Nos cinemas, Heleno renasce mais de 50 anos após sua morte

Terça-feira, 20/03/2012 - 18:28

Os dentes da frente eram tortos, um tanto separados. No rosto de Heleno de Freitas, naquela expressão que fazia as mulheres tremelicarem em meio a suspiros, haveria de ter alguma imperfeição, como que a combinar com a personalidade dele. Porque o espírito do gênio da década de 40 também tinha pontos tortos. E é justificável. Não fosse assim, talvez ele não seria ressuscitado em homenagens mais de 50 anos após sua morte – reconhecido em filme, livro e exposição como uma das maiores personagens já criadas pelo futebol brasileiro. Antagonista de si mesmo, o goleador que deixou a vida em um hospício, na precocidade dos 39 anos, tem os vaivéns de sua história recontados. É uma trajetória que beira a ficção, com a pulsão de uma vida superacelerada pela fama e a dor de uma morte atormentada pela loucura.

Chega aos cinemas na semana que vem, dia 30, o filme “Heleno – o príncipe maldito”, dirigido por José Henrique Fonseca (veja o trailer no vídeo ao lado). O ídolo alvinegro é vivido por Rodrigo Santoro – quase uma cópia da personagem que interpreta, com um nível de semelhança capaz de assombrar os familiares do craque trágico. A inspiração para a telona saiu do livro “Nunca houve um homem como Heleno”, de Marcos Eduardo Neves, levado às livrarias em 2006 e relançado agora. A loja oficial do Botafogo, em General Severiano, tem até o fim do mês uma exposição com fotos da carreira e da vida pessoal do ex-atacante.

É o renascimento de uma lenda abençoada pela vida e amaldiçoada pelo destino. O galã de tantas mulheres, o artilheiro de tantos gols, o encrenqueiro de tantas confusões, o viciado de tantos excessos, o egocêntrico de tantos orgulhos, haveria de morrer longe da glória, louco, doente. E haveria de ser eterno.



Tua estrela solitária te conduz

Vale o clichê: Heleno de Freitas era uma estrela solitária. Era sua própria estrela. E era conduzido por ela. Possuía aquilo a que talvez só os gênios têm direito: o egocentrismo como núcleo da vida.

Ele sabia que era diferente. Era um jogador de futebol que também era advogado. Lia Dostoievski. Escutava jazz. Assistia a representações de Shakespeare.

Ele sabia que era craque. Contava gols como se contasse os segundos nos ponteiros do relógio. É o quarto maior artilheiro da história do Botafogo. Foram 204 bolas nas redes adversárias em 234 partidas com a camisa alvinegra. Anotou pelo menos outros 45 vestido com uniformes diferentes: 14 pela Seleção Brasileira, cinco pela seleção carioca, 19 pelo Vasco, sete pelo Boca Juniors. Também jogou no Junior Barranquilla, da Colômbia. No América-RJ, onde encerrou a carreira, não fez gols.

Ele sabia que era um galã. Possuía um ar que misturava a grandeza que Carlos Gardel já tinha com a melancolia que Jack Kerouac ainda teria. Os cabelos negros eram penteados com precisão matemática, de forma a ficarem quase imóveis, no máximo com liberdade para a franja cair sobre a testa - o que lhe rendeu o apelido de Gilda, em referência à personagem interpretada por Rita Hayworth. Ele se vestia com cuidado de astro de cinema. Tinha o mesmo alfaiate de Getúlio Vargas. Andava em Cadillacs. Atraía as mulheres feito ímã ao circular pelos bailes cariocas ou pelas praias de Copacabana. A fama de mulherengo inclui boatos de que seduziu até Eva Perón quando esteve na Argentina – história presente em seus delírios no fim da vida, já atingido pela insanidade, e registrada em crônica de Nelson Rodrigues.

Mas ele não sabia que teria um fim tão trágico. A queda foi proporcional à ascensão. Com o tempo, perdeu dinheiro, perdeu qualidade, perdeu espaço, perdeu idolatria. E perdeu a vida. Abalado pela sífilis e fragilizado pelo vício em éter, acabou louco. Morreu assim.

