Considerado hoje o mais democrático dos esportes, o futebol volta e meia tem a reputação arranhada pelo preconceito racial. No início do mês, a Fifa reuniu sua força-tarefa para discutir punições contra a discriminação. É um recado claro para dirigentes como o português Nuno Lobo, denunciado esta semana à União das Federações Europeias de Futebol (Uefa). Em 2011, à frente da Associação de Futebol de Lisboa, ele chamou o jogador brasileiro Hulk de “macaco”. O preconceito tem raízes profundas na história do esporte. No início do século passado, o acesso às quatro linhas do gramado era vetado a negros e mulatos.
Quando Charles Miller trouxe a primeira bola de futebol para o Brasil, o esporte logo desbancou o turfe e o remo como preferência nacional. Mas era marcado por contradições. Brancos construíram estádios, negros improvisaram campos de várzea. Brancos trajavam uniformes de marinheiro e limpavam o suor com lenços, negros usavam barbante para amarrar o meião. Brancos comemoravam as partidas com uísque. Negros, cachaça.
— O futebol, assim como os Jogos Olímpicos, era considerado um resgate dos valores gregos, a união da inteligência com beleza corporal, uma mistura de racionalismo com o ideal de conquista — descreve Carlos Alberto Figueiredo da Silva, autor do livro “Racismo no futebol”. — Daí vem a ideia do “fair play”, do cavalheirismo. Esses valores nobres seriam exclusivos da elite branca.
Em algumas cidades, os negros, impedidos de disputar os torneios, criaram suas próprias ligas. Entre os anos 1920 e 1930, São Paulo chegou a contar com 12 clubes disputando o campeonato informal.
— Algumas equipes eram extintas, mas logo depois outras eram criadas — lembra Petrônio Domingues, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Sergipe (UFS) e pesquisador da trajetória dos times de futebol de negros em São Paulo. — O futebol é um exemplo da barreira enfrentada pelo negro para ser inserido na sociedade depois da libertação dos escravos.
Os jogos de 13 de maio
Havia, no entanto, uma vez no ano em que os melhores de cada liga se encontravam. Entre 1927 e 1939, sempre no dia 13 de maio — quando é comemorada a abolição da escravatura — ocorria o clássico “preto x branco”. A equipe vencedora em três anos consecutivos levaria a Taça Princesa Isabel. Não há registro do placar de todas as disputas, mas, entre os resultados conhecidos, os negros venceram quatro vezes; os brancos, duas; e houve um empate. O mulato Arthur Friendenrich, considerado o melhor jogador brasileiro antes de Pelé, chegou a participar do desafio, mas vestindo a camisa dos brancos.
Criador do escudo do Corinthians e jogador do time entre 1922 e 1927, o artista plástico Francisco Rebolo, em depoimento ao sociólogo Antônio Gonçalves, condenou o preconceito contra os negros e lembrou a comoção popular causada pelo esporte: “Eu me recordo de que no Corinthians surgiu um mulato chamado Tatu, que jogava muita bola, era um craque. Certa vez, num jogo entre Corinthians e Paulistano, o Tatu marcou o gol da vitória. A cidade ficou tomada, com gente fazendo discurso, já foi uma vitória do povão”.
Os campeonatos negros também seriam vistos em outras cidades. No Rio Grande do Sul, por exemplo, Pelotas teve a Liga José do Patrocínio; na capital do estado, a Liga Porto Alegrense, que se eternizou por seu nome pejorativo — a Liga da Canela Preta.
No Rio, segundo Figueiredo da Silva, o convívio entre morro e asfalto facilitou o intercâmbio futebolístico de negros e brancos. Veio da cidade o primeiro jogador negro a disputar uma partida oficial do esporte — Francisco Carregal, pela equipe do Bangu, em 1904.
A ‘arianização’ do esporte
Ainda assim, o preconceito era explícito. Equipes da Zona Sul, mais elitistas e preparadas, como Flamengo, Fluminense e Botafogo, aliavam-se aos times pobres só para incentivá-los a derrotarem seus adversários diretos. Os brancos se recusavam a jogar em feriados — esta prática era relegada aos “sem família”. Quando o Vasco tentou disputar a primeira divisão carioca, em 1924, a associação futebolística condicionou sua participação na liga à retirada de doze negros e mulatos de seu time. Era, como descreveu o jornalista Mário Filho, uma campanha pela “arianização do futebol brasileiro”. O Vasco se recusou a cumprir a medida e preferiu competir entre os times pequenos.
— Foi o primeiro manifesto mundial contra o racismo de uma entidade esportiva — destaca Figueiredo da Silva. — O Vasco era formado por dois grupos excluídos: os mestiços e a colônia lusitana, que buscava afirmação diante da nova elite brasileira. Já o Bangu tinha uma fábrica comandada por ingleses, mas os operários eram mulatos. A partir dos anos 1930, com a profissionalização do futebol, houve uma percepção do talento dos negros e, aos poucos, eles ganharam espaço nos grandes clubes.
Fonte: O Globo