A má fase - com a precoce eliminação de Flamengo e Vasco do Campeonato Carioca - deu vida a uma pergunta: afinal, o que leva ao estádio o torcedor de um clube em crise e já sem aspiração na competição? Paixão. Amor. O primeiro passo da relação de uma criança com seu clube de coração. Uns brincam e dizem que é loucura ou até mesmo falta de algo melhor para fazer. As respostas envolvem diversos sentimentos, muito mais de adoração do que de protesto, mesmo no momento adverso. Protagonistas do Clássico dos Milhões e agora atores de partidas esvaziadas de seus times, poucos vascaínos e rubro-negros se aventuraram para ver as vitórias de seus times - sobre Quissamã e Fluminense, respectivamente - no fim de semana. Mas todos com os seus motivos.
No sábado, menos de meia hora antes do início do jogo entre Vasco e Quissamã, marcado para as 16h, os arredores de São Januário davam o tom do afastamento da torcida. Bilheterias e entradas vazias, movimento baixo e o público de apenas 871 pagantes (2.393 presentes), com a minguada renda de R$ 16.300,00. Antes dessa partida, em 15 jogos, o Vasco arrecadou apenas R$ 254 mil com bilheterias no Carioca.
Entre os torcedores, pais, filhos e muitas crianças, de todas as idades. O tom de grande família não abriu brecha para protestos.
- Como é um jogo sem apelo, contra time pequeno, sem tumulto, decidi trazer minha mulher e filha pela primeira vez – afirmou Thiago, enquanto registrava a entrada de Gicelia e da pequena Safira, 1 ano e nove meses, em São Januário.
O Vasco não anda merecendo, mas isso é um vício, coisa de louco. Ou falta do que fazer, sei lá"
A ingenuidade infantil também permitiu ao pai usar uma artimanha:
- Como ela ainda não entende, uma vitória do Vasco, a comemoração do gol, qualquer coisa vai ser uma festa, parece que está tudo bem (risos).
Mesmo ainda longe de estar tudo bem no Vasco, o clima no jogo contra o Quissamã foi pacífico. A principal torcida organizada tinha exatos 15 integrantes de pé. O aquecimento da bateria começou sete minutos antes de a bola rolar. Três bandeiras tremulavam. Até que um torcedor da Força Jovem gastou a garganta para dar o seu recado:
- Não importa a situação, os jogadores, é a camisa do Vasco que está ali. Quem é Vasco tudo ou nada. Tudo! Então como é que é.
E emendou o grito de "Casaca". A rivalidade com o Flamengo não foi esquecida, com a música provocativa que chama os rubro-negros de “mulambada” e ironiza o fato de não ter estádio para jogar.
Entre os milhares de espaços vazios na arquibancada, casais de namorados conversavam animadamente, sem serem incomodados. O jogo, ao fundo, transformava-se em mero detalhe. Para registrar o momento, poses e mais poses de torcedores para fotografias, de costas para o campo, quando Vasco e Quissamã já atuavam.
De camisa do Vasco surrada, um senhor esticou as pernas, bocejou, deu um profundo trago no cigarro e fez fumaça com a fase do time.
- O Vasco não anda merecendo, mas isso é um vício, coisa de louco. Ou falta do que fazer, sei lá – disse Carlos Manoel, 65 anos.
William Correa teve a missão de acompanhar o Vasco facilitada. Ele mora numa rua ao lado de São Januário. E não soube recusar o pedido que ouviu em casa.
- Meu filho pediu para vir ao jogo. É bom, pois está tranquilo, dá até para deitar – brincou o pai de Yuri, 6 anos.
Apenas 15 minutos antes do início da partida, pai e filho, sentados numa enorme cruz de malta pintada na arquibancada, retratavam o vazio e a paixão. Vibraram com os gols de Dedé e Tenorio, e assistiram de pertinho ao Quissamã diminuir na cobrança de pênalti. No fim, a vitória por 3 a 1 serviu de alento.