De amor e de sombras

A família de Heleno de Freitas, após a morte do pai dele, trocou a cidade mineira de São João Nepomuceno pelo Rio de Janeiro em 1933, quando o futuro ídolo do Botafogo tinha 13 anos. Ainda no engatinhar da Era Vargas, o menino começou a conviver com um novo mundo. A praia de Copacabana, nos arredores do apartamento onde ele morava, no número 19 da rua Conselheiro Lafaiette, logo virou uma atração para o garoto. Foi ali que ele começou a jogar bola. E que começou a mostrar o estilo que marcaria sua carreira: perfeccionista, agressivo até com os colegas de time, arrogante até o limite do insuportável. E um craque.

- Ele era um Edmundo elevado à décima potência – opina Marcos Eduardo Neves, o autor de “Nunca houve um homem como Heleno”.

Ali ganhava forma uma história de amor e de sombras. Pouco depois de chegar ao Rio, Heleno viu a torcida alvinegra em festa, nas ruas da cidade, pela conquista do Estadual de 33. Achou aquilo tudo muito bonito. Talvez sem perceber, passou a se apaixonar por uma camisa que defenderia com amor quase doentio – a ponto de prejudicar o clube.

Heleno seria punido, multado e até afastado do Botafogo, sempre por culpa de sua indisciplina. O atacante exigia a perfeição. Foram raras as figuras que ele respeitou. Humilhava colegas de time (inclusive durante os jogos), discutia com treinadores, contrariava dirigentes, brigava com torcedores. Entre idas e vindas, teve uma passagem pela base do Fluminense como hiato em sua história pelo Alvinegro. Mas foi pelo Glorioso que iniciou a carreira, ainda em 1939.

A estreia foi num 21 de dezembro, em partida contra os argentinos do San Lorenzo. Foi uma tragédia. O Botafogo levou 5 a 1. Heleno foi substituído ainda no primeiro tempo. Ficaria para a temporada seguinte a comprovação do talento indicado pelo jogador nas areias de Copacabana e nas categorias inferiores do Bota. Em seu terceiro jogo, na vitória de 2 a 0 sobre o São Cristóvão, em 28 de abril de 1940, ele marcaria os dois gols. Faria outros três ao longo da temporada – bem menos do que os 30 que anotaria em 41, dos 34 que faria em 42, dos 24 que marcaria em 43 e 44, dos 22 que registraria em 45, dos 42 (em apenas 39 jogos) que marcaria em 46 e dos 19 deixados em 47.

O porém é que Heleno não comemorou um título sequer pelo Botafogo. E, em parte, por culpa dele. Quanto melhor jogava, pior tratava os colegas. Era odiado por parte deles. O ambiente era turvo.



Promiscuidade gera doença, que gera loucura

Contavam-se nos dedos as figuras tão célebres quanto Heleno no Rio dos anos 40. Ele tinha dinheiro, fama e beleza. Pertencia ao “clube dos cafajestes”, grupo de jovens endinheirados e rebeldes. Colecionava mulheres, incluindo as vedetes da época. Levava uma vida promíscua. Do prazer, tirou sua ruína.

O jogador contraiu sífilis, só descoberta em estágio avançado. Para piorar, adquiriu vício em lança-perfume. Cheirava éter. A combinação foi explosiva. Heleno, que já tinha uma personalidade das mais instáveis, começou a dar sinais de loucura – um dos reflexos da doença.

As ações do craque passaram a ser mais radicais. Em Buenos Aires, onde foi defender o Boca Juniors depois de deixar o Botafogo, entrou em campo para um treinamento vestido de sobretudo. Argumentou que estava frio. De volta ao Rio, após passagem apagada por Buenos Aires, resolveu imitar John Wayne ao pegar um revólver e, com ele, tentar acender um fósforo preso nos dedos do pé.

Heleno teria outra experiência internacional. Por duas temporadas, defendeu o Junior Barranquilla na Liga Pirata, com o futebol colombiano vivendo momentos de euforia financeira. Chegou lá como ídolo. Foi protagonista de repetidas crônicas de Gabriel García Márquez, na época um jovem jornalista. Mas saiu, nenhuma novidade, por baixo.

Vingança do destino

O destino também soube ser cruel com Heleno. Inclusive dentro de campo. É um azar sem tamanho que o mundo tenha entrado em guerra justamente no auge do goleador. O futuro do futebol poderia ser outro se os conflitos não tivessem impedido a realização das Copas de 1942 e 1946. Heleno fatalmente disputaria pelo menos uma delas – ambas, provavelmente.

