Muitos anos antes do Trem-Bala de Ricardo Gomes e Cristóvão, ainda nos tempos do Expresso da Vitória, o Vasco inovava para substituir um treinador consagrado no futebol sul-americano. Numa das histórias mais inusitadas de um futebol de outros tempos - que havia se profissionalizado somente há 13 anos -, a diretoria do clube decidiu colocar nos principais jornais da imprensa carioca e paulista um anúncio de três colunas e 15 cm de altura, no dia 6 de julho de 1946, para convocar "técnicos de futebol com serviços prestados em clubes das federações paulista e carioca" (veja o texto completo do anúncio no fim da reportagem) a se candidatarem à vaga que o uruguaio Ondino Vieira deixava no Vasco. Para preencher os ares de folclore da história, o escolhido, após intensa movimentação em cinco dias de concurso, não ficou nem um semestre no Vasco. Com o ex-zagueiro português Ernesto dos Santos, que se tornou professor catedrático da UFRJ e da UERJ, o Expresso amargou a quinta colocação do Carioca daquele ano. No início de outubro, ele já pedia demissão e abria caminho para um dos técnicos mais vitoriosos da história vascaína: Flavio Costa.
Se hoje o Vasco, para contratar Dorival Junior, foi ligeiro, já com um alvo pré-definido e fechou a negociação em apenas dois dias, naquela época o "aviso", que foi colocado em destaque nos principais jornais da imprensa carioca, provocou alvoroço no meio esportivo. O clube pedia para os interessados levarem seus currículos no Departamento Técnico do Vasco "munidos de provas de suas habilitações e de documentos de sua idoneidade moral e profissional" até as 18h do dia 10 de julho. Ao contrário dos dias atuais, o Vasco passava longe de uma crise financeira. Há 67 anos já estava formada a base de um dos times mais vitoriosos do futebol brasileiro, o Expresso da Vitória. Vestiam a camisa do Vasco Barbosa, o "Príncipe" Danilo, Jorge, Chico, Jair Rosa Pinto, entre outros grandes jogadores. Mas a estrela principal daquele escrete estava de saída. Ademir Menezes, o camisa 9, o Queixada, enfrentava problemas para renovar com o Vasco e se transferia para o Fluminense. À época, a frase do treinador tricolor soou como uma profecia: "Deem-me Ademir, que lhes darei o título", dizia Gentil Cardoso.
Antes do Fluminense tirar de São Januário o jogador que seria artilheiro da Copa do Mundo de 1950 e antes de conquistar o título Carioca de 1946, o Vasco recebia treinadores em seu campo para serem entrevistados por Ondino Vieira. No dia 8 de julho de 1946, o Jornal do Brasil noticiava que Adhemar Pimenta, técnico da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938 na França, pedia para a Confederação Brasileira de Desporto (atual CBF) uma espécie de atestado de eficiência técnica para impressionar o corpo vascaíno que escolheria o novo comandante do time. Além dele, os veículos da época consultados para esta reportagem (O Globo, Jornal do Brasil, Globo Sportivo, A Noite e A Manhã) registravam a procura de outros importantes nomes do futebol brasileiro.
Um dos mais respeitados pesquisadores vascaínos, Mauro Prais, conta que Ondino Vieira, o técnico uruguaio que estava de saída do Vasco, coordenou toda sua sucessão. Ele entrevistou todos candidatos antes da diretoria escolher pela opção considerada mais apropriada para treinar o Expresso.
