A pressão e a desconfiança eram do tamanho de São Januário, e vinham de todos os lados: dos torcedores nas ruas, dos dirigentes, da mídia e - por que não? - do próprio grupo de jogadores. Afinal, substituir Evair e, principalmente, Edmundo depois dos recordes de gols de 1997 era uma missão para lá de ingrata. Mas Donizete e Luizão a cumpriram com louvor e foram decisivos para o título da Libertadores do Vasco, em 1998, que completa exatos 15 anos nesta segunda-feira. Como prova da eficiência, dos 17 gols marcados pelo clube na competição continental, 12 foram dos dois atacantes, a impressionante marca de 70% do total, que era a senha necessária para colocá-los na história.
O GLOBOESPORTE.COM reuniu a dupla na espaçosa casa do Pantera, em um condomínio na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, para relembrar o que sofreram para driblar a sombra do Animal e também, claro, falar sobre o entrosamento adquirido para viver a fase mágica. A reportagem é a última da série comemorativa à data. No sábado, Vagner, o camisa 10 da época e afastado dos holofotes desde que parou, foi o entrevistado e, no domingo, os campeões contaram os turbulentos e por vezes inusitados bastidores do triunfo cruz-maltino.
Quem desembarcou primeiro foi Luizão. Após passagem sem brilho no La Coruña, da Espanha, assinava contrato para ser a referência na área. Estava fora de forma, sumido da mídia, mas tinha no currículo, aos 22 anos, dezenas de gols por Guarani e Palmeiras. Poucos sabem, mas ele foi importante para que Donizete se tornasse seu parceiro. Com ofertas do Botafogo e do Flamengo, o irreverente ex-atleta faria outro caminho se não fosse por Eurico Miranda, então vice-presidente de futebol, que foi até sua casa para convencê-lo.
- Praticamente fechei para voltar ao Botafogo (pelo qual fora campeão brasileiro em 1995), mas não estava muito certo que eu queria ir. Eram mais de 22h, vi um carro parando na minha porta, fazendo barulho. Era o doutor Eurico. Tinha um documento na mão e falou que eu ia ser do Vasco. Liguei para o meu empresário, acordei o cara, e ficamos de definir depois. Encontrei o Luizão numa pelada com o Edmundo, e o Luizão, que já estava treinando, me encorajou a resolver. Acabei dizendo sim, e deu tudo certo (risos) - diverte-se.
Ao contrário de seu futuro companheiro, Donizete atravessava um de seus melhores momentos. Depois de rodar por Japão e Portugal, foi titular do Corinthians em 1997 e saiu para o Cruzeiro no fim do ano, apenas para jogar o Mundial Interclubes. Mesmo com tanto moral, admite que foi complicado aguentar o fardo que o amigo, vendido por R$ 15 milhões para a Fiorentina-ITA, lhe deixou de presente nos primeiros meses na Colina.
- A pressão era muito grande, até da torcida quando estávamos em campo. Qualquer passe errado e já gritavam aquele "ah, é Edmundo!". Isso deixava todo mundo chateado. Eles carregam o Edmundo como um ídolo, porque é vascaíno, fez muito pelo clube. Mas não desmotivou a gente. Tem jogador que é orgulhoso. Eu e Luizão usamos a experiência, o papo para segurar a onda. E grande parcela nessa mudança foi do próprio Edmundo, que falou bem de mim, me indicou para ser o substituto dele, que disse eu ia arrebentar. Agradeço muito a ele por tudo o que fez nessa época - conta o ex-jogador, que mora no mesmo condomínio que o amigo.
Luizão citou um papo um tanto intimidador e direto com Eurico, bem ao estilo do ex-dirigente.
- Ele falou: "só quero gol na Libertadores, é para isso que você veio. O resto não precisa". Se não ganhássemos, estávamos f..., essa é a verdade. Ninguém ia se contentar com menos.
Ataque marcador vira inovação
A demora na adaptação fez com que os primeiros gols só saíssem no quarto jogo, contra o Grêmio - o primeiro em casa. Antes, a dupla não falava a mesma língua que o técnico Antônio Lopes. Responsável pela formação da equipe, o Delegado passou a exigir algo incomum até então no futebol brasileiro: que seus atacantes marcassem os volantes adversários, não apenas os cercassem, como era costume. A dificuldade quase acarretou consequências drásticas, já que o Pantera reclamou publicamente e por pouco não foi dispensado. Já Luizão se recorda de um episódio curioso no 1 a 1 com o América-MEX.
- Na preleção, o Lopes falou que ia marcar o Coyote, um volante dos caras. Não podia largar. Só que o Coyote corria para caramba, amigo. Ia para esquerda, para direita, linha de fundo, e eu lá atrás dele. Resultado: não consegui chutar, caí todo enrolado atrás do gol em uma jogada, já cansado demais, e pedi para sair no início do segundo tempo. Virei para o Lopes e falei: "Tá vendo? Esse Coyote é f..., corre pra caramba!".
- Ali, só se encarnasse um Papa-Léguas! - emendou Donizete, aos risos, ao ouvir a história, referindo-se ao desenho animado em que o Coiote sempre perde na perseguição.
Os fatos e relatos indicam que a estratégia de Lopes, no fim das contas, deu muito certo e foi tida como um ponto de partida para que os treinadores adotassem a prática, para desespero de muitos atacantes. Para se ter uma ideia, o camisa 9 recebeu sete cartões amarelos durante o torneio. Mas não havia suspensão automática. Só uma multa leve.
