O jogo que mobiliza as duas maiores torcidas do Rio não chegou a parar uma guerra nem diminuiu as mazelas do Haiti. Mas a paixão pelo futebol de militares brasileiros, que viajam em missões humanitárias das Organizações das Nações Unidas, levou um pouco do clima – de paz – do clássico para um campo de desalojados do último terremoto, em Porto Príncipe.
Num país sempre em reconstrução após décadas de guerras, de pobreza e de tragédias naturais, a bola é o meio de amenizar a dor, de recondução social e de afastamento a violência para as crianças e de aproximação com os brasileiros. Num dos últimos de seus 256 dias no país, o tenente da Marinha Leandro Raposo levou 15 camisas do Flamengo para os meninos que jogavam futebol no Jean Marie Vincent, o maior campo de desabrigados do país – onde vivem cerca de 30 mil haitianos. Em todo o país, cerca de 1.5 milhão vivem nessas condições de moradia.
Um dos 292 fuzileiros enviados no último contingente militar para o Haiti, Leandro reforçou a presença brasileira no país, que teve mais de 200 mil mortes com o terremoto de janeiro de 2010. “Flamenguista até dizer chega”, ele arrecadou alimentos, roupas e brinquedos para levar às crianças. Na mala, ainda providenciou 10 camisas do Rubro-negro. E teve que aturar também umas dos rivais vascaínos.
– Os haitianos são fanáticos por futebol. Eles falam a todo momento do Ronaldo, do Ronaldinho, do Kaká e até do Neymar – lembra o tenente da Marinha.
Apesar da fase de R10 não ser a mesma daqueles dias de melhor do mundo, ninguém esquece que no dia 18 de agosto de 2004 o então jogador do Barcelona bailou sobre a bola e fez um dos seis gols na partida contra a seleção local.
– Todas as crianças ainda lembram desse jogo da seleção. Eles adoraram receber a camisa do Ronaldinho – conta ele, que aposta em vitória de 2 a 1 do Flamengo.
O otimismo se explica pela ausência, digamos, de um soldado capaz de estabilizar e manter o ambiente seguro do setor defensivo vascaíno – exatamente como mandam os fundamentos das Nações Unidas.
– Estou apostando na vitória porque o Vasco está sem o Dedé. Com ele, realmente seria muito difícil. Mas agora equilibrou – diz o tenente.
Em meio a 30 mil desalojados do terremoto, as emoções e as dificuldades para torcer
Enraizados na guerra civil haitiana desde 2004, os militares brasileiros encontram histórias de vida que levam para sempre nos meses que passam no Haiti. Numa das muitas noites de patrulha em Porto Príncipe, um grupo de fuzileiros ouviu uma haitiana pedindo socorro. Ela estava dando a luz no meio da rua da capital haitiana.
– Não é raro que mulheres daqui peçam ajuda para ter seus bêbes, mas desta vez a surpresa foi muito grande. Eram trigêmeos. Esse episódio marcou todos nós – lembra o tenente da Marinha Leandro Raposo, que também se arrepiou numa das ações de ajuda comunitária que fazem na cidade.
– Fizemos palestras no Dia Mundial da Água. Depois, distribuímos alguns brinquedos para todos. Ia embora e senti a mão me puxando. Era uma menina com uma boneca que havia entregue. Ela me puxou, me deu um abraço e saiu correndo. Ali, percebi a sinceridade do gesto e como nosso trabalho no Haiti era reconhecido.
Difícil, às vezes, é torcer
Com missões para conter qualquer sinal de violência e até para cooperar na criação de colônia de pescadores, os militares passam até mais de uma semana longe dos abrigos e dos computadores, que tem limite de conexão para os 292 fuzileiros.
– É normal um goleiro defender e quando a internet volta já saiu gol do outro lado – lembra o tenente Herbert Medeiros, que relata o drama da eliminação do Flamengo na Libertadores, quando acompanharam o finalzinho de Olimpia e Emelec.
– Ali foi complicado. Só me situei do resultado final uns cinco minutos depois do jogo ter acabado. A internet travava e demorava a atualizar. Pelo Skype as famílias mudavam de resultado toda hora, não sabia se era brincadeira ou se era real – diverte-se o flamenguista, que, claro, teve que sofrer com as gozações dos vascaínos.
Projeto de futebol parado
Um dos países mais pobres do mundo – mais da metade da população vive com menos de 1,25 dólar por dia –, o Haiti é uma antiga colônia francesa de 28 mil quilômetros quadrados e incalculáveis problemas políticos, econômicos e sociais. No terremoto de 2010, estima-se que 80% das construções da capital Porto Príncipe foram danificadas.
O Brasil, como responsável pelo processo de pacificação no Haiti, comanda mais de sete mil soldados no país. Da iniciativa deles, surgiram as Ações Cívico Sociais para o povo. Além de palestras sobre diversos temas, doações e distribuições de produtos de maior necessidade e outros serviços, os militares criaram também uma escolinha de futebol.
– O projeto começou com a gente, mas como a proposta é que o Haiti se torne auto-sustentável, eles tocaram o projeto. Mas, infelizmente, o futebol, hoje, está parado – lamenta o tenente Herbert Medeiros.
Em 72ª no ranking da Fifa, uma participação em Copa (1974) e 12 times na liga nacional, o Haiti tenta se reorganizar também no futebol. Campeão caribenho de 2007, os haitianos foram desclassificados na fase preliminar das eliminatórias da Copa de 2014. Ficou em segundo no grupo que tinha Curaçao, Ilhas Virgens e Antígua e Barbuda, a primeira colocada.
Fonte: Extra online