Ele narrou cada dia de seu afastamento com a ansiedade do presidiário que conta os dias para a liberdade. Na semana da volta, ao receber a reportagem do GLOBO, era o mesmo jogador articulado, capaz de discutir qualquer assunto com seriedade. Mas, ao falar dos planos para o reencontro com o futebol, o sorriso ressurge. O meia aparenta a leveza de quem se dispõe a se reconciliar com o mundo, assim como já fez com Leão e o presidente Roberto Dinamite.
Você encara esta volta como um recomeço?
De certa forma sim. Ir treinar sozinho, fazer tudo sozinho. É triste. Estou feliz por conviver com o grupo. Uma coisa é acordar para treinar visando ao jogo do final de semana. Outra coisa é acordar para treinar sozinho. Tinha dias que acordava porque tinha que ir, mas a vontade era não ir. Não queria sair na rua, toda hora ficar esclarecendo as coisas. Eu estava frágil. Foram 89 dias, eu fazia igual a presidiário contando os dias. Via jogos e pensava: podia estar jogando. E meu filho está crescendo, meus pais querendo me ver jogar. Depois de um ano posso falar que não foi legal. Se pudesse não teria saído, minha história no Vasco era bacana, uma grande história de amor, que teve um divórcio e agora a gente está voltando.
A identificação construída com o Vasco pode ter sido abalada?
O que está feito ninguém vai apagar. Mas tem coisas que vou ter que buscar de novo e merecer. Vejo as pessoas lá dispostas a me ajudar. Vou precisar muito mais da ajuda deles do que eu ajudá-los. Preciso de paciência, conto com o torcedor, que vai ser um combustível a mais. O ritmo eu só vou adquirir jogando. Mas estou feliz. Todos sempre foram muito sinceros. Se eu acertasse a situação com o Dinamite, sabia que seria resolvido. Todos os jogadores estavam ao meu lado, o staff do Vasco. Quando voltei, mostraram felicidade verdadeira. Não foi algo tipo só porque está na frente dele vamos tratar bem.
O que você disse ao Dinamite na discussão?
É uma coisa chata, se pudesse voltar no tempo, parasse naquela cena... Mas serviu de aprendizado. O presidente entrou no vestiário cobrando o grupo e eu questionei. Não xinguei, não teve briga, porrada, nada disso. Talvez eu não tenha tido a tranquilidade de passar o que eu queria. Sem falar que jogador de futebol esquece que existem as hierarquias. Ele não citou meu nome, falou de uma forma geral. Eu achei que aquilo não era o momento e houve a discussão. Mas foi uma besteira que eu me arrependo, falei para ele e ele me perdoou. E sabe o que mais pegou nessa história? Surgiu o interesse do Grêmio. Até liguei para o Dinamite, mas não tive habilidade para marcar logo a conversa e resolver esse assunto. Foi mais cômodo pra todo mundo.
Em que patamar você acha que volta para esse time?
Hoje, acho que sou um menino começando no profissional e para mim não é nenhum demérito. Hoje Dedé, Fágner, Rômulo, são os que podem dar retorno ao Vasco. Vejo-os como exemplo. Preciso dar uma volta por cima bem dada. Vou errar passe, chutar pra fora. Vou precisar de paciência. Hoje, o Vasco está entre os quatro, cinco melhores elencos do Brasil. Trabalhar com Juninho, Diego, Alecsandro, Felipe, Dedé... É prazeroso.
E você saiu, o Vasco foi campeão, mudou de patamar...
Essas comparações são normais. Chegaram reforços vencedores. Você junta esses caras com a base que já tinha, não precisa ser mágico. Espero engrenar com eles, sempre tive vontade de jogar com eles.
É comum falarem que jogador de futebol ganha muito e, por isso, não tem problema...
Esse é o maior erro. Jogador não é máquina, tem problemas como toda pessoa. Mas é tratado com preconceito. O cara não pode ficar triste, procurar terapia. Eu fui procurar, já tive ajuda psicológica outras vezes. Até isso o jogador tem que fazer escondido. A gente no Brasil acha que dinheiro resolve tudo, tapa problemas, preconceitos. Sou sensível, igual a todo ser humano.
Não é natural que olhem torto o jogador que ganha tanto?
Isso é uma minoria, uns 90% ganham pra sobreviver. E natural eu não acho. Eu passei dificuldade, lutei e venci. Deveriam olhar e falar: “Esse cara trabalhou”. E entender que a vida sorriu pra alguns. O atleta tem grande dificuldade. Todo mundo quando se forma e vai começar a ganhar dinheiro, está com uns 27 anos. Essa idade eu tenho hoje. Imagina, comecei a lidar com meu dinheiro aos 19, a ser responsável por uma família. Nesta idade a gente não tem maturidade. Tem oportunidades. Vai aprendendo, errando e sendo julgado pela sociedade.
E como foi ver sua vida se transformar aos 19 anos?
Nessa época, você acha que vai mijar no chão e vai nascer grana. Se eu tivesse a cabeça de hoje, talvez tivesse ficado mais tempo na Europa. Foi bom voltar, tive conquistas aqui. Mas venci inseguranças, medos e acho que resistiria mais. O jogador de futebol, num dia, não tem dinheiro pra comprar um lanche. No outro, compra o carro que quiser. Isso pode não mexer com a minha índole, mas mexe com a cabeça. Você pensa: “Ralei pra caramba, agora quero ter o melhor”.
Já disseram que, por problemas psicológicos, você precisou de remédios e teve problema de peso.
Na Alemanha, tive insônia e foi diagnosticado um problema na tireoide. Mas retinha líquido por problema genético. Não tenho problema de falar de dificuldades.