- O bom é que era só pagar uns dólares e resolvia. Nunca tomei tanto cartão na vida ou dei tanto carrinho (risos). Eu já gostava de brigar pela bola assim, era meu estilo. Mas desenvolvi bem mais esse lado e me ajudou na carreira. Fiquei marcado como um atacante brigador.
Os oito gols sofridos em 14 partidas mostra a eficiência do sistema defensivo, que, neste caso, começava efetivamente lá na frente, como admite o zagueiro Mauro Galvão, beneficiado pelo bom trabalho de meias e atacantes.
- Tínhamos uma defesa boa, entrosada, um meio forte, técnico, com grande disputa de posição e um ataque que, além de fazer os gols, ajudava muito. Não tinha ninguém parado, todo mundo estava se movimentado e fazendo com que a bola chegasse dividida atrás.
Lopes se recorda da iniciativa tática com orgulho e cita o uso dela nos clubes.
- Isso foi decisivo. O Luizão tinha a incumbência de marcar o volante. Ninguém fazia isso no Brasil. Na decada de 90 os atacantes não ficavam tão presos. Davam um combatezinho, mas eu falava para pegar em cima. Foi uma novidade para a época. Nem Edmundo e Evair faziam isso em 97. Pelas características, nem se eu pedisse talvez desse certo. Hoje os dois da frente pegam os volantes de frente, correm muito mais.
Sinceridade nas noitadas de Luizão
Ter que marcar com intensidade não era o único obstáculo que Luizão tinha que superar com o chefe. Além de ter que sobreviver às horas de preleção recheadas de estatísticas e repetições, estava solteiro, gostava de sair à noite e não dispensava algumas cervejas. Só que recebia cobranças da comissão técnica. O segredo, diz o ex-atacante, era ser sincero.
- Nunca menti para o Lopes. Não existia esse lado, porque sabia que ia me dar mal. Eu fazia as minhas coisas, mas tinha noção de como poderia me queimar se pisasse feio na bola. Eu chegava com a cara ruim, ele me perguntava se tinha saído, e eu dizia que sim. Algumas vezes ele me deixava lá, sem ir para o campo. Quando contaram que eu tinha saído num dia que não poderia, eu fui lá dizer que era mentira: "o senhor está só jogando verde ou inventaram", falei.
A versão geral do assunto do ex-volante e lateral-direito Vagner é um pouco mais intensa.
- Luizão e Lopes quebravam o pau, não era simples assim, não (risos). Podia ficar tudo bem, mas tinha discussão. E não era só com ele, claro. O Lopes era linha dura, queria tudo certinho, não aceitava que fizessem algo que pudesse desviar o trabalho para outra direção.
Entrosamento na base do olhar
Desde 1999, quando se separou, a dupla se cruzou cerca de dez vezes - algumas delas como rivais até 2003, quando Donizete disputou a Série A pela última vez, em um rápido retorno ao Vasco. Antes do bate-papo com a reportagem, se abraçaram na chegada, trocaram novos números de telefones, discutiram a dívida que têm a receber de vários clubes, indicaram advogados um ao outro e falaram rapidamente da família. Claro, relaxaram após pararem e estão acima do peso. Mas há 15 anos sobrava entrosamento da parceria.
- Só no olhar a gente já sabia que se o outro estava bem, num astral legal ou ruim, e um passava muita força para o outro. Incentivava e tal: "vamo lá, Pantera", ele dizia muito. Não tinha disputa, problema de vaidade para fazer mais gols. Até porque ele fazia mais mesmo (risos) Nunca brigamos em campo. Nos unimos até bem mais pela dificuldade no começo. Raramente passávamos em branco. Formamos um ataque forte - lembra, nostálgico.
Para o capitão Mauro Galvão, sem precisar considerar por mais do que cinco segundos, não houve ponto mais fundamental para o título do que o sucesso da dupla nos gramados.
- Era um outro estilo de jogo no ataque, depois da saída do Edmundo e do Evair. Mas víamos que eles tinham bastante chances de nos ajudar. A pressão era normal, era o primeiro teste assim. Começaram mal, mas tinham capacidade. Eram agressivos, fortes fisicamente. Foi primordial o entrosamento da nossa dupla de ataque. Fizeram gol em quase todos os jogos. Mantiveram o alto nível mesmo - enalteceu o ex-camisa 4 e principal líder na bola.
- Cansei de ouvir eles dizendo: "galera, se não levarmos gol, bota fé na gente que vamos resolver. Dava mais confiança.
Titular do Vasco aos 38 anos, o meia Juninho também acredita que evitar a queda no setor foi determinante. Mas não apenas pelos gols, e sim para assegurar que a base era boa.
- Quando perdemos Edmundo e Evair, ninguém imaingou que ganharíamos a Libertadores. O Vasco nunca tinha passado da primeira fase. Eles foram muito bem, mas se apoiaram na base que já existia. Isso provou que éramos bons realmente. Não era a saída deles que ia nos impedir de ganhar a Libertadores. E graça a Deus se confirmou.
Na campanha da Libertadores, foram sete gols de Luizão e cinco de Donizete. Quase todos em São Januário - à exceção justamente da decisão. O artilheiro cruz-maltino ficou atrás do brasileiro Sérgio João, do Bolívar-BOL, com dez. Na soma das duas partidas da final contra o Barcelona de Guayaquil, cada um balançou a rede duas vezes, ratificando a fama de decisivos e tornando-se ídolos do clube de uma vez por todas.
No quadro abaixo, confira um resumo sobre o que os campeões estão fazendo hoje.
O GLOBOESPORTE.COM ainda vai transmitir a íntegra da finalíssima da competição, contra o Barcelona, em Guayaquil, às 16h, com tempo real e pré-jogo com dois campeões.