Dona Valdelice, cozinheira de mão cheia, delegou cedo ao filho a missão de entregar quentinhas na vizinhança. O guri, rápido na tarefa, entrou na adolescência já impregnado pelo tempero baiano, batendo de porta em porta para matar a fome de Salvador. Uns 40 anos depois, agora técnico do Vasco, Cristóvão, 53, timidamente limpa os pés no tapete que o separa do coração desconfiado da torcida. Ele bate à porta. Quer entrar.
As caras e portas fechadas jamais foram obstáculo na vida deste baiano de infância pobre, que cresceu em Salvador envolto na fumaça que vinha tanto das panelas da mãe quanto do ônibus dirigido pelo pai, o motorista Alfredo, já falecido. Teve a sorte de contar com a proteção e o dinheiro da madrinha, Ivone, que pagava suas passagens para os treinos no Bahia, onde deu os primeiros passos no futebol, como atacante.
- Éramos muito pobres. Minha mãe cozinhava e eu entregava nas casas de família as marmitas que, aqui no Rio, vocês chamam de quentinhas. Fiz um teste para o Bahia. Meu pai, torcedor do Ipiranga, não gostou.
A porta do futebol se abriu, mas a bola não desviou Cristóvão para o caminho seguido religiosamente pelos colegas de profissão. A Barra da Tijuca, para início de conversa, está fora do seu circuito. Ele somente trocaria a Lagoa Rodrigo de Freitas, onde mora há 15 anos, pela Urca. Seus ídolos estão na MPB. E, por trás - ao lado, junto e misturado - desse bom gosto está o par perfeito, Leninha, empresária de Zeca Pagodinho.
- Já são 25 anos de casamento. Ela é tímida. Não gosta de entrevistas. E é workaholic. Houve uma época em que estava trabalhando ao mesmo tempo com Zeca, Vanessa da Mata, Gabriel Pensador e Lenine. Bem, no caso do Lenine, fui eu que forcei a maior barra para ela aceitar (risos). Gosto demais!
Enquanto vai marcando no Vasco o território como treinador, Cristóvão vê seu único filho driblar a genética e arrematar para a música. Fruto de um namoro do passado, Cris, 26 anos, experimenta a carreira de produtor, trabalhando com Mumuzinho, revelação do samba carioca.
- Dei ao meu filho o nome de Cris, pois é como eu gosto de ser chamado - explica.
Entre os amigos, portanto, Cristóvão também é Cris. Porém, para a torcida do Vasco, o acréscimo do sobrenome Borges talvez seja consequência da falta de intimidade numa relação que aos poucos ele tenta estreitar.
- Fui vaiado e xingado em dois jogos: na derrota para o Nacional (2 a 1) e na vitória sobre o Lanús (2 a 1). Nas duas vezes, fui para casa tranquilo, sem arrependimento. Dormi bem. Faria tudo do mesmo jeito - diz.
Tal segurança veio na marra. A porta abriu-se em agosto, após uma das maiores dores, o AVC de um amigo de fé, Ricardo Gomes. Acostumado à vida de auxiliar e com o mínimo respaldo de uma passagem de cinco meses como treinador do Juventude, em 2002, Cristóvão foi no embalo e, quando percebeu, estava preso a uma nova carreira solo da qual não abrirá mão. Como técnico do Vasco, acumula 33 vitórias, 12 empates e 12 derrotas, saldo tão convincente quanto as palavras ditas aos jogadores num tom grave e nem por isso agressivo. O time assimilou-as.
- Já me disseram que eu podia ser cantor (risos). Acredita que, de tanto gritar, minha voz está ficando cada vez mais grossa? É o futebol - ironiza.
“Oh, de casa”, o grito anunciando as quentinhas sobrevive somente na imaginação de quem provou e gostou. Agora, a receita de Cristóvão é vencer, vencer e vencer para finalmente convencer. No cardápio de hoje, o prato do dia é porco palmeirense. Vai aí?
Fonte: Extra Online