Time da virada e de história monumental, o Vasco oferece capítulos de sua bonita trajetória para que sua torcida transforme em música. Mas virada tão espetacular quanto a da Copa Mercosul o clube viveu em 12 de agosto de 1923, há exatos 90 anos, quando conquistou seu primeiro Campeonato Carioca. O triunfo ajudou a abolir barreiras raciais e sociais, permitindo a consolidação de negros e pobres no futebol brasileiro. E um dos heróis desta conquista, o zagueiro e meio-campo Mingote, que morreu em 1975 aos 73 anos, ainda está presente no bairro de Campo Grande, nos recortes de jornal guardados por sua filha Arli Paccine e pela neta Tatianna Paccine.
Discriminado por América, Botafogo, Flamengo e Fluminense, o Vasco assombrou o Rio de Janeiro com uma campanha avassaladora e com um time formado por negros, operários e suburbanos. Em 14 jogos, foram 11 vitórias, dois empates e apenas uma derrota.
O Vasco, com jogadores bem preparados fisicamente, definiu nove de seus 11 triunfos apenas no segundo tempo: em cinco foi para o intervalo com o marcador empatado e nos outros quatro iniciou a fama de time da virada. Na partida que lhe valeu o título, saiu perdendo por 2 a 0, mas venceu o São Cristóvão com três gols na etapa final: um do negro Ceci e outros dois de Negrito, um branco de cabelos lisos e muito escuros, origem de seu apelido.
O italiano Domingos Passini, que chegou ainda pequeno ao Brasil e logo foi apelidado de Mingote, era um dos brancos de origem humilde que se dividiam entre os jogos do Vasco e outra atividade - no seu caso, a de pintar paredes. Foi ele quem abriu o placar na primeira vitória cruz-maltina (por 3 a 1) no Carioca de 1923, sobre o Botafogo, na segunda rodada. Um dos heróis vascaínos, ele não pôde com sua trajetória futebolística garantir uma fortuna para sua família. A estabilidade que Arli Paccine, de 62 anos, tem em Campo Grande, onde mora com a filha Tatianna, deu-se em função dos anos de dedicação às Tintas Ypiranga, empresa na qual se aposentou.
A realidade atual é muito diferente quanto aos rendimentos mensais de um jogador que atue em um clube de Série A. Mas há semelhanças relativas à rotina dos atletas. Viagens, assédio dos fãs e até mesmo das marias-chuteiras da época eram constantes, conforme conta a filha Arli. Lembra-se da época em que era uma criança e via o pai, já com mais mais de 50 anos, ser muito assediado por vascaínos - e vascaínas.
- Minha mãe falava que viajava muito com ele para jogar. Já tinha assédio nessa época, o pessoal comentava sempre que ele jogou no Vasco. Meu pai falava muito. Onde ele parava, falava tudo que acontecia no Vasco. O pessoal pedia autógrafo, mas ele não dava. Era marrento (risos). E já tinha maria-chuteira, sim! Minha mãe falava que mulher ficava em cima e que eles às vezes estavam almoçando, e as mulheres paravam e perguntavam se ele ia jogar. Minha mãe sofria com mulher, mas ele era muito fechado e não era mulherengo. Não era de se exibir - garante ela, que nasceu quando ele tinha 49 anos.
Uma das perseguições sofridas pelo Vasco em 1923 dizia respeito à ocupação de seus atletas. Como o futebol era amador, exigia-se que os atletas tivessem outro emprego. Comerciantes portugueses, entretanto, quebraram esse protocolo, praticando o que foi chamado de amadorismo marrom. Registraram alguns dos atletas em seus estabelecimentos e não os obrigavam a trabalhar constantemente, mas pagavam para que jogassem.
Mingote recebia mais como pintor, porém isso não pesava em seu amor pelo Vasco. Arli conta que, mesmo depois de sofrer grave doença, ele lamentava não poder frequentar São Januário, algo tão corriqueiro quando estava bem de saúde.
- Papai era Vasco doente. Vivia muito no Vasco. Havia almoços, aí o chamavam, e o papai ia. Lembro que a última vez em que fomos convidados para o Vasco, eu já era mocinha, e ele já estava doente. Papai teve um derrame e nem sentava, paralisou a espinha toda. Até doente ele falava: "Não fomos no almoço" - conta.
