O dia 20 de setembro é especial para o esporte fundador do Club de Regatas Vasco da Gama. Nesta data, no ano de 1998, o Gigante da Colina conquistava de maneira antecipada o Campeonato Estadual de Remo no ano de seu aniversário de cem anos. O título viria de maneira invicta, com os vascaínos vencendo as seis regatas. Além de ser o centenário da fundação de um clube originalmente voltado para o remo (o Departamento de Futebol só surgiu em 1915), o 40° título estadual conquistado serviu para impedir que o Flamengo igualasse uma marca espetacular do remo vascaíno, que possui o recorde de títulos consecutivos: dezesseis, de 1944 a 1959. O Flamengo havia vencido quinze títulos seguidos de 1983 a 1997 (além de onze seguidos de 1971 a 1981, série também quebrada pelo Vasco em 1982). O treinador Marcelo Neves, que chegou ao clube no final de 1995 num momento crítico do remo no Vasco, comandou a equipe. O treinador permanece até hoje nesta função. O título também significava o “status” de Campeão de Terra e Mar, afinal no futebol o Vasco também havia sido campeão estadual.
Após muito tempo de domínio rubro-negro, o título conquistado com tranquilidade no ano do centenário vascaíno marcou o início de uma era muito vitoriosa no remo cruzmaltino, com seis títulos estaduais seguidos, cinco do Campeonato Brasileiro e diversos títulos internacionais, com a equipe vascaína servindo como base para a Seleção Brasileira.
A reestruturação do remo vascaíno começou de maneira mais intensa no ano de 1997, quando houve o começo da renovação da flotilha e a chegada de atletas de peso. Em 1998, houve uma grande intensificação desse processo, com o término da aquisição de um moderno conjunto de barcos e a chegada de diversos atletas de peso, alguns “a peso de ouro”. Embora o trabalho iniciado em 1997 visasse mais a começar a preparação para o ano do centenário, neste próprio ano o Vasco esteve muito próximo do título estadual, não o conquistando muito em virtude de uma manobra jurídica do Flamengo junto à Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro (que era presidida por Raul Bagattini, benemérito do Flamengo) que impediu que as duas remadoras canadenses que o Vasco trouxe para suprir a carência na categoria feminina competissem.
O Campeonato começou no dia 26 de abril, quando foi disputada a primeira regata. A regata que definiu o título foi a quinta, disputada no dia 20 de setembro. Já como campeão antecipado, os vascaínos garantiram o título invicto na última regata, em 24 de outubro. Na quinta regata, a prova que definiu o título foi o 2 com (formado por Thiago Gomes, José Carlos Sobral e o timoneiro Jefferson), vencido pelo Gigante da Colina. Após a quinta regata, ainda faltando uma (que também seria conquistada), o Vasco somava 28 vitórias, contra dez do Flamengo e oito do Botafogo. Só na quinta regata, a do título, foram oito vitórias. O Vasco tinha tamanha superioridade que alcançou o título em quase todas as categorias.
O grito de Casaca tomou conta da Lagoa Rodrigo de Freitas numa conquista que abriu caminho para diversas outras que marcariam indelevelmente a poliesportiva história do Club de Regatas Vasco da Gama. Definitivamente, poucos clubes, talvez nenhum, tiveram um ano de centenário tão vitorioso quanto os vascaínos.
O Blog CRVG - Em Todos os Esportes, como forma de comemoração a essa data, traz entrevistas com duas figuras que marcaram presença naquela conquista e que até hoje honram o Club de Regatas Vasco da Gama.
Palavra do treinador: Marcelo Neves dos Santos
O treinador do remo vascaíno à época, Marcelo Neves dos Santos, continua no posto hoje em dia. Com a experiência de quem tem dezoito anos de Vasco da Gama, ele comentou, com exclusividade ao Blog CRVG - Em Todos os Esportes, sobre essa importantíssima conquista. Para começar, ele ainda mostra descontentamento com a maneira pela qual o Vasco perdeu o título estadual do ano anterior, quando ja havia batido na trave:
- Eles tiveram a chance de se igualar a gente em número de campeonatos, e aquele título de 1998 foi muito importante. O título de 97 foi roubado da gente. Na época, o presidente da federação era um grande benemérito do Flamengo, e ainda é, o Raul Bagattini, e por vezes foi vice presidente de remo do Flamengo. Com certeza houve benefícios, eles encrencaram com as canadenses que nós trouxemos em 97. Estavam nos sacaneando, nos roubando, elas estavam certíssimas, e eles criando situações, como no título de 2003, que está sub-júdice até hoje.
