Um dos primeiros trabalhos de Paulo Autuori como treinador foi em Portugal. Incentivado por Marinho Peres, de quem foi auxiliar alguns anos, ele tinha a missão de levar o Nacional da Ilha da Madeira para a Primeira Divisão. A intenção era chegar à elite portuguesa no segundo ano. Mas logo no primeiro campeonato o objetivo foi alcançado. No Vasco, num momento em que fala tanto da distância entre realidade e possibilidade, a lembrança dos tempos em Portugual não vem à toa. Em São Januário, Autuori trabalha com investimento de time modesto, como era o caso do clube da Ilha da Madeira. Mas a responsabilidade é do tamanho da história e do peso do Vasco. O que não lhe dá a ilusão de que, caso os resultados não aconteçam, estará imune a críticas da torcida, que hoje praticamente o idolatra.
Torcedor do Vasco na infância, Paulo lembrou do time de Andrada, de 1970, que encerrou longo período sem títulos do clube (de 1958 até o Estadual conquistado pelos comandados de Elba de Pádua Lima, o Tim, somente um Rio-São Paulo em 1966). Considerado "velho cedo demais" já na adolescência, Autuori lembra na entrevista ao GLOBOESPORTE.COM que, na época de jovem vascaíno, reconhecia que havia times melhores do que aquele pelo qual torcia e que a paixão nunca o cegou. É a lucidez que bate a porta ao traçar metas e objetivos do elenco que tem em mãos atualmente.
- Se neste momento eu disser que vamos lutar por título, estou sendo um tremendo fanfarrão - diz Paulo Autuori.
Confira abaixo a íntegra da entrevista com o técnico do Vasco.
GLOBOESPORTE.COM: Você não falou muito suas lembranças como torcedor do Vasco e sempre disse que isso não foi importante para a chegada a São Januário. Mas você tem lembranças de torcedor, de times, de jogos?
Paulo Autuori: Eu tenho, claro. Mas, como já disse, primeiro que não foi essa situação que me fez vir para o Vasco. Sempre procurei separar, detesto comparações. Cada instituição tem sua particularidade, sua identidade, uma história vitoriosa. E, quando se trabalha em outro clube, se fazem várias amizades, passa a gostar do clube. Fiz amizades em todos os lugares. Mas eu gostava muito de ir aos jogos, pela ligação que sempre tive com futebol. Ia mais na infância do que na adolescência. Tive uma adolescência curta, comecei a trabalhar muito cedo. Mas lembro bem do Campeonato Carioca de 1970. E, quando falo de Elba de Pádua Lima (o técnico Tim), é por isso. Lembro a maneira como foi, que não era a melhor equipe, mas tinha jogadores importantes. Lembro muito do (goleiro) Andrada, do Batuta, do Silva (atacante). Vim várias vezes a São Januário, ia ao Maracanã, eu gostava muito de futebol. Tinha como objetivo estar ligado primeiramente como praticante, mas perdi essa possibilidade por causa do problema na perna (aos 16 anos, Autuori descobriu que tinha poliomielite). Depois segui como torcedor, sempre gostando muito do clube, sempre com certa lucidez, sem deixar a paixão cegar.
Mas a sua mãe é flamenguista, né?
A família inteira. Não só pais, irmãos, mas parentes, tios, primos, todos rubro-negros.
E como você virou Vasco?
Virei Vasco, porquem dizem, dizem, que tinha uma senhora que vivia conosco, que eu chamava de tia, uma cearense, ela era vascaína. E dizem que foi ela que me desvirtuou (risos). A família praticamente toda era flamenguista.
E quando voltou, depois de tantos anos, agora como profissional do Vasco, passaram pela cabeça as lembranças de infância?
Sim, sim, me lembrei de muitas coisas. Até pelo tempo de carreira, essas coisas, essas lembranças vão se diluindo, mas lembrei de algumas coisas, sim.
Esse seu jeito enfático, firme, sério, isso vem desde garoto?
É, sempre tive isso. Diziam: "Pô, esse esse cara parece velho já desde cedo" (risos). Mas isso vem também da educação dos meus pais e do meu tipo de personalidade, que é uma coisa inata, mas aquele período (da doença) também foi determinante na minha vida, para a formação do meu caráter, da minha personalidade.
Desde sua chegada que você rebate o protagonismo de técnicos. Mas a torcida o coloca, hoje, praticamente como ídolo, como esperança de o Vasco escapar do rebaixamento e se sair bem no Brasileiro. Sente-se um pouco ídolo?
