Processo: 0151569-26.2012.8.19.0001
Autor: Ministério Público
Réu: Club de Regatas Vasco da Gama
Segue abaixo a Decisão:
Avoco os presentes autos, com amparo na dicção do art. 92, VI do CODJERJ. Anote-se na capa a respeito do sigilo que deverá ser observado no acesso aos autos, bem como no manuseio e guarda de documentos referentes ao presente. Cuida-se de Ação Civil Pública aforada pelo Ministério Público em desfavor do Clube de Regatas Vasco da Gama, devidamente qualificado na peça inaugural, em razão das condições evidenciadas preliminarmente através de inspeções ultimadas em sua sede, em especial e mais precisamente nos alojamentos que servem aos atletas adolescentes da agremiação. Inicialmente, diante da clareza meridiana com que foram tratadas tais questões, verifico a presença dos pressupostos processuais e das condições da ação. O cabimento da Ação Civil Pública sub examine para a defesa de interesses que detêm caráter transindividual, decorre de norma que figura na lei de regência do segmento. Decerto, como prenuncia o art. 208, § 1° da Lei 8069/90, tal não afasta a proteção de outros direitos diversos daqueles elencados no mesmo dispositivo e em seus incisos, dado o caráter absoluto da prioridade assegurada à infância e à adolescência. Passemos à analise dos pedidos formulados em sede de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional. Por inicial destaque, deve-se assentar a plena possibilidade da edição de medida liminar para a concessão parcial do amparo pretendido no pedido, desde que presentes os requisitos aludidos no art. 273, I do CPC, a saber a situação de urgência e a probabilidade suficiente de veracidade das alegações. De igual modo, a legislação específica que trata da natureza do presente procedimento avulta a hipótese de adiantamento de parte dos resultados esperados da decisão de mérito, como se infere do art. 12 c/c art. 19, ambos da sobredita lei (7.357/85). O relato inicial demonstra, inequivocamente, a incidência de verdadeiro atentado às disposições contidas na lei de regência e na Constituição da República Federativa do Brasil, sendo a hipótese aventada, diante da moldura fática delineada, de aplicação de medida apta a salvaguardar a vida e a saúde dos adolescentes em questão. Veja-se, no ponto, que o Soberano deve se responsabilizar pela tutela e promoção dos direitos fundamentais, à luz da cognominada teoria dos deveres de proteção, não estando apenas obrigado a abster-se de condutas violadoras, mas de atuar no amparo de seus súditos, diante da ameaça ou lesão provindas de particulares ou mesmo de outros Estados. De causar espécie o veiculado nestes autos, em que crianças e adolescentes estão vivenciando situação extremamente degradante, distante inclusive d aquela oferecida nas entidades de acolhimento do Estado do Rio de Janeiro, ou mesmo de jovens que, em conflito com a lei, estão a cumprir medidas socioeducativas. Como bem salientou o ente ministerial, torna-se imperiosa a adoção de medidas urgentes para a regularização do panorama evidenciado. De ocasionar maior estranheza ainda, o fato de o sobredito clube figurar na elite do futebol brasileiro, com estrutura e recursos vultuosos ¿ estes últimos, em grande parte, se originam da venda dos direitos federativos de atletas formados nas categorias de base ¿ a acentuar a reprovabilidade da conduta da agremiação. O tratamento isonômico deve ser a regra, independentemente da vinculação dos direitos federativos do jovem a empresário ou empresa investidora, deve-se dar prevalência à preservação e fortalecimento dos vínculos familiares ¿ mormente em razão do reduzido número de jogadores que alcançam seus objetivos -, o atendimento por profission ais da psicologia e da assistência social não pode estar voltado, unicamente, para a rotina de jogos e treinos, a tutela da saúde tem de estar presente, as dependências dos alojamentos devem estar em condições de habitabilidade e a vida desses adolescentes necessita de resguardo, com exames médicos periódicos, de molde a afastar, quando possível, episódios trágicos como o ocorrido nas dependências do Centro de Treinamentos em Itaguaí. A afronta representa verdadeiro retrocesso histórico e malfere frontalmente o preceito contido no art. 227 da Carta Republicana, que expressa a Prioridade Absoluta com que devem ser tratadas crianças e Adolescentes, em dispositivo impregnado da mais alta relevância, fundado em aspirações legítimas da sociedade brasileira. Não se pode antes de encerrar este itinerário digressivo, de se aludir, mais uma vez, à primorosa pe ça processual, da lavra da Ilustríssima Promotora de Justiça, Dra. Clisânger Ferreira Gonçalves que propicia a este Juízo o exame da relevantíssima questão trazida a lume. A