Marcelo, ainda assim, ressalta que o clube ter disputado o título de 1997 até a última regata foi uma surpresa, uma vez que a reestruturação posta em prática neste ano visava sobretudo a reconquistar o domínio estadual no ano do centenário:
- A nossa previsão, eu comecei aqui no final de 1995, era de chegar em 98 com uma equipe para disputar o campeonato. E as coisas aconteceram de uma maneira tão legal, tão bem, que chegamos na última regata de 97 com totais reais de ganhar o campeonato, e eles armaram.
Especificamente sobre o título de 1998, Marcelo deixa claro que o sentimento de manter o hexadecacampeonato de 1944 a 1959 como o recorde estava em estágio parecido de relevância ao de ser campeão no centenário. Os vascaínos não poderiam deixar de maneira nenhuma tamanho recorde ser igualado, assim como não deixaram em 1982, quando, com uma equipe em condições inferiores, conseguiram parar os rubro-negros. Marcelo ainda comemora o fato de o clube ter conquistado quase todas as categorias, o que é muito complicado:
- O que foi muito bacana em 98 não foi só ter ganhado, foi tirar a hegemonia do Flamengo, eles iriam se igualar a nós com 16 títulos seguidos e não conseguiram, por duas vezes na historia quase conseguiram, mas nós não deixamos no ano que conseguiriam. Só o Vasco tem 16 seguidos. E foi bacana ter ganhado em quase todas as categorias, é muito difícil, dou o exemplo do Botafogo. Botafogo fazia um trabalho muito bom na base, mas não tinha ninguém em cima. Hoje ele contratou vários atletas, muitos nossos, e hoje ele está com um trabalho com maior dificuldade na base, não está tendo resultados tão bons quanto tinha, e melhorou em cima.
O ano de 1998, no entanto, ao contrário da década de 1980, que foi muito dura para o remo vascaíno, foi o emblema para o começo das "vacas gordas" no Gigante da Colina. Marcelo Neves ressalta que o remo vascaíno tinha tudo do bom e do melhor: a novíssima flotilha e atletas de peso representam muito bem isto.
- Nós tínhamos a estrutura, tudo que era necessário para uma boa performance dos atletas: barcos novos, material, condições, pagamento em dia. Isso tudo é importantíssimo. Porque os atletas hoje de alto nível chegam a ter três sessões diárias, então eles precisam ter algum benefício financeiro para que se mantenham. E não podemos pensar no atleta apenas nos horários de treinamento, ele tem que descansar entre os treinamentos. E esses garotos, principalmente os mais novos, estudam, não pode tirá-los da escola. Então imagina uma situação do atleta que tem que treinar, tem que trabalhar e tem que estudar... Ele acaba não conseguindo fazer nenhuma das três atividades bem. Então o ideal é que a instituição dê alguma condição para que ele possa fazer o seu trabalho, treinar, na plenitude. E, claro, não se esquecer dos estudos. Porque é um esporte considerado amador que não vai dar futuro para ninguém. Vai dar um caminho muito interessante se ele tiver o estudo paralelo, mas não vai dar independência financeira para ninguém. Então ele tem que essa preocupação de no seu período de vida de atleta estar fazendo alguma coisa para que no pós-remo ele tenha um caminho a seguir. Isso eu considero importantíssimo. E a gente cobra dos garotos o estudo.
Marcelo Neves ressalta as imensas dificuldades que tinha quando chegou ao clube, no final de 1995. Ele conta que tinha pouquíssimos atletas para treinar, sendo que um deles, Vaval, foi convidado para voltar a atuar pelo clube, que estava com uma enorme crise no remo. Neves, por sinal, chega a dizer que a crise enfrentada em 1995 é mais complicada do que os grandes problemas vivenciados na atualidade:
- Nós não tínhamos nada, não tínhamos barcos. Até o grande atleta do Vasco à época, o Vaval, junto o com o Marquinho, eles tinham sido medalhistas no Pan-Americano de 1991, estavam afastados do clube. Nós conseguimos resgatá-los, e aí começou devagar. Tinha dia que eu vinha aqui e tinha um atleta para treinar, um se lesionava, tinha algum problema, tinha um atleta. Mas nada impediu que construíssemos um caminho que culminou com a vitória de 1998. E penso que a situação de hoje não é tão ruim quanto a de 1995, hoje temos alguma estrutura, temos um trabalho na base, que ainda pode ser melhorado, e é só fazer o trabalho novamente, caminhar novamente até a vitória.
