Era 25 de outubro de 1982, e o Estádio Luso-Brasileiro, na Ilha, seria palco de uma partida cujo vencedor parecia fácil de acertar na loteria. De um lado, um time que perdera dez de seus 15 jogos na temporada; do outro, um que vivia sua fase de ouro: entrava em campo como campeão carioca, brasileiro, sul-americano e mundial. Mas, naquele ano, quando os Jornais de Bairro nasceram, a Portuguesa acabou realizando um feito histórico. Os 3 a 2 sobre o Flamengo não salvaram a Zebra (mascote da equipe) do rebaixamento, mas fizeram a torcida que lotou as arquibancadas voltar para casa com a certeza de ter visto um jogo inesquecível.
— Na época, eu tinha 14 anos. A Ilha do Governador parou para ver Zico e companhia. Todo mundo que gostava de futebol estava aqui naquele dia, tinha gente em cima das árvores, dos prédios, dos muros... No final, a torcida do Flamengo deixou o estádio incrédula, em estado de choque. Para a Portuguesa, foi uma festa como nunca vi igual. O clube pagou refrigerante para os torcedores. Foi sensacional — conta o professor Marcelo Branco, insulano fanático pela história da Lusa.
Branco coloca o triunfo sobre o esquadrão rubro-negro entre as grandes vitórias da história da Portuguesa, que já tinha conseguido a façanha de derrotar o Real Madrid em pleno Santiago Bernabéu, na Espanha — a Lusa o venceu por 2 a 1 em 1969, quando fez uma excursão pela Europa. Antes de a bola rolar no Luso-Brasileiro, nada levava a crer que aquela seria uma partida histórica, haja visto os maus resultados do clube insulano no Campeonato Carioca. Goleadas para times grandes — inclusive um 4 a 0 para o próprio Flamengo — e pequenos foram a tônica da campanha. Mas uma vitória sobre o Fluminense, no Maracanã, quatro rodadas antes, foi uma amostra do que a equipe ainda era capaz.
Ainda no primeiro tempo, um lance marcante começou a assegurar um espaço para o jogo na história do futebol. Aos 31 minutos, Zico fez algo raro até para seus padrões: um gol olímpico. O feito é lembrado com detalhes pelo próprio Galinho, que balançou as redes 826 vezes na carreira.
“Fiz dois gols olímpicos na minha vida, e aquele foi um deles. Quando peguei a bola para bater, ventava muito. Percebendo isso, cobrei o córner como se fosse uma falta, e a bola entrou no ângulo do outro lado. Foi uma partida inesquecível para a Portuguesa e para mim, apesar da derrota. O calor era intenso e o campo estava muito ruim”, contou Zico, por e-mail, da Turquia, onde treinava a seleção do Iraque para um amistoso.
O vento foi fator decisivo em alguns jogos disputados no Luso-Brasileiro. Tanto é que um dos gols mais folclóricos do futebol brasileiro aconteceu com a ajuda dele: o goleiro Ubirajara, do próprio Flamengo, chutou de sua meta e marcou contra o Madureira, em 1970.
Naquela tarde de 1982, os ventos acabaram virando para a Lusa. Depois de terminar o primeiro tempo perdendo por 2 a 1 — Buga empatara e Nunes recolocara o Fla à frente —, o time insulano se superou, na segunda etapa, ao atuar a favor do constante fluxo de ar. O meia português Manuel nem precisou de muita força para, com a ajuda dos sopros característicos do estádio, encobrir o goleiro Cantarele e empatar novamente a partida.
— Foi lindo. Recebi a bola livre e toquei por cima. Valeu o esforço. Dirigentes do Vasco nos ofereceram um bom bicho (prêmio, no jargão do futebol) para ganharmos do Flamengo. Era o dobro do meu salário — conta Manuel, de 57 anos, que hoje é dono de um bar em Piedade.
Virada incrível beneficiou o ‘amigo’ Vasco
A cooperação entre os times da colônia portuguesa no Rio acabou por decidir o rumo do Campeonato Carioca. Depois que o atacante Buga marcou seu segundo gol na partida e decretou a vitória da Portuguesa, o Vasco se desgarrou do arquirrival e conseguiu uma vaga no triangular final por ter sido o time que mais somou pontos nos dois turnos, mesmo sem ter ganhado nenhum (Flamengo e América foram os vencedores). Posteriormente, o time cruzmaltino se sagrou campeão em cima do rubro-negro.
O lateral-esquerdo Nicanor e o volante Da Costa, que participaram do jogo na Ilha, contam que, colaborações financeiras à parte, o triunfo era uma recompensa ao esforço de um time talentoso que não conseguia uma sequência de bons resultados.
— Naquele dia, marquei o Zico e tenho certeza que dei trabalho a ele. Acabei atrapalhando nosso goleiro Jadir no gol olímpico do Galinho, mas não nos abalamos. Queríamos muito vencer o jogo. Tínhamos um grupo bom, tanto individualmente como no conjunto, mas não conseguíamos vencer com regularidade. Contra o Flamengo, fomos presenteados pelos céus. Até hoje sou lembrado por aquela vitória — diz Da Costa.
Nicanor completa:
— Fiz minha carreira na Portuguesa e aquela foi a melhor partida que participei.
Recortes de jornais, fotos, uniformes, chuteiras, tudo se desgastou com os 30 anos que passaram. Hoje, o clube insulano passa por uma reformulação para tentar reviver o sucesso daquela partida — depois dela, só venceu um jogo contra um time grande, justamente o Flamengo, em 1985. Independentemente do futuro que espera a Zebra, as lembranças servem de inspiração, como diz Manuel:
— Espero que os jogadores de hoje tenham isso em mente. Rodei o país e aquele jogo ficou para sempre na memória de torcedores.
Flamenguista, herói do jogo vive no interior da Bahia
Para quem presenciou a vitória da Lusa sobre o Flamengo, uma coisa é certa: o personagem do jogo foi o atacante Buga. Ter marcado duas vezes e ajudado a derrotar o esquadrão campeão mundial foi um feito. Após a partida, ele falou, com irreverência, sobre a atuação de seu time.
— Usamos uma tática que batizamos de “E o vento levou”. No primeiro tempo, jogamos contra ele; no segundo, a favor — disse Buga ao GLOBO, acrescentando que tinha esperança de evitar o descenso: — Se jogar em time pequeno no campeonato principal já é duro, imagine disputar torneio da segunda divisão.
Trinta anos depois, ele é ainda reconhecido pelos gols em sua cidade natal, a pequena Livramento de Nossa Senhora, no interior da Bahia, a 720km de Salvador, onde mora e trabalha, descarregando caminhões. O atacante, que diz ter feito mais de 300 gols na carreira, defendeu o Benfica e o Boavista, de Portugal, mas fez fama mesmo no Rio. Pela Portuguesa e pelo Campo Grande, Buga sempre levava sorte contra o Flamengo. O que é curioso por um motivo peculiar: ele torce pelo rubro-negro.
— Eu era pé-quente. Quando entrava em campo, só queria ganhar, não me importava se os gols prejudicariam o Flamengo. Mas sou e sempre fui rubro-negro — diz Buga, cujo nome é José Alberto dos Santos.
Fonte: O Globo online