De maneira nenhuma, nem um pouco. Você fala de esperança, mas aí vai, você perde jogos, não consegue fazer as coisas e pronto, vai ser linchado como qualquer outro. Quando, em 1995, o Antônio Rodrigues (dirigente à época do Botafogo) me proporcionou a oportunidade, ali sim eu deveria estar preocupado. Porque fui motivo de chacota quando cheguei e ainda assim não tive nenhuma dificuldade. Quando comecei a trabalhar, escutei de jogador: "Pô, papo legal e tal, mas no futebol é difícil pessoas assim vingarem". Eu dizia que esse era meu desafio, se não for assim eu paro, saio. Nenhum título que eu possa ganhar vai me tirar essa ideia de que somos importantes, sim, na organização, nas coisas, mas protagonismo é de jogador e torcedor. O ponto é esse. Tomo as posições e não estou falando isso no melhor time do mundo. Estou falando em situação difícil, num time que todo mundo acha que vai lutar para não cair. Nenhum resultado positivo ou negativo vai mudar o que penso. Vou completar 38 anos envolvido no futebol. Passei por várias situações. Fui preparador, assistente, técnico de outras categorias, não caí de paraquedas em lugar nenhum. Não saí daqui para dirigir seleção. Dirigi clube e fui alçado a uma seleção. Então, se amanhã ou depois exercer outra função, estarei preparado.
É algo natural para você, se tornar um diretor, um dirigente?
Sim, amanhã posso vir a trabalhar em cargo diretivo e vai ser de maneira natural. Agora, não estabeleço: "Ah, aqui vai ser o meu deadline". As coisas vão acontecer com naturalidade. Por isso que vão se tornar sólidas. Não houve retrocesso. E não digo em relação a resultados e títulos, mas em coisas do que penso do futebol. Sou um cara que pensa o futebol, como muitos outros. Não é a coisa de entra no campo, trabalha mecanicamente, luta para ter bom resultado, quer ganhar e o outro que se dane. Tenho vergonha às vezes de acontecer alguma coisa no jogo, o resultado ser ruim e tentar tirar o foco do resultado. Não é a realidade, me sinto envergonhado. Se a realidade está tão clara, se a gente perdeu por isso, como vou mascarar? Sempre preservando os grupos com os quais eu trabalho, mas não posso fazer isso.
Você trabalhou em diferentes países, com culturas diferentes, culturas de futebol diferentes, também em diferentes clubes, de tamanhos diferentes. O que te proporcionou tudo isso, o que absorveu para utilizar em cada novo trabalho?
Um dos motivos pelos quais eu quis sair do Brasil era essa oportunidade. Acho importante isso. Quando se convive com realidades tão diferentes, você pode se aprofundar nelas. Uma coisa é você ler, outra é conviver. Para isso, você vai desenvolver sua tolerância. Muitas vezes os profissionais brasileiros não conseguem, sentem falta disso, daquilo. Sempre pensei em atingir objetivos nesses lugares. Prefiro dizer isso (objetivos) a dizer ganhar títulos. Fiz um trabalho na Ilha da Madeira que, para mim, foi mais difícil do que ganhar títulos. O Nacional, no meu primeiro ano de trabalho como treinador, nunca tinha estado na Primeira Divisão. Eles me convidaram para um projeto de dois anos. Subimos já no primeiro ano. No Marítimo, eles nunca tinham disputado uma competição europeia, nunca tinha chegado à final da Taça de Portugal. E conseguimos duas vezes seguidas chegar à competição europeia e fomos à final na Taça de Portugual. Isso é título, é objetivo conquistado. Um clube que não tem condições de ganhar títulos, mas tem objetivos a atingir. Quando ponho no meu currículo, ponho objetivos conquistados, não ponho títulos. Acho normal que as pessoas valorizem títulos. Mas dentro dessa situação, se conseguir em realidades diferentes atingir objetivos, me adaptar, é sinal de que estou preparado para me adequar a diferentes realidades. Isso tudo te traz muita segurança.
Falando em objetivos, quais são os seus no Vasco para este ano?
Posso dizer que estamos trabalhando quietinhos. O grupo está trabalhando muito bem, estamos criando um modelo de jogo muito claro. Os próprios jogadores no fim do treino falam isso. Mas uma coisa é treino, a outra é jogo, que é quando entra o emocional. Mas temos que ter um modelo de jogo bem claro, e acho que vamos conseguir isso rapidamente no Brasileiro. Se é suficiente para ganhar jogos, não posso dizer, porque o futebol não permite isso. Um clube como o Vasco sempre deve pensar em título. Mas pensar é uma coisa, como chegar é outra. Neste momento, se eu disser que vamos lutar por titulo, eu estou sendo um tremendo fanfarrão. Agora, a gente pode conseguir coisas, algumas coisas. No futebol nunca se sabe o que vai acontecer.