Mas havia a Copa de 50, a construção do Maracanã, a esperança de consagração. Quando voltou ao Brasil, Heleno estava convicto de que jogaria o Mundial em casa. Mas ele já era outro atleta. E o comandante da equipe nacional era Flavio Costa, que havia comido o pão que o diabo amassou na convivência diária com o jogador no Botafogo. O craque ficou fora da Copa. Depois dela, ao reencontrar o treinador, sacou uma arma. Acabou apanhando dele.

- Perto da morte, o Heleno falava muito sobre futebol. Ele ficava repetindo as mesmas histórias o tempo todo. Uma coisa que ele queria muito era jogar a Copa de 50. Mas ele já não estava bem – comenta Herilene, hoje com 69 anos, sobrinha de Heleno.

Heleno só jogaria uma vez no Maracanã. E foi justamente sua última partida como jogador profissional. Defendendo o América pela primeira e derradeira vez, ele ficou 25 minutos em campo até ser expulso por ofender seus colegas de time. Enquanto esteve no gramado, fez quase nada: um ou outro drible, exceção em um dia em que Heleno tinha o olhar perdido, como se vivesse um sonho. Ou um pesadelo.

No dia seguinte, o Jornal dos Sports escreveria que Heleno parecia ser um caso “exclusivamente de hospício”. O texto foi, ao mesmo tempo, cruel e profético.

Heleno entre amigos em 1948, pouco mais de uma década antes de morrer


Ver o Botafogo campeão e ser campeão com o Vasco

Bastou Heleno sair para o Botafogo conseguir aquilo que não conseguira com ele. Foi campeão estadual. Ao saber da conquista, o jogador chorou. Argumentou que não era por inveja: era por fanatismo ao clube.

A diretoria alvinegra usou seu raciocínio lógico quando Heleno voltou da Argentina e se colocou à disposição para ser novamente atleta do Glorioso. Pensou o seguinte: com ele, quase meia década sem títulos; sem ele, conquista estadual. O Botafogo, quem diria, não quis Heleno.

Mas o Vasco quis. Em uma passagem de altos e baixos, o atacante ganhou o Campeonato Carioca de 1949. A última partida, com o título já assegurado, foi contra o Botafogo. Heleno deu passe para gol e reclamou que foi caçado pelos ex-colegas de time.

Uma semana depois, em excursão ao Rio Grande do Sul, foi substituído em partida contra o Renner. Estava xingando os colegas. Acabou dispensado. Nunca mais vestiu a camisa do Vasco.

O título pelo Cruz-Maltino não foi o único da carreira de Heleno. Com a Seleção Brasileira, ele ganhou a Copa Roca de 1945 e a Copa Rio Branco de 1947.



O fim

Uma das músicas preferidas de Heleno de Freitas era “My foolish heart”, composta por Ned Washington e Victor Young. Ela fala dos cuidados que um coração bobo precisa ter para não ser despedaçado. Heleno tinha um coração bobo. E ele foi despedaçado pelo futebol. Quando Heleno não teve mais a bola, perdeu também a vida.

Antes, congelou corações. Especialmente o de Ilma, sua única esposa. Ela não suportou os desmandos do marido. Com um filho de apenas um ano a tiracolo, fugiu de casa. O pequeno Luiz Eduardo nunca mais veria o pai vivo. Só saberia dele quando de sua morte, em 8 de novembro de 1959.

- Se meu pai parasse de jogar, morreria. Quando ele acabou para o futebol, também acabou para a vida – diz o filho de Heleno.

Antes de ser internado em um sanatório, onde deixaria a vida, Heleno passou dois anos na casa do irmão, Heraldo. Lá, passou bom tempo brincando com os sobrinhos. Gostava de jogar gamão. As crianças sempre perdiam. E não tinham como ganhar. Era só ele quem mexia nas peças.

Heleno passava horas e horas conversando. De madrugada, ia aos quartos das crianças, sempre observado por adultos. Entrava lá e cobria os pequeninos, temeroso de que estivessem com frio. Ele criava histórias, repetia delírios. Estava louco.

- Ele sempre falava de um gigante, um homem que arrancava árvores com as mãos. Não entendíamos o que era – lembra Helenize, 66 anos, sobrinha de Heleno.

O ex-jogador tinha surtos quase cômicos. Chamava as crianças para dar socos nas paredes. As mãos dele não se feriam com os golpes. Certa feita, pegou a motocicleta de um farmacêutico, foi até um morro da cidade e desceu de lá sobre a moto – de pé.

Conforme avançava a sífilis, aumentava a insanidade de Heleno. E seguia o vício. A família dele teve que percorrer as farmácias da cidade para pedir que não lhe vendessem éter. Por fim, decidiu interná-lo.

