As palavras ainda fogem, vez ou outra. Mas com o tom grave e a firmeza de sempre, Ricardo Gomes garante: estará de volta ao futebol no início de 2013. Quase totalmente recuperado do Acidente Vascular Cerebral (AVC) sofrido em agosto do ano passado, durante a partida entre Vasco e Flamengo, no Engenhão, o técnico trata este tempo de um ano e três meses longe dos campos como apenas uma pausa.— Isso (futebol) é a minha vida, foi só uma interrupção — diz Ricardo.
Se será no Vasco, ele pensa antes de responder. Procura pela palavra certa, que não entregue a volta ao clube que lhe deu apoio na sua recuperação e tem total prioridade. Ele desconversa até que tudo fique acertado na reunião marcada a princípio para hoje com a diretoria.
— A história toda voltou com a saída do Marcelo (Oliveira, técnico que pediu demissão esta semana). Antes eu tinha contato quase que diário com o Cristóvão. Falei com Roberto semana passada. Falamos sobre meu retorno em 2013, não necessariamente no Vasco. Mas depois da demissão, isso mudou. Há boa intenção dos dois lados. Acho que vamos encontrar uma solução — despistou ele, que recusa o título de salvador do clube. — Eu fui salvo, não tenho condições de salvar ninguém (risos). Ainda mais o Vasco, que é muito maior que o momento atual.
Tanta certeza do seu retorno veio há um ano. O resultado do exame de ressonância magnética no final de novembro mostrou que estava tudo certo e veio o alívio: ele poderia voltar a ser o mesmo, segundo a ciência.
— Eu corri risco de vida e só acordei dois ou três dias depois. Não fazia ideia da gravidade, do que estava acontecendo. Depois, só pensava na recuperação. Já acordava fazendo fisioterapia e não tinha indícios de que viria dar certo. Foram dois meses sem sair de casa, de fono e fisioterapia. Mas depois do resultado eu sabia que poderia voltar a fazer tudo de antes — conta.
Não sem muito trabalho e esforço. E dedicação. Dele, da equipe médica, dos fisioterapeutas e da família. Foram meses totalmente voltados para as necessidades de Ricardo. Os filhos abriram mão de suas vidas por um tempo. Ana Carolina trancou a faculdade de Engenharia. Diego, advogado, ficou trabalhando de casa e foi o responsável pela comissão médica formada para tratar do pai. A mulher Cláudia, sempre ao seu lado, desde a adolescência.
— Ele sempre vinha com a sugestão de um nome ou outro de um médico especialista. Foi muito maduro, cuidou de todo mundo. Mas hoje eles já viajam, saem. Está tudo normal — diz ele, que garante ter tido sempre o apoio da família para retornar ao trabalho.
As marcas do grave AVC, ainda presentes, estão a cada dia mais raras. Eternas só as cicatrizes na cabeça para a operação do cérebro. De um ano para cá, as sequelas foram diminuindo no ritmo das sessões de fono e fisioterapia. Para quem teve de reaprender o português, chegou a misturar com o francês nos primeiros meses e não reconhecia a própria voz, as palavras que faltam não dificultam o entendimento.
— Agora, preciso reaprender o francês — brinca Ricardo.
O lado direito ainda sofre com a falta de sensibilidade, apesar da recuperação motora. O andar é um pouco mais pesado. Porém, a cadeira de rodas usada no início para locomoção já deu lugar ao carro há algum tempo.
— Estou seis meses atrasado. Os médicos me disseram em junho ou julho: pode ir trabalhar. Mas preferi me preparar mais, ter o menos de dificuldade possível — afirma ele, que ainda faz fono uma vez por semana e se mantém ativo com fisioterapia, academia e corridas na praia. — Daqui a cinco anos, isso tudo vai ser passado e vou ter recuperado tudo.
Nada que impeça um dia a dia normal. Até os prazeres, como almoçar ou jantar fora, foram mantidos. Um bom vinho e até uma cerveja, de vez em quando, na hora do almoço.
— A cerveja foi uma das primeiras coisas liberadas... Mas nunca bebi muito antes do AVC e continuo assim. Tenho algumas restrições, como evitar o sal. De resto, é uma dieta balanceada como todos devem ter — explica.
Cuidados com a saúde
As exceções fazem parte da vida. E Ricardo não abre mão da boa culinária, com moderação. Entre uma e outra garfada no risoto de legumes, ele respondia ao carinho de quem o reconhecia.
O susto de quem viu a cena pela TV hoje virou admiração pela pessoa. Ricardo afirma que nunca se sentiu tão querido como agora. Ejá se acostumou a sair e ser parado em qualquer lugar.
— Nem sei se mereço tanto carinho. Mas acho que foi muito marcante, o jogo estava passando ao vivo na Globo. Se tivesse sido em casa, acho que não seria assim. Agradeço muito esse carinho. Nunca tive nada perto disso quando era jogador — declara.
Preparado para o retorno ao futebol, e toda a pressão envolvida, Ricardo não teme pela sua saúde. Não quer tratamento diferente nem olhares piedosos:
— Pode ser que isso aconteça no início, depende de como cada um viveu esse momento. Mas vai ser trabalhado.
Quando questionam se foi o estresse do clássico com o Flamengo o responsável pelo AVC, ele relativiza:
— Poderia estar tranquilo em casa e ter um AVC. Mas não teria tido o atendimento rápido, que foi fundamental para a minha recuperação. Tive muita sorte.
Com a humildade de quem aprendeu a dar valor a cada detalhe, Ricardo reconhece a negligência com a saúde e, por isso, pagou um preço alto. Desde as idas com pouca frequência ao médico à falta de exercícios, apesar da insistência do amigo e ex-preparador físico do Vasco Rodrigo Poletto.
— Falaram que eu deixei de tomar remédios para hipertensão. Eu não deixei porque nem sabia que tinha que tomar. Eu tinha que fazer alguns exames de coração, mas não fiz todos e não voltei ao médico. Se tivesse feito, detectado a hipertensão e tomado as medicações, o AVC poderia ter sido menos grave — admite Ricardo, que já havia sofrido no São Paulo um problema na mesma região mas com menor intensidade.
Agora, sem preguiça, remédios prescritos tomados na hora certa e exercícios diários. Aos 47 anos, ele segue as regras para chegar pelo menos aos 85 da mãe:
— O que não aprendi quando tive um problema sério no joelho, aprendi agora.
Neste tempo longe do futebol, adquiriu gosto por outras áreas. Para entender o que lhe aconteceu e até para ajudar os médicos, a leitura de artigos científicos virou mania. Porém, crê que não dá tempo de voltar atrás e fica mesmo com as quatro linhas como profissão.
Ainda não sabe como será o reencontro com jogadores, pré-temporada e beira de campo. Também não descarta um cargo menos participativo como exige o de técnico, apesar de ver essa possibilidade só para o futuro. Porém, Ricardo se diz pronto para encarar tudo de novo. Gostaria de poder contar com o amigo Cristóvão Borges, mas reconhece que seria injusto pedir isso a ele. Sem querer dar lições de vida, ele só quer trabalhar novamente:
— Estou tentando voltar como era antes e já está muito bom.
Fonte: Globo Online