No último dia 25 de agosto o São Paulo venceu o Fluminense por 2 a 1 pela 16ª rodada do Brasileirão. Aquela partida foi a 54ª do Tricolor paulista no ano. No último dia 6 de junho, o Bayern de Munique venceu o Stuttgart por 3 a 2 e conquistou a Copa da Alemanha. Aquele foi o 54º jogo dos bávaros na temporada 2012/2013. E o último. De lá para cá os paulistas jogaram mais 12 vezes. E o Tricolor pode atuar em mais 19 partidas (caso chegue à final da Sul-Americana) e encerrar o ano com 85 jogos, média de cerca de um a cada quatro dias. Isso pode dar ao Tricolor um título: o de clube brasileiro com maior número de partidas realizada na temporada.
Tais dados explicam o movimento de alguns jogadores brasileiros, que criaram o Bom Senso F.C (veja o vídeo acima). O movimento tem como principal objetivo declarado mudar e racionalizar o calendário do futebol brasileiro. O GLOBOESPORTE.COM comparou o calendário nacional com o das principais ligas europeias. Baseado no número de jogos, os principais clubes brasileiros são os que mais sofrem com os seguidos compromissos durante o ano. O resultado? Desgaste com longas e consecutivas viagens, pouco tempo para treinos e recuperação das partidas, lesões e desfalques nos jogos.
São cinco itens principais na pauta de discussão com a CBF. Três estão diretamente relacionados: o calendário do futebol brasileiro, férias e período adequado de pré-temporada. Os outros dois pontos são fair-play financeiro (no caso, trata da questão de dívidas dos clubes com os atletas) e participação nos conselhos técnicos das entidades que regem o futebol.
Seguindo com a comparação entre São Paulo e Bayern como exemplos, o espaço entre o último jogo do São Paulo em 2012 e a primeira partida oficial de 2013 foi de um mês e sete dias. O Bayern teve 19 dias a mais entre o fim da temporada passada e a atual. Vale ressaltar que os bávaros alcançaram 54 jogos por terem atingido o número máximo de partidas possível para o futebol alemão ao avançarem às finais de todos os campeonatos que participaram. O São Paulo, por sua vez, foi eliminado nas oitavas de finais da Libertadores - se chegasse até a decisão, poderia atingir a marca de 91 partidas numa só temporada.
Os campeões das dez principais ligas europeias tiveram uma média de 50 jogos em 2012/2013. Os clubes brasileiros da Série A, mais o Palmeiras, têm média de 55 partidas até agora no ano, faltando dois meses para o fim da temporada. Alguns grandes clubes do Velho Continente destoaram desta média, como o Chelsea, que terminou com 69 jogos. O Wigan é um dos únicos no futebol europeu que pode atingir um 'nível brasileiro'.
Disputando a segunda divisão inglesa e a Liga Europa – caso raro –, o Wigan pode chegar a 84 partidas na temporada. Entretanto, para atingir tal número terá que chegar às finais de todos os campeonatos que disputar. Os hermanos também estão mais folgados. O atual campeão argentino Velez Sarsfield atuou 48 vezes na temporada 2012/2013. O campeão uruguaio Peñarol foi a campo em 37 jogos oficiais no mesmo período.
Mas qual o principal problema do calendário brasileiro? A falta de pré-temporada? O excesso de jogos? O modelo europeu é o ideal? O GLOBOESPORTE.COM ouviu jogadores, médicos e preparadores físicos das duas realidades – brasileira e europeia -, que entraram na discussão.
Confira o número de jogos do seu time até agora em 2013 (partidas oficiais):
O problema inicial: a pré-temporada escassa
O grande time europeu da atualidade tinha um representante brasileiro em sua comissão técnica até a temporada passada. Carioca radicado em Brasília, Marcelo Lins, de 40 anos, foi preparador físico do Bayern de Munique por cinco anos, e retornou ao Brasil no meio deste ano. Baseado na experiência que teve, ele ressalta que uma pré-temporada longa é o primeiro passo para evitar lesões e dar boa resistência ao time para aguentar todos os jogos.
- Normalmente, lá fora (na Europa), o trabalho maior é em cima da preparação física na pré-temporada e começo da temporada. A partir do momento em que se começa a jogar duas vezes por semana fica difícil, até porque o próprio jogo é um condicionamento físico. O trabalho fica mais com os jogadores que não estão jogando. Quando o time joga duas partidas por semana, é difícil encaixar uma sessão de treinamentos. O mais importante quando o tempo entre jogos é curto é a recuperação. É o que a gente se preocupava bastante – opinou Marcelo.