Em um sanatório de Santarém, cidade do interior mineiro, Heleno passaria os últimos anos de vida. O andar do tempo aumentaria a loucura. O craque, conforme mostram cartas trocadas entre os médicos do sanatório e familiares do ídolo botafoguense (presentes no livro de Marcos Eduardo Neves), ia piorando aos poucos. Chegou ao limite. Passou a imitar sons de motores da manhã à noite. Comia coisas que encontrava pelo chão – inclusive pedaços já usados de papel higiênico. Catava pedaços de cigarro – mesmo que tivesse carteiras inteiras à disposição. Não tinha mais condições de conviver em sociedade.

Antes, seguia respirando futebol. Fora de peso (e de si), ia ver os treinos do Olimpic, clube local. Certa feita, em 1955, pediu para jogar. Foi criado um teatro. O zagueiro foi orientado a facilitar o gol. As poucas pessoas presentes simularam ser uma torcida. Por alguns instantes, em uma cena de tristeza e beleza quase gêmeas, o gênio voltou a seus tempos de glória.

Difícil mesmo foi perceber que eles haviam terminado. Com a carreira já encerrada, antes de ser internado, Heleno passava os dias grudado no clube que amava. Frequentava o vestiário do Botafogo. Pedia dinheiro emprestado aos ex-colegas – inclusive aos desafetos. Via os treinos cambaleante, dopado de éter.

Quase morreu ali. Foi encontrado desmaiado por funcionários. Havia tentado se eletrocutar na chave de luz do clube.

Em seus últimos anos de vida, Heleno pouco mencionou a ex-mulher e o filho. As sobrinhas dele dizem que jamais ouviram uma palavra sobre o assunto sair de sua boca. No sanatório, ele teria falado de Luiz Eduardo algumas vezes.

- Ele falava muito sobre futebol, mas nunca falava da mulher e do filho. Parece que apagou isso tudo da cabeça dele – diz Herilene, sobrinha do craque.

- Para o Heleno, a coisa mais importante do mundo era ele. Ele e o Botafogo. Azar se tinha filho, se tinha mulher. Era um cara sozinho, solitário. Ele ficou louco, e a mulher percebeu isso. Fugiu até para preservar o filho – opina Marcos Eduardo Neves.

Esboços de Heleno

Luiz Eduardo passou a vida tentando descobrir quem era seu pai. O nome de Heleno era quase secreto depois de Ilma voltou a se casar. Com o passar dos anos, o menino foi criando a personagem. Perguntava a botafoguenses se eles sabiam quem havia sido o grande centroavante dos anos 40. Levou um golpe quando um taxista respondeu que Heleno havia morrido louco.

Para Luiz, ver Rodrigo Santoro no cinema, na pré-estreia do filme, foi o ponto final em uma busca que parecia não ter fim. Ele enfim conseguiu criar a imagem de seu pai.

- As pessoas me contavam as histórias. Eu ia montando tudo. Aí veio o filme. Para mim, é um marco. É o início de uma nova vida, porque passei muitos anos procurando saber quem havia sido o Heleno.

Mas é difícil saber quem foi Heleno.

- Não tem como desvendá-lo. Tenho medo de que este seja o grande livro da minha vida, justamente por tudo que envolve o Heleno. Ele transcende o futebol – afirma o escritor de “Nunca houve um homem como Heleno”.

- Heleno era o super-homem de Nietzsche, uma pessoa que só via sentido em viver o máximo, em se dar 100%. Ele não tolerava mediocridade – resume Rodrigo Santoro no material de divulgação do filme.

Mais de 50 anos depois da morte de Heleno, Luiz Eduardo desenha a imagem do pai que ele jamais conheceu.

- Ele foi uma pessoa difícil de se lidar, fácil de se amar, fácil de se odiar. Ele era oito e 80. Ou se gostava dele, ou não se gostava. Ele falava o que vinha na cabeça e não se preocupava com a dor dos outros. Ele teve o temperamento de um gênio. Foi um cometa.

Heleno de Freitas, o sujeito de mil adjetivos, o mito dos anos 40, morreu em estado quase vegetativo. Mal se mexia. Mal balbuciava as palavras sem nexo de antes. Foi encontrado em seu quarto, por um enfermeiro, em uma manhã de domingo.

Justamente em um domingo, sinônimo de futebol.



Fonte: GloboEsporte.com