Durante a partida, três meninos jogavam bola num campo de grama sintética bem ao lado de onde acontecia o jogo. E pareciam não estar nem aí.
- Sou Flamengo, quero é jogar bola – disse Hudson Pontes, 10 anos.
Ao fundo, o muro trazia a frase: “Enquanto houver um coração infantil, o Vasco será imortal”. Na tarde de sábado, foram muitos os corações infantis, uns que já batem no compasso do time, outros que aceleram mais por uma simples pelada.
Fla: rivalidade e torcida em massa do interior
Às 18h30m do domingo chuvoso, o Estádio Raulino de Oliveira foi palco do Fla-Flu, times sem casa desde a interdição do Engenhão. O público de apenas 4.810 torcedores pagantes (5.973 presentes) nem de longe lembrava o de áureas épocas do clássico. Ainda assim, sem nenhum tipo de protesto ou cobrança, os rubro-negros compareceram para apoiar o time.
Numa rápida pesquisa informal, foi possível perceber que a maioria era formada por torcedores de Volta Redonda e diversos municípios próximos, que não desperdiçam uma chance de acompanhar de perto os ídolos, independentemente das pretensões e do momento da equipe.
- É a paixão pelo clube que me fez vir. Amo o Flamengo, sendo campeão ou não – disse Lucia Dias, acompanhada do filho Cristiano Aleixo e da neta Nicole, que conseguiu uma brecha para entrar em campo de mãos dadas com o goleiro Felipe.
Cristiano exibia orgulhoso a tatuagem com o escudo do Flamengo na barriga, que anda com fome de títulos. O torcedor mora em Porto Real, perto de Resende.
Concentrada em maior número em um dos setores da arquibancada, a torcida do Flamengo começou a fazer barulho 20 minutos antes da partida e deu o tom da provocação, com gritos de “ão, ão, ão, Terceira Divisão”. Sem possibilidade de título, restou a rivalidade.
Os tricolores responderam, separando as sílabas:
- E-li-mi-na-do, e-li-mi-na-do.
Aos 74 anos, Ivan Pereira, pegou um ônibus e viajou sozinho cerca de 70 quilômetros. Vestiu a camisa 10 do Flamengo, e levou para o estádio a esperança de dias melhores e a garantia de estar com a cabeça boa por baixo dos fios brancos de cabelo.
- Estar nesse jogo, mesmo com o Flamengo mal, não é coisa de maluco, não. Está meio ruim, vamos ver se melhora – disse Ivan.
É a paixão pelo clube que me fez vir. Amo o Flamengo, sendo campeão ou não"
Antes de a bola rolar, uma das organizadas fez o aquecimento da bateria com um pagode improvisado, com a sugestiva música Tendência, de Jorge Aragão. Alguns versos poderiam ser um recado da torcida para o time:
- Quem sabe essa mágoa passando/Você venha a se redimir/Dos erros que tanto insistiu por prazer/Pra vingar-se de mim/Diz que é carente de amor/Então você tem que mudar/Se precisar, pode me procurar.
Muitas crianças com camisas do Flamengo garantiram a venda da pipoca, a R$ 3,50 o copão. E fizeram a festa ainda no primeiro tempo, com os gols de Hernane e Renato, de pênalti. Logo no início da etapa final, mais comemoração com novo gol de Renato.
Foi a senha para a torcida cantar, vibrar e seguir com as provocações aos tricolores, com direito a gritos de "olé" no fim. Mesmo fora da briga pelo título, o torcedor rubro-negro teve, enfim, um domingo de felicidade, ainda que momentânea. Protestos, ainda que tímidos, só apareceram direcionados ao técnico Jorginho no momento da substituição de Hernane por Cleber Santana.
O time volta a campo quarta-feira para enfrentar o Remo, pela Copa do Brasil, na luta para avançar à segunda fase. O palco será o mesmo Raulino de Oliveira. Dessa vez, mais do que provocar, será preciso torcer por dias melhores.