Uma longa caminhada
Com perseverança para encarar uma rotina extenuante de exercícios de reabilitação, o treinador Ricardo Gomes se recupera a passos largos de um AVC que quase lhe tirou a vida. Ele já anda sem muletas, dirige o carro e, com voz pausada, revela seu plano de voltar ao trabalho em julho
Uma dor de cabeça repentina e intensa, seguida de um formigamento nas costas, foi o primeiro sinal. Ao caminhar até o banco de reservas, o treinador Ricardo Gomes percebeu que o lado direito do corpo não respondia a seus comandos. De imediato, as atenções saíram do campo do Engenhão, onde sua equipe, o Vasco, enfrentava o arquirrival Flamengo naquele domingo, 28 de agosto do ano passado, e se voltaram para a beira do gramado. Atordoado, mas sempre consciente, o técnico disse ao médico da equipe, Fernando Mattar, que estava tendo um acidente vascular cerebral (AVC). Tamanha convicção se baseava no histórico clínico da família: seu pai morrera em decorrência dessa lesão e ele próprio havia sofrido uma isquemia em fevereiro de 2010. Levado de ambulância para um hospital a dez minutos do estádio, Ricardo recebeu o diagnóstico de um derrame gravíssimo e se submeteu, na sequência, a uma delicada cirurgia com três horas de duração. Na luta pela vida, pesaram a favor dele a rapidez do atendimento e seu bom estado atlético. “Lembro perfeitamente de tudo até o momento em que fui sedado”, revela ele, com indisfarçável emoção.
De lá para cá, em pouco mais de 200 dias de convalescença, Ricardo vem apresentando uma recuperação notável, que surpreende toda a equipe envolvida em seu restabelecimento, entre médicos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos. Os avanços saltam aos olhos. Ele consegue caminhar sem a ajuda de muletas e dirige sozinho seu carro, de câmbio automático. No fim de novembro, já havia dispensado os dois enfermeiros que o auxiliavam diuturnamente nos afazeres básicos, como se alimentar, tomar banho e lembrar o horário dos remédios. É assim, com independência, que ele cumpre uma rotina draconiana de exercícios, interrompida somente aos domingos. A agenda começa às 9 horas, com uma sessão de fonoaudiologia. Uma hora e meia depois, segue para a preparação física, feita em um centro de reabilitação equipado com aparelhos de ginástica e piscina. Após um intervalo para o almoço, a tarde é toda dedicada à fisioterapia. “Não tenho pressa nenhuma”, diz ele, que tem 47 anos. “Quero melhorar 100% e voltar à vida que eu tinha antes.”
O excruciante trabalho divide-se em duas frentes: uma visa a recuperar em plenitude seus movimentos físicos e a outra tem como objetivo reabilitar sua fala. Embora apresente avanços visíveis a cada dia, Ricardo ainda se exprime pausadamente e se engasga com algumas palavras. O som da letra “r” lhe é particularmente difícil de emitir. Curiosamente, as primeiras tentativas de comunicação por parte do paciente foram palavras soltas em francês, que precisaram ser traduzidas aos enfermeiros por Diego, seu filho mais velho, que morou com ele em Paris, Bordeaux e Mônaco, onde o pai foi jogador e treinador. Esse tipo de confusão é mais comum do que se imagina em quem convalesce de um derrame. Numa analogia vaga, é como se a mente tivesse uma rota para chegar a cada idioma. “O AVC compromete alguns caminhos do cérebro, e, no caso de Ricardo, o acesso mais fácil à linguagem era o francês”, explica a fonoaudióloga Elizabeth Ribeiro, que iniciou o tratamento com ele quatro dias após a cirurgia. Apesar da melhora do quadro, até hoje Ricardo profere termos em francês ou com carregado sotaque de Portugal, outro país onde a família residiu. No começo, a terapeuta usava cartões com palavras e imagens para procurar estimulá-lo. Agora, o desafio é fazer com que ele consiga se expressar com fluência e dê a inflexão correta às frases. Ela filma as conversas e depois lhe mostra os pontos em que errou ou deixou de usar a entonação adequada. “O mais importante é que Ricardo percebe quando tropeça e se corrige, algo impensável quatro meses atrás”, conta Elizabeth.