Como pretende alcançar esses objetivos no Vasco?
O importante é estar preparado. Preparado para ter estratégia. Temos que saber lidar com o cenário positivo e o negativo. Se o negativo chegar, temos que saber passar por ele com palavras e atitudes. Para isso, vamos nos preparar para os dois cenários. Vamos fazer um grupo bem competitivo. Isso de "ah, vou ser campeão"? É muito fácil dizer isso, qualquer profissional quer ganhar títulos. Ambição não se mede através de palavras, é pelas atitudes. Você não precisa dizer que é vitorioso, sua história mostra se você é ou não. Posso dizer que estou muito feliz aqui, muito feliz com os treinos, sempre sabendo de todas as dificuldades. Agora, para mim, é fácil falar em termos de jogador. Eu não falo no protagonismo de jogador? Então dependemos da qualidade do jogador. Não tem como pensar diferente disso. Quando você trabalha com grupo limitado, você vai até um ponto, mas para dar um salto de qualidade, só com jogador. Mas, para isso, para dar um salto, é preciso chegar até o limite. Porque também é cômodo o treinador dizer: "Ah, preciso de um 10, de um 8, de um 9", ficar esperando os caras chegarem e enquanto isso não faz nada. Preciso do jogador, mas estou trabalhando com tudo aqui e, quando chegarem, vão entrar na base já organizada.
No Carioca, os jogadores saíam das partidas e falavam que o time precisava de personalidade. Você mesmo, quando chegou e agora, fala em trazer jogadores com força mental. Essa é a principal fraqueza do Vasco hoje?
Quando cheguei, encontrei um astral muito baixo. Por isso estou dizendo, não somos coitadinhos nada. Eu me recuso terminantemente a aceitar isso. Estamos num clube vitorioso, que mesmo com todas as dificuldades é o Vasco da Gama. Falei para os jogadores, todos sabem disso. Foram eles que sofreram, jogadores, funcionários, até reuni todos para agradecer a boa vontade. Mas é o seguinte: o astral tem que estar lá em cima. E eu vou exigir coisas boas, lugares bons pra trabalhar, hotéis, campos para treinar. Coisa de clube do nível que é o Vasco.
Com a situação financeira, como tratar de reforços do nível do Vasco? Muito se falou em Helton, que seria uma referência técnica, de representatividade para a torcida...
Helton reúne qualidade, experiência e é um ídolo da torcida do Vasco. Neste momento, a vinda dele seria espetacular. Mas conheço bem como se trabalha em Portugal e como trabalha o Porto. O simples fato de isso ser colocado publicamente já complica tudo. Essas são situações que deverão ficar muito claras no Vasco. É a maneira como as coisas devem ser expostas publicamente: momento, lugar e as pessoas envolvidas. Tudo é estratégia. Privacidade é fundamental. Quando você faz as coisas, elas devem ser impactantes. Quando se começa a falar, falar, vulgariza. Aí, quando a coisa acontece, já nem dão valor. O Porto trabalha dessa maneira. Não se trata de mistério. É fechar a situação e, quando acertar, apresenta. Isso é bom para todo mundo. Essa é uma mensagem em termos gerais para o nosso futebol. Vamos trabalhar muito para isso, mas infelizmente existem pessoas que querem ser apenas simpáticas. Isso em todo o futebol, não só no Vasco. Eu tenho que respeitar o trabalho da imprensa, mas em alguns momentos não se pode abrir. Se não estiver definido, fica difícil. Contabiliza como derrota sem necessidade. Isso se chama estratégia, sou um pouco obsessivo com isso. É algo importante na vida profissional e pessoal.
Recentemente, o René Simões falou que você pediu o Conca, que está na China. Também foi falado em outro argentino, o Aimar. É possível pensar neles?
Falar nomes para mim, como técnico, é facil. Mas eu preciso trabalhar em parceria com o clube. Não posso falar algo que não é real só para mostrar às pessoas ou passar uma imagem. Não suporto isso. Aceitei trabalhar aqui dessa maneira e vamos trabalhar dentro dessa realidade. O que não vou admitir é iludir as pessoas, criar falsas expectativas. Vou ficar envergonhado se falar alguma coisa e não puder minimamente cumprir. Uma coisa são nomes sonantes. Outra coisa são grandes nomes que possam realmente vir. Jogadores de qualidade custam. Se tiver dentro das nossas possibilidades, vou ficar satisfeito se o clube puder trazer esse tipo de jogador.