Fazem de você uma imagem equivocada?
Sou mal interpretado. Afirmar que causo problema em grupo me incomoda. Quando eu parar de jogar, tenho filho se espelhando em mim. De futebol, acho normal. Não tenho como chegar para um médico e dizer como ele vai operar um rim. Mas todo mundo te para na rua pra falar de futebol e você tem que ouvir. Se não ouvir, é marrento, prepotente. Ou entra no sistema ou convive com problemas. Eu me preocupo com imagem, em especial quando falam de eu ser ruim ou bom como pessoa. Quando falam que crio caso, qual o primeiro que vem na sua cabeça?
A briga com o Leão (no Corinthians em 2006).
Todo mundo fala isso, fiquei com imagem de brigão. Depois daquilo, quantas coisas eu fiz de bom? Mas ficou marcado. Aquilo eu não faria mais. Mas quando é impactante, fica marcado. Se eu fosse ruim, desagregador, o Vasco iria me trazer de volta? Os jogadores foram consultados. Diriam logo: “Esse cara é mau-caráter, não queremos ele”.
Você voltou a falar com o Leão?
Na hora de ser mal educado com alguém, intempestivo, todo mundo é corajoso. Mas o ser humano é tão frágil que, na hora de se desculpar, fica com medo. Em 2009, tive meu ano Dalai Lama. Disse ao Dorival Júnior que isso me incomodava. Ele falou para eu ligar pro Leão. Ele disse: “Você vai ver o que o perdão provoca na alma sua e na dele”. Liguei com medo e disse logo: “Professor, antes de o senhor desligar, me xingar, só queria pedir perdão por aquela situação”. Ele falou: “Se dependesse de mim, meu dedo podia quebrar que eu não ia te ligar, mas você me deu uma lição. Eu tive atitudes piores do que a sua e não tive a coragem de pedir perdão”. Depois daquilo, fiquei em paz.
Você concorda que sua carreira está num patamar inferior ao que se imaginava lá no início?
Concordo. Tem coisas que eu puxo minha orelha. Outras, não. E fiz opções. Quando vim para o Vasco, ia jogar o primeiro semestre, mas tudo foi tão legal que joguei a Série B. Aí meu filho nasceu, ficou uns dias na UTI e quis ficar. Aquilo era mais importante pra mim. Se eu estivesse fora, ia ter problemas extracampo. Não me arrependo. Se precisar pegar no batente um dia, eu vou. Mas guardei, investi meu dinheiro e fiz escolhas pensando no meu bem estar e da minha família. Será que vale a pena estar lá fora ganhando muito dinheiro sem estar feliz? Estou vendo meus pais envelhecerem, tem gente da minha família que já perdi. O dinheiro não vai trazer estas pessoas de volta. A fase de buscar meu filho no colégio vai passar. Fui privilegiado de conquistar coisas cedo e poder ficar mais tempo no Brasil. Hoje, só saio se aparecer algo de outro mundo.
Por que você se puxa a orelha?
Só de olhar para o seu filho você percebe que não pode mais dar mau exemplo. Não aceito mais viver mal, estar mal com alguém. A briga com o Leão, a intolerância, criar problemas em nome dos outros, contestar, não faria de novo. Tem coisas que podiam acontecer com o Carlos Alberto de 19 anos. Com o de 27, não dá. Meu pai um dia falou: “Você é pai de dois filhos, tem 27 anos, vai lá e conversa com o Dinamite! Quando o teu filho estava na UTI ele não foi lá? Caráter ele tem”. Falam que criei polêmicas. No Botafogo, joguei um ano e pagaram dois meses. No Vasco, teve o problema com o Dinamite e me desculpei. Na Alemanha, foi opção minha voltar. No Porto, estava bem, mas o Corinthians fez uma proposta alta. Falam que fui superestimado. Só se nasci com o bumbum pra lua, vai ter sorte assim lá longe... Querem tirar seu mérito, jogar areia na sua história.
E no Grêmio?
Fizeram um investimento para a Libertadores. A gente se complicou. Ali começaram a falar que, se não classificássemos, iam mandar alguns embora. E meu nome estava na lista. Fui falar com os caras e disseram: “É possível, sim“. Não tenho como treinar sabendo que o jogo é meu divisor de águas. Talvez meu erro tenha sido ir lá falar, não ter habilidade.
Qual foi seu o melhor técnico?
O Mourinho. Ele pega jogadores que nunca jogaram numa posição e faz render. No Brasil, o jogador que tem mais qualidade é treinado para não marcar. E a gente cresce com este vício. Por isso muitos batem na Europa e voltam. Mourinho me colocou de volante em alguns jogos. Fomos jogar com o Manchester United e ele me pôs de atacante. Joguei muito bem e ganhamos. Ele me chamou e perguntou se eu tinha entendido por que ele tinha me colocado de volante. Disse que não e ele perguntou se eu era burro. Ele explicou que fez aquilo para eu ser competitivo.
A arbitragem e o jogo são muito diferentes aqui?
Por que o jogador brasileiro cai? Porque o árbitro vai marcar. No Brasil, o árbitro virou um recurso para nós. Se eu me jogar bem direitinho ele marca. Na Europa eles são mais compactos, treinam isso há muitos anos. Nós trabalhamos o coletivo, mas destacamos muito as individualidades. Vê o Barcelona: Messi, Xavi, todos são menores do que eu. Mas marcam pressão, jogam, ficam com a bola. Na nossa base, colocam três volantes para o cara de talento só resolver o jogo. Tá errado.
Fonte: Globo Online