O Bayern de Marcelo Lins teve um mês e 26 dias entre o último jogo da temporada passada e o primeiro da atual. O campeão inglês Manchester United teve quase três meses. O campeão espanhol Barcelona teve dois meses e 17 dias. Da última rodada do Campeonato Brasileiro de 2012 até o início dos principais estaduais em 2013, no dia 19 de janeiro, os clubes brasileiros tiveram um mês e 17 dias. Preparador físico do Palmeiras, Fabiano Xhá não chega a eleger a pré-temporada curta como o principal problema dos clubes brasileiros. Mas admite que um tempo maior de preparo antes do início dos campeonatos poderia amenizar os problemas com lesões.
- A gente já se adapta ao máximo. Temos pouco tempo de pré-temporada, às vezes uma semana com parte física do atleta e na outra semana já com parte técnica e tática. Hoje em dia, nos primeiros dias, já entramos com trabalho com bola. A preparação física já teve que se adequar a esse calendário. Mas o que eu vejo é que seria essencial ter esse tempo maior para contribuir na prevenção de lesões e recuperação de jogador, isso auxiliaria e melhoraria muito – analisou Xhá.
O atacante Deivid, do Coritiba, tem experiência nas duas realidades e não hesita em reforçar a necessidade de se ampliar o período de pré-temporada para os principais clubes brasileiros.
- Joguei vários anos na Europa, na França, Portugal e na Turquia. E uma das coisas que mais encontrei dificuldade no retorno ao Brasil foi o calendário. A coisa é muito mais complicada, principalmente pela ausência de uma pré-temporada “decente”. Na Europa, os clubes têm quase dois meses de preparação. Aqui, quando os técnicos conseguem treinar por duas semanas, levantam as mãos para o céu - disse atacante do Coxa.
Curiosamente, o líder com folga do Brasileirão teve um tempo maior de preparo que os demais clubes – com exceção do Atlético-MG. O Cruzeiro encerrou o Campeonato Brasileiro do ano passado no dia 2 de dezembro, no clássico com o Galo, e estreou em 2013 contra o próprio rival, pelo Campeonato Mineiro, no dia 3 de fevereiro. Outro membro do G-4, o Atlético-PR surpreendeu a todos no início do ano ao abdicar do Estadual e preferir fazer uma longa pré-temporada com o time principal. O resultado, segundo o preparador físico do Furacão Moraci Sant'anna, é a manutenção do bom condicionamento de sua equipe, mesmo na reta final do campeonato, e poucos problemas com lesões.
- A gente já atingiu esse nível (auge físico), e acho que a gente não corre o risco de cair fisicamente porque foi bem executado nesse sentido. Não só em termos de planejamento, mas também em aproveitamento do atleta. Só que não adianta planejar, e o atleta não se dedicar. Houve uma dedicação muito boa e continua havendo. Com essa somatória de um bom planejamento e a dedicação dos atletas, conseguimos atingir um nível satisfatório – comentou.
Elenco qualificado e rodízio: outro diferencial europeu
Não adianta apenas ter um longo tempo de preparação. É preciso um bom elenco. O rodízio de jogadores é comum nos principais clubes do Velho Continente. Mesmo com menos jogos, a prática é mais comum lá do que aqui. Principal preparador físico do Metalist, atual líder do Campeonato Ucraniano, o brasileiro Michel Huff aponta tal recurso como essencial para manter o bom nível do time e amenizar os desgastes causados por seguidos jogos.
- A maioria dos clubes europeus possui um conceito distinto do que vemos no Brasil. Aqui se respeita o período de recuperação, tanto no pós-jogo, com dois dias de recuperação, quanto no pré-jogo, com times utilizando carga muito baixa em até dois dias antes do evento. Existe também uma rotatividade em relação aos jogadores, pois os times usam estratégias diferentes para cada jogo. Automaticamente existe o entendimento mais relativo do "ser titular" e o "ser reserva" entre os atletas, treinadores, diretores e pessoas envolvidas no contexto do futebol, como imprensa, torcida e patrocinadores – declarou Michel, em entrevista por e-mail.
No futebol espanhol desde 2007 e titular do Valencia pela terceira temporada seguida, o goleiro Diego Alves vivenciou as duas realidades e diz que o rodízio de atletas deveria ser mais comum no futebol brasileiro.
