Dois homens simples, que moram em Vicente de Carvalho e na Grota, no Complexo da Penha, bairros do subúrbio carioca, foram transformados em laranjas de uma empresa de construção que ganhou licitações e agora é suspeita de envolvimento em irregularidades em obras de colégios estaduais na Região Serrana do Rio. O camelô Everton Mariano Bragança, de 52 anos, e o auxiliar de serviços gerais Anderson Luís André dos Santos, de 32 anos, foram transformados em sócios da Refor Construções Ltda. A empresa teria recebido pelo menos R$ 1 milhão para reformar escolas estaduais nos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Sapucaia, com recursos públicos repassados ao Rio pelo governo federal.
Tirando o fato de serem humildes trabalhadores, a única coisa em comum entre Everton e Anderson foi terem trabalhado no mesmo momento na Interal Comércio e Representação Ltda., empresa que forneceria alimentos para escolas da rede estadual do Rio. A Interal funciona na Rua da Batata 110, no mercado São Sebastião, no bairro da Penha, mesmo endereço fornecido como sede pela Refor Construções Ltda., segundo na Junta Comercial do Rio. Everton deixou a Interal em 2010. Já Anderson trabalhava na empresa até a semana passada.
— Eu, sócio de uma empresa com contratos com o governo? Você deve estar brincando. Sério? Moro numa casa alugada e ganho como camelô cerca de R$ 500 por mês. Não sei como isso pode acontecer, meu nome envolvido em irregularidades. Só pode ser brincadeira — afirmou Everton.
Casado, pai de quatro filhos e com dois netos, Everton foi localizado pelo GLOBO na semana passada, cercado de caixotes em um pequeno trecho da calçada em frente ao número 130 da Rua Bento Cardoso, na Penha. Atrás do balcão improvisado, Everton ficou surpreso ao ser informado de seu envolvimento na empresa Refor Construções.
— A única coisa na minha vida que poderia ser comparado aos empresários de sucesso é o nome da rua onde moro em Vicente de Carvalho: a Rua Ipanema — brincou Everton, em referência ao badalado bairro da Zona Sul carioca.
A Refor Construções estava reformando a escola estadual de Araras, na cidade de Petrópolis, com recursos transferidos à Secretaria estadual de Educação do Rio pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao Ministério da Educação, quando a Região Serrana sofreu as enchentes em janeiro de 2011. Com a tragédia, o governo federal decidiu enviar um pacote de R$ 74 milhões ao governo do Rio para recuperar 77 escolas atingidas supostamente pelas chuvas.
A escola de Araras estava nesse pacote. O problema é que o colégio não foi castigado pelas chuvas, garantiram professores ouvidos pelo GLOBO. Mesmo assim, o dinheiro foi repassado pela Empresa de Obras Públicas do Rio (Emop) — ligada à Secretaria estadual de Obras — em caráter de emergência, sem licitação, para a Engeproc Construtora Ltda. Pela nova reforma, a Engeproc recebeu pelo menos R$ 250 mil, mas essas obras, segundo a diretora Ana Patrícia Alves Pizzano, não existiram.
Procurador fará inquérito
Patrícia disse aos fiscais do Tribunal de Contas da União (TCU) que nenhum funcionário da Engeproc foi visto na escola e que os pequenos reparos foram feitos por quatro empregados da Refor e por funcionários do colégio, com recursos da escola. O GLOBO localizou os sócios da Engeproc, com sede na Rua General Roca, na Tijuca: os empresários João Baptista Pessoa de Assis, de 47 anos, e Ivanir Maria Ferreira de Oliveira — mulher de Alexandre Crispim de Oliveira, enteado de Carlos Roberto de Oliveira, o Roberto Dinamite, ex-jogador de futebol, deputado estadual do Rio (PMDB) e atual presidente do Vasco. Alexandre também exerce a função de assessor parlamentar, lotado no gabinete de Dinamite na Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj).
Pessoa é casado com a arquiteta urbanista Susane Erica Herschdorfer Pessoa de Assis, que assinou como responsável técnica os projetos tanto da Engeproc como da Refor. Susane também era, até a semana passada, funcionária nomeada (desde setembro de 2008) da Secretaria estadual de Obras. Atualmente, informou o governo do estado em nota, ela exerce a função de assessora técnica, na área de obras civis, da Subsecretaria de Obras Civis e Programas Especiais do governo do estado.
