Muito antes do Divino de “Avenida Brasil”, em preto e laranja, conquistar os brasileiros, um Divino carioca, em preto e branco, já havia feito isso até na Argentina e no Uruguai. Nascido mulato no Rio de Janeiro de 1912, em 19 de novembro, Domingos da Guia virou ícone em uma época de profunda separação entre cores e raças no futebol. Conseguiu até o impossível: a admiração de fãs de Vasco e Flamengo, onde jogou por sete anos, entre 1936 e 1943.
Zagueiro que se orgulhava de “jamais apelar ao chutão”, Domingos da Guia começou no futebol no Bangu, onde o irmão Ladislau, o primeiro da dinastia dos “Guia”, reinava. Talentoso, aos 20 anos se mudou para o Vasco, clube que divide com o de Moça Bonita o status de pioneiro na integração entre brancos e negros no país. E, logo depois, se mudou para o uruguaio Nacional.
Ao chegar a Montevidéu, Domingos provocou uma revolução. Tudo porque dividia a posição com ninguém menos que o capitão da Celeste campeã em 1930, José Nasazzi; e, intocável, fez com que o clube atuasse com uma formação incomum: dois beques pelo lado direito.
— Dois homens sensacionais para uma mesma posição, e nenhum deles poderia ficar fora da equipe — recorda o uruguaio Marcelino Pérez, companheiro de Domingos no Nacional.
O brasileiro só atuou no Nacional em 1933. O suficiente para que ganhasse o apelido de “El Divino Mestre” da imprensa — alcunha que marcaria a família da Guia para sempre. Depois, voltou ao Vasco e, em 1935, passou um breve período no Boca Juniors, antes de fechar com o Flamengo. Pela seleção, jogou a Copa de 1938 — um drama na carreira do ídolo, autor do pênalti sobre o atacante Silvio Piola, nas semifinais. O Brasil acabou eliminado pelos italianos, ainda regidos pela ditadura fascista de Mussolini.
Aposentou-se em 1949, no Bangu, após jogar no Corinthians. E manteve um legado inesquecível com o filho, Ademir da Guia, maior ídolo da história do Palmeiras.
— Não vi meu pai como jogador, mas fui criado ouvindo as pessoas falarem dele. Ele não precisava falar do passado. Os outros que diziam: foi o maior zagueiro da história do Brasil — conta Ademir, o Divino alviverde.
O AUDITOR FISCAL E MORADOR DO MÉIER
Depois de se aposentar do futebol, Domingos Antônio da Guia virou servidor público, em 1959. Por 23 anos, atuou como auditor fiscal do estado do Rio de Janeiro, até se aposentar, aos 70 anos, em 1982. Começou em Bangu, onde nasceu, e passou por vários cargos da secretaria de Fazenda do Rio — e do então estado da Guanabara. Trabalhou, inclusive, na famosa promoção “Seu Talão Vale um Milhão”, sorteio milionário da época.
Morador do Méier, a partir de 1974 se mudou para uma repartição do bairro, e em 1975, na fusão do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, virou companheiro de outro ídolo do futebol: Zizinho, embora ambos raramente dividissem o mesmo escritório, na Zona Norte.
— Não havia como andar com o Domingos pelo Méier. Lembro que, uma vez estava fazendo cobranças, e parávamos de cinco em cinco minutos. “Mestre!”, “Mestre!”, as pessoas gritavam — lembra o auditor fiscal Mauro Oberg. — Um sujeito alto, educado, fino. Não havia como não respeitar o Domingos da Guia.
Nascido e criado em Bangu, o Divino Mestre viveu no Méier — na Rua Dias da Cruz — até o falecimento, em 18 de maio de 2000, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC), aos 87 anos de idade. Além de Ademir da Guia, Domingos teve outros três filhos.