Toda essa paixão pelo Vasco, porém, não passou para as gerações futuras. A família Passini, segundo Arli, é quase toda rubro-negra, inclusive a própria. Mingote era tão querido que, mesmo depois de ter morrido, limpou a barra de um neto flamenguista em reduto cruz-maltino. O dentista Milton Passini, de 58 anos e sobrinho de Arli, relata que virou rei em um bar em Botafogo - Zona Sul do Rio - ao revelar o grau de parentesco com o ex-zagueiro:
- Eu não cheguei a ter contato de conviver com o Mingote por muito tempo. E eu não tinha, inclusive, nenhuma fotografia dele, não tinha nada que a gente pudesse ver. Então um dia lá no Bar do Otávio, que a gente chama de Bar do Vasco, descobriram que eu era flamenguista e me zoaram muito: "O que você está fazendo aqui?". Mas, depois que descobriram que eu era neto do Mingote, aí a história mudou toda, passaram a me adorar lá. Me deram até foto dele.
Mas há quem grite e alto pelo Vasco nos Passini. Tatianna, filha de Arli, tem 31 anos e é a semente cruz-maltina deixada por Mingote. Ela faz uma queixa ao mundo do futebol, cobra mais homenagens e diz que a falta de referências ao passado faz até com que vire piada em roda de amigos quando fala da história do avô.
- Foi o primeiro Carioca do Vasco, e eles foram esquecidos. Se a minha mãe não soubesse a história de que meu avô foi jogador, eu jamais saberia. Sempre que falo do meu avô, meus amigos dão gargalhada e falam que isso não existe. O Vasco não se fez de agora, aqueles jogadores se dedicaram muito - questionou Tatianna, que se intitula como a "inimiga número 1 do Flamengo".
O Vasco vem fazendo referências ao título de 1923 desde o clássico contra o Botafogo, no domingo. Na ocasião, os jogadores entraram em campo com uma réplica da camisa usada 90 anos atrás. Contra a Ponte Preta, o clube pediu que os torcedores fossem a São Januário de preto, e os jogadores atuaram com os nomes dos campeões às costas.
Museu de memória ainda é apenas um projeto
O Vasco tem um projeto para dar mais destaque à sua história. Numa sala acanhada situada abaixo das sociais de São Januário funciona o Centro de Memória do clube. Apesar de pequeno, o local abriga o maior acervo de materiais digitalizados do mundo, segundo João Ernesto Ferreira, diretor do centro e vice-presidente de relações especializadas. O sonho de João é migrar para uma sala maior e, posteriormente, abastecer um pomposo museu, aguardado desde 2009.
- Sei que dói no ouvido do fanático, mas nossa intenção é servir de pesquisa não só para o vascaíno, mas também para flamenguista, tricolor e botafoguense. Por acaso todos os funcionários do centro de memória são vascaínos, eu sou vascaíno, mas nosso trabalho não tem fanatismo. Queremos que o cara precise vir ao centro de memória do Vasco quando necessitar de algum material dos outros clubes. Nosso sonho é que o projeto do museu se concretize logo - afirma o pesquisador Walmer Peres.
Sobre o título de 1923, Walmer afirma que algo imprescindível para qualquer material relativo àquela jornada é a carta-resposta enviada um ano depois pelo então presidente vascaíno José Augusto Peres à Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea). A entidade foi criada em 1924 pelos clubes que se opuseram à participação do Vasco no Carioca e pediu a exclusão de 12 jogadores, entre negros e operários, sob alegação de que eram analfabetos ou não trabalhavam. Mingote foi um dos condenados, mas por outra razão: segundo a Amea, ele havia sido expulso do Exército. Clóvis Dunshee de Abranches, autor da defesa do jogador na época, provou que a acusação não procedia.
A resposta cruz-maltina foi um sonoro "não", e o Vasco permaneceu na Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT) e levou o bicampeonato. Assim, o ano de 1924 teve dois campeões cariocas: o Vasco, pela LMDT, e o Fluminense, pela Amea. A carta-resposta de José Augusto demarcou a importância do Vasco e lhe permitiu voltar à elite em 1925, firmando-se de vez. Veja abaixo uma imagem da carta-resposta e, a seguir, um texto com a transcrição:
Rio de Janeiro, 7 de abril de 1924.
Ofício nr. 261
Exmo. Sr. Dr. Arnaldo Guinle
M.D. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos
"As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação que V.Exa tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa tal situação de inferioridade que, absolutamente, não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede e nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.
Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma pela qual será exercido o direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.
Quanto à condição de eliminarmos doze (12) dos nossos jogadores das nossas equipes, resolve, por unanimidade, a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama não a dever aceitar, por não se conformar com o processo pelo qual foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
Estamos certos que V.Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores jovens, quase todos brasileiros no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias.
Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V.Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA.
Queira V.Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever, de V.Exa".
At. Vnr. Obrigado.
José Augusto Prestes
Presidente