postura da agremiação, tal como descrita na prefacial e devidamente comprovada extrajudicialmente, é merecedora do mais veemente repúdio, podendo ser equiparada ao delito de redução à condição análoga à de escravo, o que igualmente malfere e ofende todo o sistema de organização do trabalho. De toda sorte, as singularidades do caso confluem para a manutenção parcial da situação, com a estipulação de prazo para que o indicado clube possa se adequar ao pronunciamento judicial que ora se programa. É que, sob outro enfoque não se pode retirar desses adolescentes o sonho de prosseguir na persecução de seus objetivos e, para ficarmos apenas com um exemplo, a interdição imediat a dos alojamentos, até a total regularização da estrutura ofertada com a entrega dos jovens, no prazo de 10 (dez) dias aos seus respectivos responsáveis legais, poderá confrontar com a própria finalidade da legislação de proteção às crianças e adolescentes. Em uma ordem social racional, é direito de todo ser humano, mormente de crianças e adolescentes, de ir em busca de seus sonhos, sendo, por seu turno, a sociedade e o Estado construções sociais destinadas a proteger os direitos de cada indivíduo. Disso resulta a clara possibilidade de decisão favorável ao pleito do ente ministerial, com algumas ressalvas que parecem necessárias e prudentes à espécie, especialmente em sujeição ao direito de buscar a felicidade, daqueles que, apesar de abatidos pela desesperança e pela incerteza aliadas a uma rotina perversa, certamente não pretendem desistir de transpor os obstáculos que a vida lhes reservou. Registre-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Feder al, por mais de uma vez (v.g. ADI 3.300-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), reconheceu, no princípio constitucional da busca da felicidade, ¿um verdadeiro postulado constitucional implícito, como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana¿. É certo que a interpretação da legislação menorista somente se legitima quando à luz dos fins sociais a que ela se dirige, das exigências do bem comum, dos direitos e deveres individuais e coletivos e da condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (art. 6° da Lei 8069/90). À conta destes fundamentos, DEFIRO PARCIALMENTE OS PEDIDOS FORMULADOS EM SEDE DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL, PARA, COM LASTRO NO ART. 273 DO CPC E ART. 12 DA LEI 7347/85, DETERMINAR QUE O CLUBE DE REGATAS VASCO DA GAMA, NOS MOLDES ALVITRADOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, PROCEDA ÀS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS AO ATENDIMENTO DOS PLEITOS INSCRITOS NOS ITENS: ¿4¿, ¿5¿ e ¿10¿ DE FLS. 63/64, EM NO MÁXIMO 5 (cinco) DIAS. OFICIE-SE CONFORME REQUERIDO NOS ITENS ´7´, ´8´ E ´9´, PROCEDENDO-SE AOS ATOS NECESSÁRIOS. NO MAIS, CONCEDO AINDA A TUTELA DOS DEMAIS PEDIDOS DE URGÊNCIA COM AS RESSALVAS QUE SE SEGUEM: DETERMINO O INÍCIO IMEDIATO DAS INTERVENÇÕES VISANDO A ESTRUTURAÇÃO E ADEQUAÇÃO DE TODO O ESPAÇO REFERENTE AOS ATLETAS ADOLESCENTES, INCLUSIVE DO LOCAL DESTINADO AO PREPARO E OFERTA DE ALIMENTAÇÃO, QUE DEVERÁ OCORRER, ENQUANTO NÃO IMPLEMENTADA A INDICADA ESTRUTURAÇÃO, NO REFEITÓRIO UTILIZADO PELOS PROFISSIONAIS DO CLUBE, SOB PENA DE SUSPENSÃO IMEDIATA DAS ATIVIDADES ESPORTIVAS E CONSEQUENTE INTERDIÇÃO DOS ALOJAMENTOS. EM QUE PESE NÃO VISLUMBRAR, CONFORME DEMONSTRADO ACIMA, SER A HIPÓTESE DE ENTREGA DOS JOVENS AOS RESPECTIVOS FAMILIARES, DETERMINO QUE O CLUBE ADOTE POSTURA QUE VIABILIZE A MANUTENÇÃO DE VÍNCULOS ENTRE OS ADOLESCENTES E SEUS FAMILIARES. NO MAIS, À VISTA DOS ELEMENTOS PREVIAM ENTE COLIGIDOS, DEFIRO OS ITENS: ´C´ com a exceção do ´C.4´; ´C.12.1´; ´C.12.3´; ´C.12.4´, CONCEDENDO O PRAZO DE 30 (trinta) DIAS, PARA QUE SE INICIEM AS ATIVIDADES NECESSÁRIAS AO ATENDIMENTO INTEGRAL DESTE DECISUM, SOB PENA DA INCIDÊNCIA DE MULTA DIÁRIA DE R$ 30.000,00 (TRINTA MIL REAIS), ATENDIDOS OS CRITÉRIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE, TENDO A MESMA, NA ESPÉCIE, A FUNÇÃO PRECÍPUA DE COMPELIR O CLUBE A CUMPRIR A OBRIGAÇÃO IMPOSTA JUDICIALMENTE. POR FIM, COM VISTAS À PRECISAR, EM MOMENTO POSTERIOR, SE HOUVE CUMPRIMENTO DO PRESENTE, A EQUIPE DO JUÍZO (ASSISTENTES SOCIAIS, PSICÓLOGOS E COMISSARIADO) DEVERÁ REALIZAR INSPEÇÃO, A CADA 15 (QUINZE) DIAS, NA SEDE DO CLUBE, COM ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO. PUBLIQUE-SE. INTIME-SE O PRESIDENTE DA AGREMIAÇÃO ONDE QUER QUE ESTE SE ENCONTRE, ATENTANDO O DILIGENTE QUE, POR OCASIÃO DO CUMPRIMENTO DO MANDADO, DEVERÁ TRAZER AOS AUTOS LISTA COM OS NOMES, RESPECTIVOS DOCUMENTOS E OUTROS DADOS DOS 61 ADOLESCENTES INDICADOS NA EXORDIAL E DE OUTROS QUE PORVENTURA SE ENCONTREM NO LOCAL. DÊ-SE CIÊNCIA AO MINISTÉRIO PÚBLICO. CITE-SE.
Fonte: Casaca