O Vasco tem dívidas importantes com o Benfica por Eder Luis e Fellipe Bastos e também deve aos empresários do Tenorio. O que foi passado com relação a isso?
Não trabalho para mim, trabalho para o clube. Se eu trabalho para o clube, tenho que trabalhar em parceria com os outros departamentos. Vou chegar aqui e dizer que quero Fulano e Siclano. Vão dizer que o cara é exigente. É plausível? É esse tipo de coisa que não aceito no mundo do futebol. Por exemplo, se você tem uma equipe estruturada, pode buscar um jogador na Conchinchina, que ninguém conhece, traz ele na caladinha, deixa treinando. Na situação em que nós estamos hoje, se você traz um jogador da Conchinchina, ele vai chegar com a responsabilidade de resolver. Vai ser a grande contratação. Aí você perde, queima o jogador com uma facilidade grande. Tem que ter cuidado. Vou fazer isso não com palavras, mas com atitudes. Essa é uma mensagem clara para muitos empresários, que fazem o trabalho deles, mas se aproveitam da situação e ficam inventando. Aqui, ou vai ser dentro do perfil que a gente quer... Se não entrar, vou apostar na base, não tenho a menor dúvida disso. Não tem chance de trazermos jogadores com dúvidas. Pode ser que não dê certo, mas passou pelo crivo dos três envolvidos, o que na minha perspectiva cria uma situação boa.
Como você trabalha nesse processo de contratações?
Aí estou com o Paul Breitner (ex-jogador alemão). Técnico aqui tem que chegar e dizer: “Eu gostaria de”. E o clube, com as pessoas envolvidas, vê se consegue ou não. Não tem esse lance de "Eu quero e acabou". Para isso, você precisa ter ideias claras, segui-las e ter coragem para falar as coisas. Hoje não se tem grana, vai haver. Haverá contratações de nome e impacto. Poucas, talvez não no número que todos gostariam. Mas num número que esteja de acordo com a realidade financeira do clube, que nos permita fazer com que ajudem a equipe ser competitiva. A gente tem que ter ideias. Quando estivermos estruturados, poderemos trazer um jogador que não seja badalado e, quando todos olharem, ele já está engolindo, tomando conta. Não vamos queimar jogadores e nem a imagem do clube. Desculpa bater nisso de novo: quem está fora não pense que somos coitadinhos. Estamos passando por uma situação difícil, mas vamos passar com dignidade. Com seriedade. E vamos sair dela, com a luta de todos. Não fiquem os outros querendo empurrar jogadores, plantando notícias de que fulano vem para o Vasco. Enquanto eu não disser que é o jogador tal... a banda nao vai tocar dessa maneira.
Como é a participação do Ricardo Gomes nesse processo?
Nós conversamos bastante, temos muita convergência de ideias sobre o futebol. Estamos trabalhando em bastante harmonia. Divergências são saudáveis. Deve haver divergências, porque o contraponto é fundamental. Com isso, quem ganha é o Vasco. Vai vir um jogador não porque um gosta, mas porque chegamos à conclusão de que é o melhor para o clube.
O que chamou mais a atenção positivamente e negativamente no Vasco?
Positivamente, me impressionou a maneira como todos aqui, mesmo com atraso de salário, me receberam com um sorriso e sempre predispostos a fazer tudo o que foi pedido. Os jogadores estão se entregando ao máximo nos treinos. Fico muito feliz com isso e espero que se reflita nos jogos. A imagem que se pinta é que isso aqui estava muito pior. Quando tive a oportunidade, fiz questão de agradecer a todos dizendo que eram vitoriosos. O ponto negativo é pensar que um clube como o Vasco não teve condições de ter um lugar próprio para treinamentos. Só que isso não é um problema só do Vasco. Hoje o Vasco tem o orgulho de dizer que é o unico clube grande do Rio a ter um estádio. Porque no fundo é o seguinte: salário atrasado está acontecendo e tem que acabar, esse histórico tem que acabar. Mas o clube foi campeão em 2011, bateu recorde de permanência no G-4 e chegou à final da Taça Guanabara neste ano. Depois foi mal, por fatores que têm a ver com a situação financeira. O Gaúcho fez um excelente trabalho. Escuto as pessoas criticando o Vasco, que falta isso e aquilo. Mas espera aí: o Vasco é o único que tem estádio. E, se tem estádio, tem alguma coisa. Pode dizer: é meu, eu jogo aqui. É algo positivo. Tem que bater no peito e dizer isso com orgulho.
Fonte: GloboEsporte.com