Marcelo ressalta que vê essas situações como cíclicas: ora uma fase muito boa, ora uma crise. Por isso, não enxerga com tanto alarde a fase atual, na qual apregoa a necessidade da autossuficiência dos departamentos.:
- Eu sempre falo: essa situação é cíclica. Eu já vi o Flamengo nessa situação, o Vasco a mesma coisa, o Botafogo sempre teve uma situação muito ruim e hoje está numa situação boa. E sempre o termômetro disso é o futebol. O futebol do Botafogo está muito bem, e o clube todo consegue respirar melhor, caminhar melhor. Por isso que eu falo o quanto é importante a independência dos departamentos, cada um buscar alguma forma de subsistência. Isso eu não tiro da cabeça. Claro que é um clube só, mas temos que buscar essa possibilidade.
Basta sorridente e nostálgico ao relembrar o passado, Marcelo Neves relata o sentimento que teve ao longo do magnífico ano de 1998, em que o clube também conquistou o Campeonato Brasileiro: tudo estava dando certo:
- Em 1998 foi um ano importantíssimo para nós, entramos com raiva, com muito mais estrutura, o Nations Banks entrou, deu um levante muito grande, foi em 98 que conseguimos fechar a flotilha nova, 97 ainda não tínhamos todos os barcos comprados. Foi muito legal, foi um ano inesquecível, vou guardar para sempre. 98 é um título à parte. É o centenário. Tudo estava confluindo para que as coisas dessem certo. Parece que até Deus botou a camisa do Vasco para as coisas funcionarem. Foi um ano muito bacana. Você via o clube bonito, bem tratado, tudo funcionando. Aqui o que se pedia tinha. São épocas.
Para finalizar, Marcelo destaca alguns atletas que fizeram parte dessa magnífica campanha:
- O Vaval, o português Henrique Baixinho, uma atleta fenomenal, o Thiago Gomes, o Luis Fernando Prataviera (o Choquito), o Mauro Webber, o Periquito (Carlos Alexandre de Almeida)... Tínhamos no feminino a Patricía McLennon, uma paulista que hoje é cirurgiã na área de ortopedia em São Paulo. Muitos bons atletas. O grupo bem forte, tanto é que ganhamos por três anos seguidos a Regata Internacional de Gondomar, e competindo contra adversários muito fortes. Teve um ano em que competimos contra o oito da seleção da Rússia e ganhamos. Foi um período, até o final de 2001, de muita tranquilidade e de muito trabalho, foi um período muito bom. A partir do final de 2001 que nós começamos com os problemas de ordem financeira que se arrastam até hoje - encerrou.
Palavra do ídolo/lenda: Oswaldo Kuster Neto, o Vaval
Como não poderia deixar de ser, afinal esta lenda cruzmaltina vestiu a camisa de clube apenas do Vasco da Gama, Oswaldo Kuster Neto, o Vaval, foi um dos principais destaques vascaínos nesta importante conquista. À época, ele era da categoria principal, o sênior A.
Como bom vascaíno de raiz, Vaval ressalta, com exclusividade ao Blog CRVG - Em Todos os Esportes, a importância do título sob duas facetas, ambas de enorme relevância: ser campeão no centenário e manter o recorde do hexadeca alcaçado por geração passada de remadores vascaínos. Ele ainda relata que de 1971 a 1981 o Flamengo também emendou uma sequência, novamente parando no Vasco. E, também, parando em Vaval.
- Essa questão do campeonato de 1998 foi emblemática por dois motivos: primeiro porque era o centenário do clube, e segundo que o Flamengo tinha um ponto de honra de tentar quebrar essa hegemonia de títulos que o Vasco tem de 16 anos seguidos (foi campeão de 1944 a 1959). O Flamengo bateu na trave duas vezes, e nessas duas vezes eu tive a felicidade de participar da equipe que quebrou essa hegemonia. Em 1982 o Flamengo somava onze títulos, e caminhava para quebrar esse recorde do Vasco; e de lá para cá, de 1983 a 1997, o Flamengo somou 15 títulos, e em 1998 seria o 16º, mas conseguimos vencer, e de lá para cá o Vasco conseguiu impor uma hegemonia de seis anos até 2003. Depois a coisa começou a alternar.
