perdedores. Ambos recordam como a concentração brasileira, horas antes do jogo, foi invadida por políticos em campanha para as próximas eleições. A Augusto, o capitão brasileiro, chamaram de “traidor da pátria”. Mais de um responsabilizam o zagueiro Juvenal pelos dois gols, enquanto Juvenal atira a culpa para Flávio Costa, o técnico que exigiu dos jogadores disciplina em primeiro lugar, em vez de “vitória de qualquer maneira”. Bauer teve de voltar de trem para São Paulo, dormindo no chão, pois a passagem que lhe prometeram não apareceu. Friaça, o do gol brasileiro, sem saber como, foi parar em Teresópolis, seu carro estacionado debaixo de uma jaqueira. Jair queixa-se dos empregos que o vereador Ary Barroso prometeu “aos campeões do mundo” e, com a derrota, esqueceu. Craque que evitava bolas divididas, ele confessa que rezou muito, não para vencer os uruguaios, mas para não se machucar. As promessas, aliás, foram muitas, nenhuma cumprida. Todos choraram, todos acabaram reconhecendo que a seleção uruguaia não era tão favas contadas e todos, por isso, reconhecem que, na balança dos “porquês”, o excesso de confiança foi dos que mais pesaram. Bigode, o homem que não conseguiu impedir o avanço de Ghiggia rumo ao gol, é outro que foi injusta e impiedosamente acusado. Confirma, com a ajuda dos companheiros, a desfazer a lenda de que levou uma bofetada de Ondúlio Varela. Nunca mais Biogode conseguiria um bom contrato no futebol. Lembrando que os uruguaios assistiram a duas missas, uma no sábado e outra no domingo da final, e que os brasileiros só foram a uma, admite que a ajuda dos santos pode ter sido decisiva.
O documentário merece ser assistido, pelos mais velhos que testemunharam o drama, ou tragédia, e também pelos que acham o assunto esgotado ou inoportuno. Sempre há o que se aprender sobre a Copa do Mundo que o Brasil perdeu e deveria ter ganho. Os 11 depoimentos – agora acrescidos pelo de Ghiggia (cerca de 1500 dólares foi tudo que ele ganhou por aquele gol) –reafirmam a complexidade daquele episódio. Há até quem considere que, com a derrota, o futebol brasileiro começou a construir uma geração de campeões do mundo. Talvez. Só não se espere que o documentário de Geneton Moraes Neto explique o inexplicável. Melhor há de ser, sempre, admitir que a seleção de Flávio Costa e Zizinho só perdeu para a de Jim Lopez e Julio Perez porque, naquele 16 de julho, marcou apenas um gol. E os uruguaios, dois.
Fonte: O Globo
