O futebol brasileiro jamais usou uma casa tão democrática quanto o Estádio Club de Regatas Vasco da Gama, chamado por São Januário, devido ao ponto de bonde que havia, ao final da década-1920, à rua com o nome do santo.
Ideologias políticas à parte, a “Turma da Colina” já viu passar pelo seu reduto três presidentes da república – Washington Luís, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck - e dezenas de representantes de outras vertentes políticas, inclusive o maior líder comunista já surgido no país, Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança” – percorrera 26 mil quilômetros de brasis à cavalo, em luta por seu credo.
Foi em São Januário que se deu a reconciliação entre o governo de Getúlio Vargas e o Partido Comunista Brasileiro. Com a aproximação do final da II Guerra Mundial, Getúlio foi tocado pelos ventos democráticos que sopravam no planetas. Em fevereiro de 1945, ele anunciou eleições gerais no país; em abril, reatou relações diplomáticas com a então União Soviética, decisiva na vitória sobre as tropas nazistas de Adolfo Hitler; em seguida, anistiou os presos políticos, permitindo a Luis Carlos Prestes ficar livre e participar das comemorações da legalidade do “Partidão”, em julho.
Passada aquela etapa, o próximo passo dos políticos brasileiros era pressionar Getúlio pela convocação de uma constituinte, campanha na qual logo se engajaram os partidos Comunista, Trabalhista, Democrático Progressista, da Lavoura, Indústria e Comércio e Evolucionista, empurrados por líderes como Café Filho, Alberto Pasqualini, Mário Chermont e Cesário de Melo, entre outros. Mesmo com aquela abertura democrática concedida por Getúlio Vargas, os líderes comunistas não confiavam muito no que viviam, e temiam uma nova volta à ilegalidade.
Era 7 de setembro de 1945 e o presidente Vargas foi à casa do Vasco da Gama, a maior da América do Sul, participar das comemorações do Dia da Independência. Embora o clube diga que o seu reduto caiba 50 mil torcedores, a propaganda política do governo sustentava haver o dobro. E rolou a festa. Após o discurso do chefe da nação, o secretário-geral do PCB, João Amazonas, que colocou-se diante de onde o presidente estava, gritou para ele, malandramente, dizendo que “Seu Gegê” sabia ficar ao lado do povo nos momentos mais difíceis. E, por confiar nele, o povo lhe pedia constituinte e liberdade sindical. Getúlio, populista, não podia perder aquela, diante do povão. Estendeu uma das mãos ao líder comunista, dizendo-lhe que, naquele momento, cumprimentava todos os trabalhadores brasileiros.
GIRA O MUNDO - Enquanto Getúlio Vargas dava novos rumos ao seu governo, no Japão, o imperador Hiroito sugeria revisão constitucional, após 56 anos, para seu país ser mais democrático; em Portugal, o primeiro-ministro Oliveira Salazar anistiava presos políticos, liberava a imprensa da censura governamental e marcava eleições gerais; na Inglaterra, políticos pressionavam o governo a rever a sua política para a Palestina; na França, o governo do general De Gaulle negava clemência ao ex-primeiro-ministro Pierre Laval, fuzilado, sob a acusação de colaboração com os nazistas, durante a invasão do país, pelas tropas de Hitler; na Argentina, o povo exigia e obtinha a libertação do coronel Juan Domingos Peron, que ocupara os cargos vice-presidente, ministro da guerra e secretário de trabalho/previdência, por ter introduzido importantes mudanças sociais e trabalhistas no país. Aquele era o momento, também em que os países aliados constituíam um tribunal internacional e começavam a julgar, em Nuremberg, os criminosos nazistas de guerra.
Dentro daquele quadro político mundial, Luis Carlos Prestes conquistava a simpatia de trabalhadores e de intelectuais, como os escritores Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Monteiro Lobato; de pintores do porte de Pancetti e Di Cavalcanti; do arquiteto Oscar Niemeyer e do poeta Carlos Drummond de Andrade. Quando o PCB solicitou ao Vasco a sua casa, para Prestes falar ao seu povo, em sua primeira aparição pública, em 23 de maio de 1945, após ganhar a liberdade, o clube o atendeu. Prestes queria ser ouvido das arquibancadas do estádio que aplaudira os primeiros trabalhadores e negros do futebol brasileiro.
Enquanto Luís Carlos Prestes fazia campanha pela constituinte, que saiu em 1947, ano em que o PCB voltou à ilegalidade, a Federação Paulista de Futebol tinha por secretário-geral Ulysses Guimarães, ligado ao seu presidente, o político santista Antônio Ezequiel Feliciano da Silva, na esteira de quem se elegeu deputado constituinte, naquele ano.
No jogo do destino, em 1988, quando Prestes empreendia um novo retorno político, depois de longos anos de exílio, Ulysses presidia uma nova constituinte. O estádio de São Januário assistia, em 24 de fevereiro, o início da campanha do Vasco rumo à conquista do título estadual, com 21 vitórias, em 26 disputas, totalizando 47 gols, dos quais 16 do hoje deputado federal Romário de Sousa Farias.
Fonte: Blog Kike da Bola