Minutos antes do intervalo, com o time na frente em partida de grande público no Maracanã, o goleiro Valdir tem a bola entre os braços, a visão dos companheiros pelo gramado e busca o lançamento para tentar ampliar o 1 a 0 contra o Bangu, em 1969. Ao fazer o movimento, escorrega, a bola não desgruda das mãos e vai parar dentro do próprio gol. O placar do jogo terminou em 1 a 1, mas não a carreira do hoje supervisor de vendas de uma multinacional em Brusque (SC). Na experiência dos seus 66 anos, Valdir Appel passa força para o também goleiro Michel Alves, que protagonizou lance parecido no gol contra histórico em Criciúma 0 x 4 América-MG, no sábado.
No entanto, um dos primeiros arqueiros na lista de gols inusitados acha que o camisa um do time catarinense não vai escapar do gol contra — o terceiro dos americanos — até o fim de sua vida. Assim como ele.
— Gosto dele como goleiro, mesmo que não o conheça pessoalmente. Acredito que vai superar bem porque tem personalidade. Isso é um dos motivos que me faz gostar dele.
Autor dos livros Na Boca do Gol (2006) e Goleiro Acorrentado (2010), Appel espera que Michel Alves continue na carreira de cabeça erguida. Assim como fez até 1982. Quando deixou o futebol depois de defender o Rio Verde, hoje na primeira divisão de Goiás.
O goleiro do Criciúma vai ficar marcado pela falha assim como o senhor ficou?
Vai porque tem algo que não tive. Sempre comentei que o mais me deixou marcado foi a ausência de vídeo, porque se houvesse imagem naquela época ficaria marcado, mas com um detalhe que me beneficiaria. Sempre serei mais lembrado pelo imaginário do que pelo fato. Fiz o gol no primeiro tempo no Maracanã, com 50 mil pessoas, em um clássico. Joguei o segundo tempo para mostrar que não estava abalado pela falha. E continuei jogando normalmente, sem que aquilo influenciasse na carreira.
O Michel Alves é um grande goleiro e que está numa boa fase, como eu estava na época. A própria torcida do Criciúma o aplaudiu naquela hora e acho que ele não vai deixar se abalar. É inevitável que fique marcado para sempre porque todo o goleiro fica registrado no futebol por fato inusitado. Não verdade não é só goleiro, mas qualquer jogador. O Zico, por exemplo, porque perdeu o pênalti na Copa do Mundo de 86. O Barbosa, pelo gol que sofreu na final da Copa de 50, pagou o resto da vida pela falha. O inusitado marca para sempre. No meu primeiro livro (Na Boca do Gol, de 2006) descrevo como sobrevivi. Tem uma frase do próprio Barbosa que diz “O importante do frango é sobreviver a ele”. O Michel é um goleiro centrado e inteligente, porém a marca será inevitável.
Acha que os gols contra foram azar?
Se você recapitular, no caso dele foi precipitação. O time estava perdendo, ele quis repor rapidamente e ocorreu a falha. O movimento ocorreu na precipitação, a bola escapuliu. O azar está presente em todos os lances. Se analisar o gol em si, a rapidez dele é o que ocasiona o lance. O meu foi diferente. Tinha todo posicionamento dos jogadores da equipe e a bola na minha mão. Na hora eu escorreguei. Acontece, né? Quando jogador escorrega no meio de campo não acontece nada. Com goleiro é diferente. Será que o Rogério Ceni (do São Paulo) será marcado pela falha que teve há três semanas? Ele jogou a bola para trás, socou mal mesmo. Pegou mal no punho. É um erro que goleiro está arriscado a cometer.
O que passou pela sua cabeça depois do lance em 1969?
No intervalo e com o jogo empatado, tinha que voltar para encarar um Maracanã com um público enorme e mostrar tranquilidade e segurança. Se eu estivesse intranquilo, estaria perdido e não teria continuado no futebol. Aquela falha custaria a carreira. Tive que mostrar tranquilidade, mesmo por dentro estivesse sofrendo terrivelmente. Mas não poderia passar para torcida. Respondo isso há 43 anos.
Você acredita que este é o mesmo sentimento de Michel Alves?
Ele vai ter um lado diferente do meu. O jogo já estava perdido quando ocorreu o lance. A vitória ali (do América-MG) já era irremediável, iria acontecer de qualquer forma. Ele vai ter outra partida para mostrar personalidade, assim como eu tive. Ele é um goleiro maduro e o gol foi resultado do andamento da partida. Ele quis repor rápido porque o time estava perdendo. No próximo jogo ele vai mostrar que está tranquilo, tenho certeza. Porém, vai ser mais um marcado na história. Sempre digo que o inusitado é o que marca. O (Gordon) Banks ficou na Copa de 70 (pela defesa de uma cabeçada de Pelé), o Zico pelo pênalti perdido na Copa do Mundo e o Manga (em 1965) que chutou a bola na cabeça de um jogador e a bola entrou (quando defendia a seleção brasileira num amistoso no Maracanã contra a União Soviética). Tem vários e vários lances para serem lembrados.
Qual o conselho que você daria para o goleiro do Criciúma?
Seguir normalmente, numa boa e manter a tranquilidade. Precisa levar isso como inusitado, saber que não é comum e ter que conviver com isso. Não pode perder a paciência. Ele vai ter que ter paciência com o torcedor e nas entrevistas. Infelizmente, vai responder pelo resto da vida dele sobre esse lance. Mas não pode fazer com que seja o fim de sua carreira. Pelo contrário, pode ser significativa para que seja um melhor goleiro e mais tranquilo. O caminho é esse. Gostaria de dizer isso para ele.
Hoje as pessoas ainda puxam conversa com você para falar daquele lance?
Respondo a mesma pergunta todos os dias da minha vida. Foi o único gol que fiz contra na minha carreira. Na internet tem um, do futebol amador, de um cara chamado Jaílson. O dele é igual ao meu. Depois de um tempo, comecei a levar mais na gozação e na brincadeira. Uma vez disse a um repórter que o Pelé fez mil gols para ficar famoso e eu só fiz um. Depois que eu passei a encarar como piada, relaxei mais. Esta frase em que cito o Pelé é a que mais uso para evitar a repetição da mesma história.
O primeiro livro que você escreveu trata daquele lance. Acredita que foi uma boa forma de lidar com aquele episódio?
Acho que o livro em si reflete minha carreira toda. Mas perdi muita coisa por causa do gol contra. Perdi várias oportunidades. Estava no melhor ano da minha carreira e podia ser convocado para a seleção brasileira. Atrapalhou, porém não fez minha carreira ser encurtada. Terminei quando hora de parar. Deixei o futebol com 36 anos, em tempo de dificuldades e de um futebol mal pago. Joguei ainda por grandes clubes depois daquilo. Se fosse só simplesmente pelo meu gol, não teria jogado em clubes como Sport, Volta Redonda e América-RJ. Aquilo foi uma marca e não a minha carreira.