Assim como Marcelo Neves comentou, Vaval conta que estava afastado e foi convencido em 1995 pelo próprio recém-chegado treinador para voltar a treinar pelo Vasco - ele treinava apenas pela Seleção. Como bom vascaíno, Vaval não titubeou e atendeu ao pedido mesmo na incerteza imensa que era o remo vascaíno à época, problemas que se arrastavam desde a década passada:
- As condições começaram a mudar a rigor em meados da década de 1990 com a vinda do Marcelo, com os investimentos. De 1996 em diante que começamos a mudar esse cenário. Quando o Marcelo assumiu em 1995 eu estava afastado, estava treinando só, voltei à Seleção Brasileira em 95, a convite do treinador do Flamengo, e disputei o Pan-Americano de Mar del Plata deste ano. Mas eu não estava mais treinando pelo Vasco, estava afastado das competições. Quando o Marcelo assumiu foi feito o convite, logo depois dos Jogos Pan-Americanos, e eu retornei nessa época, em 1995. Fiquei praticamente dois anos afastado do Vasco. Começou a ser feito um trabalho a partir de então que culminou no campeonato de 98.
Vaval também ressalta a grande supremacia vascaína no geral de todas as categorias. Isto é essencial no remo, afinal, diferentemente de praticamente todos os outros esportes, nos quais é declarado um campeão adulto absoluto separadamente da base, no esporte fundador do Vasco o campeão do Estadual sai do somatório de todas as categorias, cada uma com o mesmo peso. Isto se acentuou ainda mais no remo, e Vaval compara ao título do Estadual de 1982, quando os vascaínos surpreenderam e desbancaram o favoritíssimo Flamengo com uma equipe calcada praticamente de maneira total nos juniores. Diante de tamanha supremacia durante 1998, Vaval não tem nenhuma recordação maior sobre uma prova em especial e prefere ressaltar o conjunto:
- Esse Campeonato foi muito legal, porque na minha categoria - sênior A - nós dominamos, ganhamos praticamente todas as provas. Sinceramente, não me recordo de alguma prova em especial. Acho que o conjunto da obra que foi o mais importante, porque o remo é um esporte sui generis, o Campeonato na verdade é um somatório de campeonatos, de todas as categorias. É diferente dos outros esportes, onde você tem o campeão absoluto, e depois tem campeões de outras categorias. No remo, não. No remo, o campeão estadual é promulgado pelo somatório de provas de todas as categorias, então não basta ser bom numa categoria - no sênior A, por exemplo, que era a nossa categoria, onde estávamos praticamente absolutos. O Vasco se fez presente, estava forte, em praticamente todas as categorias. Isso que determinou o nosso Campeonato. No Campeonato de 1982, no qual também quebramos uma longa hegemonia do Flamengo, nós ganhamos basicamente aquele título em cima de uma equipe de júnior. Tínhamos uma equipe de júnior muito forte que dominou o Campeonato e no sênior o Flamengo ganhava praticamente todas as provas. Tinha quatro atletas a rigor da equipe de sênior, mas, como o peso era igual, tínhamos campeonato de júnior e de sênior praticamente dentro de um mesmo peso, número de provas, prevaleceu a nossa maior categoria no júnior. Já no Campeonato de 1998 foi diferente, foi outra configuração. O Campeonato já tinha outro desenho, onde você tinha que ser efetivamente forte em todas as categorias, ou pelo menos na maioria delas, para se sagrar campeão. O Vasco ganhou praticamente todas as categorias à época.
Vaval também se mostra engasgado com o Campeonato de 1997. Embora a equipe já estivesse montada e consistente o suficiente para ganhar no ano anterior, no centenário a força vascaína era tamanha que nada poderia detê-la:
- Na verdade esse Campeonato começou a ser desenhado em 97. Em 97 tínhamos uma estrutura razoável, nesse começo a partir de 1995 foi uma coisa muito incipiente, não tínhamos barco, não tínhamos equipe, e em 97 já tínhamos uma equipe montada, uma coisa que começou a ser trabalhada. O Vasco fez um investimento e trouxe duas canadenses que foram campeãs mundiais à época, pan-americanas, e que reforçaram nossa equipe feminina, que até então não tinha contingente. Levamos o Campeonato até a última regata, e o Flamengo fez uma manobra jurídica que impediu a participação das atletas canadenses, e o Vasco fez a opção de tirar os barcos da água e o Flamengo acabou levando esse título, mas em 1997 já tínhamos mais ou menos encaminhado. Em 98 o Vasco continuou com os investimentos, compramos barcos (onde tínhamos carência), reforçamos e trouxemos alguns atletas, e aí culminou com o título de 98. Fomos campeões invictos, ganhamos todas as regatas do Estadual, foi um título bastante significativo - encerrou o ídolo Vaval, ao Blog CRVG - Em Todos os Esportes.
Edição do Jornal do Brasil do dia 21 de setembro de 1998 felicita o Vasco "Campeão de Terra e Mar" |
Marcelo Neves |
Oswaldo Kuster Neto, o Vaval |