As supostas fraudes na aplicação de recursos públicos foram identificadas em vistoria de fiscalização pelo TCU, votada em plenária no mês passado, com pedido de abertura de processos para tomada de contas especial pelos ministros. O assunto chamou a atenção do procurador da República Charles Stevan da Mota Pessoa, do Ministério Público federal de Petrópolis, que decidiu instaurar um inquérito na última quinta-feira.
— Estou determinando a instauração de inquérito civil público para investigar as supostas irregularidades na aplicação de recursos federais em escolas estaduais de Petrópolis, que foram fiscalizadas pelo TCU. Num segundo momento, posso também requisitar uma investigação na área criminal. São denúncias muito graves — afirmou o procurador.
Segundo ele, há suspeita de operação combinada de lavagem de dinheiro, ocultação de bens e até de formação de quadrilha. Ele vai requisitar ao TCU a relação de todos envolvidos e do conjunto de 77 escolas que receberam recursos federais para obras emergenciais na Região Serrana. A ideia é saber se existem outras empresas envolvidas em irregularidades na área da procuradoria de Petrópolis, que abrange ainda os municípios de São José do Vale do Rio Preto, Três Rios, Areal, Sapucaia e Paraíba do Sul.
— Estou pedindo os documentos com as tomadas de contas — disse o procurador.
Empresários afirmam que contratos foram cumpridos integralmente
Em nota enviada ao GLOBO, os representantes da Engeproc Construtora Ltda. negaram qualquer irregularidade nas reformas que realizou em escolas da Região Serrana do Rio. Eles afirmaram que a empresa “foi regularmente contratada pela Empresa de Obras Públicas (Emop) em regime emergencial (conforme lei 8.666/86)” para reformar três escolas da região: o colégio estadual Araras e o Ciep 472, em Itaipava, ambos no município de Petrópolis; e a escola estadual Euclydes da Cunha, em Teresópolis.
Os empresários informaram também “que foram cumpridos integralmente os contratos em todas as obras”. Sobre o ginásio da Euclydes da Cunha, que, segundo os professores da escola, ficou inacabado, a empresa garantiu que “o ginásio não foi objeto de contratação por parte da Engeproc”. Ressalta ainda que caso seja citada em processo do TCU, “do qual teve ciência pela mídia e cujo teor desconhece”, estará à disposição para prestar todos os esclarecimentos necessários.
A empresa acrescentou que prestará também todas as informações necessárias aos deputados estaduais, assim que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), protocolada na semana passada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), for instalada.
O deputado estadual Roberto Dinamite, em seu quinto mandato, disse em nota que não se envolve nas atividades de seu enteado, Alexandre Crispim. Dinamite garantiu ainda que sempre pautou seu trabalho pela transparência.
Secretaria deve investigar
A Secretaria estadual de Educação e a Empresa de Obras Públicas (Emop), ligada à Secretaria estadual de Obras, em nota encaminhada ao GLOBO, garantiram desconhecer qualquer irregularidade na aplicação dos recursos enviados ao governo do Rio pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (PNDE), do Ministério da Cultura. O secretário de Educação, Wilson Risolia Rodrigues, informou que determinou esta semana a instauração de uma sindicância para apurar possíveis irregularidades na aplicação dos recursos.
Em nota, a Secretaria estadual de Educação garantiu ainda que não compactua com irregularidades ou erros. E disse que todas as denúncias feitas pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal de Contas da União (TCU) servem como alerta e serão investigadas, por meio de sindicância. “Todos os envolvidos, de qualquer setor, havendo comprovação, serão devidamente punidos e os casos encaminhados ao MP”.
O órgão disse ainda que não tem nenhum contrato com essas empresas nem com alguma companhia de fornecimento de alimentos. “A Interal (Comércio e Representação Ltda.) não tem contrato de fornecimento de merenda com a Secretaria de Educação, já que a verba é descentralizada para as escolas comprarem sua própria merenda.”
Memória
Denúncias levam à investigação
Sem obras. Mais de dois anos após a enchente que castigou a Região Serrana, escolas atingidas pela enxurrada continuam sem obras contratadas com recursos do governo federal.
Processo do TCU. O TCU decide pela instauração de processo e a citação dos suspeitos pelas obras fantasmas.
Criação de CPI. Deputados estaduais decidem, na última quarta-feira, instalar uma CPI para investigar possíveis irregularidades, reveladas pelo GLOBO no domingo passado.
Fonte: O Globo