- Numa série sobre técnicos da história do Vasco no Jornal dos Sports nos anos 1970 o jornalista Max Morier fala em "filas" para treinar o Vasco, mas me parece muito mais um exagero ou uma licença poética usada no texto. Apareceram em São Januário no último dia do concurso seis nomes: Del Debbio (ex-jogador do Corinthians, que dirigiu o São Paulo), Joreca (também oriundo do futebol paulista, mas que serviu a seleção brasileira em 1944, junto com Flavio Costa), Abel Picabea (ex-São Cristóvão e Santos), Zezé Moreira (irmão do Aymoré Moreira, campeão do mundo em 1962 pelo Brasil), Humel Guimarães (que treinou o Sport-PE) e Adhemar Pimenta. Foram todos devidamente entrevistados, com a participação do Ondino Vieira, que estava de saída, mas coordenou toda a sua sucessão - diz o engenheiro Prais, que mora nos EUA desde os anos 1990 e respondeu ao GLOBOESPORTE.COM por e-mail. Outros veículos da época noticiam oito nomes no concurso.
Motivação política
A razão de a diretoria vascaína ter colocado em anúncio de jornal a busca por um novo treinador é controversa. Para historiadores e pesquisadores da história vascaína, a adoção da prática era como uma jogada de marketing, um jogo de efeito para uma substituição quase que insubstituível de Ondino, que, para muitos, trouxe o esquema 4-2-4 para o futebol brasileiro. O Expresso começou a nascer em 1942 com o uruguaio, que montou a máquina de jogar futebol ganhadora de 11 títulos em 10 anos, sendo cinco Cariocas - três deles invictos - e o campeonato Sul-Americano de Clubes de 1948 - título reconhecido no fim da década de 1990 como a primeira Libertadores pela Conmebol. Para outros especialistas, as eleições em São Januário já influenciavam nas decisões do futebol. Jaime Guedes cederia a presidência vascaína de volta a Cyro Aranha, presidente do início do Expresso em 1942 e autor da frase inscrita nos muros do clube: "Enquanto houver um coração infantil, o Vasco será imortal".
- Acredito que alguma questão política influenciava o futebol do clube naquela época. Tinha eleição próxima e os bastidores do clube estavam movimentados. Era como uma jogada política - aposta Alexandre Mesquita, um dos autores do livro "Um Expresso Chamado Vitória".
João Ernesto, vice-presidente de relações especializadas do Vasco, lembra que não era por falta de dinheiro que o clube lançava mão de um recurso sem precedentes no futebol carioca. Apesar de ter perdido Ademir para o Fluminense, o clube contratara Dimas e Maneca, que se integrariam ao Expresso. O vice-presidente vascaíno lembra que boa parte dos torcedores do clube, dirigentes ou não, tinham posição sólida no comércio e na indústria da cidade.
- Naquele tempo se dizia que quando o Vasco precisava de dinheiro para contratar algum jogador ou algum grande treinador deveria passar antes na Rua do Acre, que era onde se concentrava um importante polo econômico da época - lembra João Ernesto.
A contratação de outro Ernesto, o dos Santos, era um sonho antigo do Vasco. O professor português formara nas primeiras turmas de educação física importantes nomes de treinadores do futebol brasileiro. Entre eles, Flavio Costa, com quem trabalhou no Flamengo. Ernesto era chefe do departamento técnico do rubro-negro. Em 1944, o jornal A Noite já avisava que Vasco e Madureira estavam atrás do profissional do Flamengo. Segundo a publicação da época, Ernesto não confirmava as propostas "por motivo de correção e modéstia". Ernesto dos Santos seria ainda observador técnico da CBD na década de 1960. Dois anos antes de o Vasco o contratar por meio do concurso anunciado em periódicos da cidade, ele recebia "vencimentos mensais ótimos", dizia a reportagem do A Noite.
Salário de R$ 4 mil
Na proposta do Vasco, estipulada abertamente no anúncio dos jornais, o contrato previa as seguintes remunerações. O clube pagaria Cr$ 45 mil de luvas, salário mensal de Cr$ 3 mil, prêmio de Cr$ 20 mil e prêmios por vitórias ou empates iguais aos dos jogadores do time. O cálculo para os dias de hoje mostram a distância das remunerações de quase sete décadas atrás. No site do Banco Central do Brasil, a conversão, usando índice IGP-DI, traz luvas de R$ 65 mil, mais salário de pouco mais de R$ 4 mil e prêmio de R$ 27 mil pelo título. A conquista do campeonato, aliás, passou longe. Sem Ernesto, o Vasco estreara com uma boa vitória frente ao Botafogo, em General Severiano, por 3 a 0, mas depois perdeu duas consecutivas, nos primeiros jogos do novo treinador. O time de Ernesto dos Santos, adepto de treinos secretos, como noticiava a imprensa da época, levou seis gols do Bangu, em São Januário, e marcou só dois, na estreia do técnico.
