Cinco mil fragmentos de uma imagem precisam ser encaixados para que se forme um quadro de Leonardo da Vinci. A tarefa pode não ser tão espinhosa como bater de frente com a Globo e a CBF, mas Eurico Ângelo de Oliveira Miranda já deixou o seu apê na Barra da Tijuca em direção a Angra dos Reis para solucionar esse enigma. É lá, em sua mansão, onde ficam esse e tantos outros quebra-cabeças para serem montados – hobby favorito do ex-presidente do Vasco da Gama. A bordo se sua potente Chrysler 300C, aos 68 anos, ele parte para o refúgio toda sexta de noite. Sem motorista ou seguranças por perto, o controverso Eurico está sozinho. Um personagem odiado por muitos, admirado por outros, que tem agora a sua trajetória dissecada no livro “Todos contra ele”. Uma biografia escrita pelo jornalista Sérgio Frias, que sai em novembro pela MPM Neto Editora.
Eurico está mais light. Trocou o charuto pela pipoca. Pelo menos foi comendo um saquinho desses vendidos na esquina que adentrou o seu escritório no Centro da cidade, para a entrevista. Durante 30 anos queimou quatro maços de cigarro por dia. Parou por sete anos e começou a fumar charuto na comemoração de um título do Vasco. “Eu chegava em casa vindo do escritório dele e a minha mulher dizia: ‘Esteve no Eurico hoje, né?’”, lembra Frias.
Para viver por mais algum tempo, entretanto, era necessário deixar o charuto de lado, segundo o seu cardiologista. Eurico comprou a ideia. Mas, se deixou para trás as baforadas, a boca continua nervosa, como deu para perceber na sala de espera, enquanto aguardávamos a sua chegada. “Mandar parar de comer os docinhos e caminhar? Vocês estão malucas. Ele morre. Só anda do carro para o elevador e olhe lá”, comentava o filho Euriquinho, no papo com as secretárias. “O cara do ar-condicionado sumiu com a grana e não voltou mais, seu pai vai me matar”, dizia uma delas. “Xii, aqui no exame a transaminase pirúvica dele está alta. O que será isso?”, perguntava Euriquinho.
Talhado para ser o sucessor do pai, na época de Eurico no Vasco, o filho desconversa quando o assunto é o cobiçado posto. “Hoje não é o meu foco”, diz o membro mais novo do conselho presidido por Eurico atualmente: o de beneméritos do clube vascaíno.
“Escritório do presidente Eurico Miranda. Sim, ele já está chegando”, responde a secretária ao décimo telefonema. Em seguida, a campainha toca umas sete vezes. Com pinta de Marlon Brando em “O poderoso chefão III”, Eurico finalmente está na área. Fisionomia séria de sempre, barba por fazer, gravata aberta, barriga enorme saliente, ele se senta à sua mesa e pede para a equipe da Folha entrar. Após um “Quem é você?”, dispara: “Mas o que você quer de mim, meu filho?”.
“A Globo fez uma sacanagem comigo”
Dirigente relembra episódio que o inspirou a homenagear o SBT, ri ao falar de Roberto Dinamite e vive uma nova rotina de fotos e autógrafos
Amalgamada com a história do Vasco da Gama, a trajetória de Eurico Miranda no clube possui uma coleção de processos – apropriação indébita de bens, desvio de dinheiro, agressões –, inimigos, glórias (três títulos brasileiros, sete estaduais, uma Libertadores, uma Mercosul, um Rio-São Paulo) e fracassos. “Era preciso contar a história verdadeira de Eurico ao público”, diz o autor de sua biografia. “É o seu verdadeiro perfil. E não o traçado por quem pouco – ou nada – o conhece, limitando-se apenas a repetir discursos midiáticos reverberados por mais de duas décadas, imprecisos e, por vezes, motivados por descontentamento de setores que tiveram que enfrentar Eurico, sem sucesso, nos embates”, explica Sérgio Frias.
A Rede Globo que o diga. Na final do Campeonato Brasileiro de 2001, entre Vasco e São Caetano, no Maracanã, a emissora teve que transmitir o jogo com o logotipo do SBT estampado na camisa dos jogadores vascaínos. Raramente, durante a cobertura da partida, havia close nos atletas. Por vezes, até o áudio da arquibancada era cortado, quando a torcida cantava “Silvio Santos vem aí”.
