Quem olha para Gaúcho, treinador do Vasco, costuma associar logo, pelo trato carinhoso, os gestos compreensivos e a atenção com todos, a figura de um paizão. A imagem não está longe da verdade. Porém, por trás deste homem gentil, há uma história dura e intensa ligada ao movimento operário. Quando tinha 11 anos, em 1964, seu pai, Augusto Losada, foi preso político por fazer parte de um grupo sindicalista chamado União Operária. Além dele, dois tios de Gaúcho, Antônio e José, participaram ativamente de organizações clandestinas de resistência armada e eram companheiros de luta da então militante Dilma Rousseff.
A política é uma tradição da família Losada, herdada dos ancestrais espanhóis, que os descendentes gaúchos carregam com muito orgulho. Gaúcho sorri quando o tio Antônio fala: “Somos uma família de proletários que gostam de futebol. Temos história no Sul.” Com todos presos e ocupados com a tentativa de mudar o rumo do país, sobrou para Gaúcho. Ainda com 14 anos, enquanto jogava na base do Grêmio e buscava o seu sonho de ser um atleta profissional, ele teve de trabalhar como tecelão. Hoje, lembra-se com muito orgulho daqueles dias.
— Trabalhei na malharia Terres, de carteira assinada e tudo, como tecelão, por dois anos, e, ao mesmo tempo, jogava bola no Grêmio. De tecido, entendo, hein! — diz, com carinho, o treinador do Vasco, que fará 60 anos no dia 3 de março.
Ao lado do tio Antônio, Gaúcho, nascido Carlos Roberto Orrigo da Cunha, lembra, sem muita saudade, um tempo em que as coisas eram muito mais complicadas. Fundamentalmente, na hora em que um queria visitar o outro. Tudo tinha de ser feito com cuidado. Para ir a Porto Alegre visitá-los no presídio ou quando um dos parentes, que estava clandestino, vinha visitá-lo, disfarçado, no Rio, era quase uma operação de guerra, dava um certo receio.
— Eu já estava sozinho no Rio, jogando no Vasco, mas sabia do drama de minha família. Algumas vezes, conseguia visitá-los no presídio. Não era fácil na época, e muito menos passar despercebido sendo um jogador de futebol de um clube grande. Em outros momentos, ficava preocupado com as notícias que chegavam. Da mesma maneira, quando recebia algum parente que estava vivendo na clandestinidade, vindo disfarçado ao Rio — lembra o treinador.
Da política para o futebol
Na família, a função principal de Gaúcho era se preocupar com o futebol e assegurar o sustento dos parentes, o que conseguia jogando pelo Vasco. Enquanto no Rio Grande do Sul parte da família Losada se dedicava à política.
O grupo revolucionário de que eles participavam estava entre os vários que acabaram se unindo e formando a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Quem toma a palavra e conta é o tio Antônio, que era muito amigo de quem, anos depois, viria a ser o segundo marido de Dilma. Carlos Araújo, além de pai de Paula, filha da presidente, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul, junto com Antônio.
— A Dilma veio de Minas Gerais para dar apoio. A função dela era fazer a ligação entre o grupo e os universitários, além de ajudar na fundação do grupo VAR-Palmares. Éramos todos amigos lutando pelo mesmo ideal. O Carlos até foi solto antes de mim, mas é meu amigo até hoje — conta Antônio, que foi um dos últimos presos políticos, junto com seu irmão José, a ser solto no Rio Grande do Sul, em 1979.
Ao ouvir, mais uma vez, o depoimento do tio, Gaúcho aproveita para fazer uma brincadeira.
— Acho que escolhi certo: o futebol — brinca Gaúcho, que, apesar de ter sido jogador e técnico esse tempo todo, não fugiu tanto da política. Ele chegou a ser presidente do Sindicato dos Jogadores de Futebol do Rio por dois anos, sucedendo a Paulo César Martins, ex-lateral de Botafogo, Vasco, Bangu e América.
Nem só de política é composto o DNA de Gaúcho. O futebol também vem de berço. Augusto, seu pai, foi jogador do Internacional e acabou inspirando a carreira do filho. Apesar de toda a ligação com o clube colorado, porém, o técnico do Vasco foi jogar no arquirrival, o Grêmio.
— Em 1963, fui jogar no Grêmio. Cheguei lá depois de fazer dois gols numa partida em que defendia o time do meu bairro, o Madureira, contra o próprio Grêmio. Fiquei no tricolor gaúcho por dois anos e depois voltei, em 1983, já como profissional— conta Gaúcho.
Sua chegada ao Vasco aconteceu em 1966. Com a ajuda de um amigo do pai desde a época de Internacional, Tesourinha, antigo ponta-direita que fez sucesso no Expresso da Vitória do Vasco (1949/1952), Gaúcho chegou ao clube carioca com apenas 14 anos. E assim começava um amor duradouro. Só como jogador, defendeu o Vasco por 12 anos. Saiu, foi para o mundo árabe, treinou outros clubes e voltou para escrever um novo capítulo da carreira.
Como jogador, sua história no Vasco tem direito aos títulos de campeão brasileiro de 1974 e Carioca de 1977. No começo, era só um volante, mas Gaúcho chegou a jogar em quase todas as posições, por ser versátil. Da sua memória não sai o período em que conviveu com Tostão e acompanhou o drama do jogador, que enfrentou problemas de visão. Em alguns momentos, vestiu a camisa 10 do então craque vascaíno.
— Eu era uma espécie de curinga. Durante os anos de 1972/73, cheguei a jogar com a camisa que era do Tostão. Isso é uma coisa inesquecível. Mas, na verdade, acho que atuei em todas as posições. Isso foi bom para o meu futuro como técnico — afirma Gaúcho, explicando que a visão de todo o campo permite um entendimento melhor do jogo.
Motivação para vencer o medo
Toda essa experiência será usada no Vasco hoje, quando Gaúcho escalar a equipe que enfrentará o Audax, às 16h, em São Januário. O time não pode pensar em outro resultado que não seja a vitória a fim de continuar sonhando com a classificação para a fase semifinal da Taça Guanabara.
Com o intuito de motivar seus jogadores, o técnico vascaíno vai, mais uma vez, se basear na experiência de vida do tio Antônio quando, finalmente, pôde visitá-lo sem disfarce já desfrutando plena liberdade.
— A lição que aprendi com toda essa história, e que procuro passar para o time, é que você aprende a ser destemido. O que eu sempre falo para eles: não deixe nunca o medo o paralisar. Existe coisa muito maior que isso. Esses meninos têm tudo na mão para ir em frente e, às vezes, ficam paralisados pelo medo. Não pode! Tem que arriscar, porque, perto do que foi, a vida está muito fácil — conclui o treinador.
Fonte: O Globo