- Acho que a organização da Europa é muito melhor. Não só em termos de calendário, porque também chegamos a disputar três competições ao mesmo tempo, como Liga da Espanha, Copa do Rei e Champions League, por exemplo, mas é inegável que cultura de treino e de aproveitamento de atletas é diferente. Existe um revezamento maior entre os titulares sem que haja pressão da imprensa e da torcida. No Brasil, se um treinador poupa titulares e perde, o emprego dele já começa a correr risco – reforçou.
Mais jogos, mais lesões?
Um dos velhos chavões do futebol diz que não há lógica matemática no esporte mais querido dos brasileiros. Mas para alguns, quanto mais jogos, maior o risco de os jogadores se lesionarem. Médico da seleção brasileira e do Atlético-MG, Rodrigo Lasmar discorda da tese. Para ele, não é possível fazer tal relação.
- Eu não tenho esse dado para dizer que o jogador brasileiro se lesiona mais. As lesões acontecem. Se pegarmos os jogadores da seleção brasileira que foram convocados nos últimos jogos, veremos que vários atletas, mesmo do exterior, foram lesionados. O Fred se machucou no Brasil, mas o Marcelo se machucou fora, Hulk e Daniel (Alves) também. Não tem muito essa situação. Eu acho que nós temos que analisar nossa realidade e dentro disso trabalhar melhor – ponderou o médico.
Alguns jogadores discordam de Lasmar e são incisivos em chegar a tal conclusão. Entre eles está o lateral-direito do Santos, Cicinho. Ele crê que risco de se lesionar atuando em um futebol mais desgastante como o brasileiro é maior.
- Acredito que as contusões aumentam, sim. São muitos jogos e o desgaste é muito forte e o risco de lesão é bem maior.
Diego Alves não nega que os atletas que atuam no futebol europeu sofram com as lesões, mas reforça que o principal problema no Brasil é o tempo de recuperação dos lesionados ou até mesmo o curto intervalo entre os jogos, que ocasiona maior desgaste.
- Aqui na Europa também há muitas lesões, mas mais pelo ritmo de jogo, que aqui é muito mais intenso, do que pelo desgaste de partidas acumuladas. Está claro que a sequência de partidas e de viagens também influencia nas lesões dos atletas, porque isso acaba diminuindo o tempo de recuperação – analisou o goleiro.
Modelo ideal em discussão
Diante de tudo isso, a solução estaria mesmo em adequar o calendário brasileiro ao europeu? Há adeptos dos dois lados. Em pelo menos um ponto a maioria concorda. É preciso mudança. Lateral-esquerdo do Botafogo, Júlio César vê na adaptação ao modelo europeu uma boa saída para aliviar a atual situação dele e de todos que atuam no Brasil.
- O calendário é bem complicado, o clima aqui no Brasil é diferente da Europa. É uma discussão que vai demorar bastante. Acredito que fazer as férias no meio do ano, junto com a Europa, seria o melhor, mas vai ser uma discussão longa. Na Europa as viagens são mais curtas e se joga menos, acho que são 20 partidas a menos, e eles ainda poupam mais os jogadores. Aqui não, são viagens longas de avião, duas horas, duas horas e meia, e tem a espera em aeroportos. Isso tudo conta bastante na questão das lesões – afirma.
O técnico do Santos, Claudinei Oliveira, pede apenas tempo para trabalhar a equipe o que, na situação atual, é difícil encontrar.
- O desgaste físico é visível. Já programei treino tático e não fiz porque percebi que não ia render. Nos jogos, você propõe alterações táticas sem ao menos ter praticado. Você não tem tempo de treinar – ressalta.
O fato de ser inverno no meio do ano – época de férias, caso o calendário seja adaptado ao europeu – e a remodelagem dos estaduais são empecilhos apontados na tentativa de adotar o modelo. Mas há quem ache ser possível ter melhorias, mesmo sem a adaptação ao sistema europeu.
- Às vezes temos sete, oito jogos seguidos diretos com dois por semana. Poderíamos ter uma sequência de três, quatro jogos, e depois dar um tempo para recuperação. Na verdade, o ideal mesmo é um jogo por semana, aí teríamos um tempo maior de recuperação, uma parte onde poderia puxar a carga de trabalho até chegar no jogo, mas a gente sabe que não tem essa condição pelo calendário do Brasil. Mas diminuir essas sequências com dois jogos por semana já ajudaria – analisa o preparador físico do Palmeiras, Fabiano Xhá.
A discussão está apenas no início. O Bom Senso F.C. promete lutar por mudanças.
Fonte: GloboEsporte.com