“Não há dinheiro que pague ter visto o Galvão Bueno gaguejando na entrada do time”, recorda Eurico. “Aquilo ali foi uma resposta. A Globo fez uma grande sacanagem comigo e com o Vasco”, comenta sobre o segundo jogo da final, que foi interrompido quando o alambrado desmoronou em São Januário. “Disseram que eu tinha sido sanguinário e expulsado os feridos de campo, quando a minha primeira preocupação era justamente socorrer os feridos. Quiseram passar uma imagem distorcida de tudo. Aí veio aquela inspiração. Dois dias antes do jogo, mandei bordar o logotipo nas camisas”, recorda. A ação gerou um telefonema de agradecimento para ele do dono do SBT. “O Silvio Santos disse que, em um único jogo, eu consegui promover mais o SBT do que qualquer outra estratégia nos últimos 30 anos. Eu rebati que tinha aprendido com ele”.
Nem na época de glórias conseguia se livras das polêmicas. Certa vez, foi assaltado chegando em casa com parte da renda do clássico contra o Fluminense no seu carro. “Naquela época era normal os clubes levarem a parte que lhes cabia”, defende-se. “Nesse dia o tesoureiro não foi e eu levei. Eram R$ 27 mil. Mas falam muita bobagem até hoje. Que eu roubei a renda. Eu lá vou roubar R$ 27 mil. Os bandidos mandaram tiro de AR 15 no chão, quando eu disse que não daria. A marca está lá até hoje”, recorda.
"Não me arrependo de nada do que fiz. Mas não façam nada igual"
Fiel a suas convicções, Eurico diz que viveria a vida sem alterar uma linha. Mas aos alunos de uma faculdade para a qual foi chamado à ministrar uma aula de direito esportivo, ele deu outros conselhos. “Disse a eles: ‘Não me arrependo de nada do que fiz. Mas não façam nada igual’. Se o cara quiser subir, crescer, tem que ser maleável, saber contornar situações. E eu sempre fui contra o sistema. Bati de frente”.
Líder da torcida Guerreiros do Almirante, Davidson de Mattos não perdoa o ex-presidente. “Ele destruiu a imagem do Vasco. Mais do que deixar o time falido economicamente, faliu o clube moralmente. Estragou uma imagem construída com base na igualdade e na democracia com a sua ditadura”, diz Davidson, cuja opinião encontra eco em grande parte da torcida vascaína.
“Todos possuem grandes dívidas, há décadas. Como não se pode dizer que todos os dirigentes de todos os clubes do Rio dilaceraram financeiramente seus clubes, escolhe-se um para representar esse papel”, analisa o autor da biografia.
“Fui candidato só para mostrar que eu era ficha limpa”, argumenta Eurico, “Contam muitas histórias a meu respeito, mas eu enfrentei uma CPI, me sacudiram para lá e para cá e nunca provaram nada contra mim”, esclarece.
Tumor na bexiga
Para falar da administração vascaína atual, é uma das poucas vezes que ele sorri. Ainda que debochando. “Não pode dar certo porque o Roberto não tem capacidade para decidir. O Vasco está se transformando num clube secundário. Recebe menos, não tem opinião. No meu tempo, eu deixava bem claro: o Vasco é a locomotiva, não é vagão. O Vasco puxa, não é puxado. Mas o Vasco passou a ser o vagão E vagão lá detrás”, avalia.
Recupeado há quatro anos de um tumor de alta malignidade na bexiga, Eurico contou com a sorte. “Fiz uma cirurgia e de três em três meses eu deveria fazer uma avaliação para ver a evolução. Mas não tinha tempo. Só fui verificar um ano depois que estava curado”.
Religioso, trocou a missa que frequentava nas Laranjeiras, onde morava, pela da Paróquia de São Francisco de Paula, no Jardim Oceânico. Deixou a Zona Sul (onde cresceu, estudou e brigou muito com os colegas que sacaneavam a camisa do seu clube) só para ficar mais perto dos seus sete netos. Com as crianças é carinhoso, permissivo e assume o papel de avô farrista se esparramando com eles pelo seu condomínio, o Le Park.
A lavagem cerebral da turma, começa pelas babás. “A primeira pergunta que faço é para saber se elas são vascaínas”, revela. Foi assim também com os seus quatro filhos Mário (hoje, com 38 anos), Álvaro (33), Eurico (35) e Sílvia (32).
Vilão ou herói? Mocinho ou bandido? Independentemente da opinião de cada um, Eurico vai ganhando status de personagem cult. É parado em cada esquina para tirar fotos e dar autógrafos. No Facebook ou no Twitter não é raro de ver pessoas comentando que esbarraram com ele no trânsito, onde é a alegria dos malabaristas e vendedores no sinal. “Cuidado com o meu Flamengo, hein”, diz um. “Vascooo”, berra o outro.
Se voltaria a ser presidente? “As pessoas me pedem isso nas ruas, mas eu já me doei demais”, diz Eurico, deixando bem claro que a bola é dele. E ele só vai descer para brincar de novo se jogar, apitar e ainda montar a tabela. Como nos velhos tempos...