A história vascaína do concurso, que começou como sensação e chegou a ser considerada como farsa pela coluna "Língua de Sogra" do A Manhã - que dizia ser uma "marmelada" a escolha de Ernesto, porque Ondino Vieira ficaria de supervisor do clube e ainda teria poder de decisão no time -, terminaria mal-sucedida para o vencedor. Ernesto dos Santos, que ganhava destaque na imprensa pela primeira colocação na turma da Escola Nacional de Educação Física que tinha o próprio Ondino Vieira e Flavio Costa, teve pouquíssimo tempo para provar seu valor.
- Não levo planos. Procurarei seguir a orientação deixada por Ondino Vieira. Orientação cuja eficiência é bastante conhecida e que não comporta mesmo qualquer tentativa de modificação. Assim procurarei apenas fazer na direção técnica do Vasco o que Ondino faria, se me for permitda essa pretensão - dizia ao Globo Sportivo Ernesto, em 19 de julho de 1946.
Em página inteira, um dos periódicos enchem a bola do treinador, que pouco duraria em São Januário. Pelo Vasco, foram poucas histórias felizes contadas.
- O epílogo infelizmente não é feliz, pois o Vasco não fez boa campanha e o Ernesto dos Santos não demorou a pedir rescisão do contrato, que foi imediatamente aceita. Ficou praticamente o mesmo tempo que o Autuori - diz Mauro Prais, lembrando da breve experiência de Paulo Autuori no Vasco, que foi apresentado nessa quinta no São Paulo.
Em comum com Ernesto, além do fato de os dois terem pedido demissão pouco depois de três meses em São Januário, Autuori também é reconhecido como profissional de alto gabarito do futebol. Se Ernesto nasceu em Portugal em 1911, Autuori começou sua carreira no mesmo país europeu. A chegada dos dois era cercada de esperanças e de ideias que poderiam ser colocadas em prática. Mas o futebol, às vezes, não deixa.
- Uma diferença é que naquela época o Vasco tinha indiscutivelmente o melhor elenco do Rio. Em 1947, Flavio Costa sai do Flamengo para o Vasco. E Ernesto dos Santos assume o Flamengo. Lá também não conseguiu sucesso. Nem sempre os teóricos e filósofos conseguem aplicar na prática os seus conhecimentos no futebol - lembra o historiador vascaíno.
O texto do anúncio
Club de Regatas Vasco da Gama
Aviso
O Departamento de Futebol Profissional do Club de Regatas Vasco da Gama convida os técnicos de futebol com serviços prestados em clubes das federações paulista e carioca, que desejarem se candidatar a ocupar o lugar de técnico de futebol do referido clube, a se apresentarem até o dia 10 do corrente, às 18 horas, no Departamento Técnico, no estádio de São Januário, munidos de provas de suas habilitações e de documentos de sua idoneidade moral e profissional, mediante contrato nas seguintes bases:
a) prazo do contrato: 15 de julho de 1946 a 31 de dezembro de 1947;b) luvas de Cr$ 45.000,00;
c) ordenado de Cr$ 3.000,00;
d) prêmios por vitórias ou empates iguais aos estabelecidos para os jogadores, nas divisões principal, imediata e aspirantes;
e) prêmio de Cr$ 20.000,00 pela conquista do Campeonato da Divisão Principal.
O Club de Regatas Vasco da Gama se reserva o direito, não só de não aproveitar qualquer dos pretendentes, mas ainda o de escolher livremente entre os candidatos aquele que, a seu exclusivo juízo, for considerado o mais indicado.