Nenhum órgão do corpo humano é tão enigmático e fascinante quanto o cérebro, que pesa apenas 1 quilo, mas desempenha diversas funções. Seus impulsos elétricos bombeiam o coração, comandam os movimentos do corpo e processam os cinco sentidos. Nenhum outro órgão instiga tanto os pesquisadores, que buscam entender seu complexo funcionamento e desvendar um pouco mais os meandros da mente humana. Nas últimas décadas, o aprimoramento de tecnologias como os exames de imagem contribuiu para que a neurociência desse um salto gigantesco. Graças a esses avanços, foi possível fazer rapidamente um mapeamento detalhado da área lesionada no cérebro de Ricardo. Na ocasião, constatou-se que o treinador teve um AVC do tipo hemorrágico, o mais grave deles, que ocorre quando um vaso se rompe e despeja sangue na caixa craniana, alterando todo o sistema nervoso. Na cirurgia de emergência, o médico José Guasti drenou 80 mililitros de sangue da cabeça do técnico, o equivalente a uma xícara e meia de café. “A hemorragia só acontece em 20% dos acidentes vasculares, e essa quantidade de sangue é ainda mais rara”, afirma Guasti, contrastando a gravidade do quadro com o pronto restabelecimento do paciente.
Uma enfermidade desse grau geralmente traz sequelas de difícil reversão. Ricardo tem consciência da batalha e reúne energia para vencê-la. “Ele possui a gana do atleta de superar limites. Trabalha duro e nunca reclama”, destaca o clínico geral Fabio Guimarães Miranda, que o assiste desde o primeiro dia. Além da disfunção na fala, ele teve comprometidos os movimentos do lado direito do corpo. Recuperá-los completamente representa um enorme desafio. É como se a pessoa zerasse seus registros e tivesse de reaprender todos os movimentos, tal qual um bebê. Desde que teve alta hospitalar, após três semanas de internação, ele repete diariamente, sob a supervisão de um profissional, uma sequência de exercícios aparentemente banais, como pentear o cabelo, escovar os dentes, levantar-se da cadeira e subir uma escada. Três vezes por semana, pega mais pesado numa sala de musculação. Na flexão de pernas na cadeira extensora, consegue levantar 25 quilos, cinco vezes mais que há três meses. Dá tiros de trinta segundos na bicicleta ergométrica regulada no nível 6 de resistência, numa tabela cujo máximo é 10. Na esteira, habilita-se a trotes leves. A despeito da melhora acentuada proporcionada pelo tratamento, Ricardo ainda enfrenta certas restrições. Sua sensibilidade não foi totalmente recuperada: de olhos fechados, ele não sabe dizer o formato do objeto que segura nem em que posição está sua perna. Consegue abotoar a camisa e amarrar os sapatos, mas ainda não é capaz de escrever ou cortar uma carne. Até que ponto ele vai evoluir é uma incógnita. Segundo os médicos, o treinador pode recuperar todos os seus movimentos em plenitude, com a possibilidade, inclusive, de voltar a praticar esportes. Quanto à fala, no entanto, as previsões são menos otimistas, e eles acreditam que ficará alguma sequela.
Todo esse esforço obstinado se deve a um objetivo claro que Ricardo tem em mente. Ele quer voltar a treinar uma equipe de futebol, como faz desde 1999, quando uma persistente artrose no joelho direito o levou a aposentar as chuteiras e tornar-se técnico. “Meu plano é retornar em julho. Se vai acontecer ou não, só saberemos até lá”, diz ele, um profissional conhecido pela ótima conduta dentro e fora do campo, um caso raro de unanimidade positiva no futebol. Enquanto faz a contagem regressiva, o treinador aproveita para curtir a família - a mulher, Cláudia, e os filhos Diego, 24 anos, e Ana Carolina, 20 -, que mora num condomínio de alto padrão na Barra da Tijuca. Depois do susto, tomou uma decisão providencial: voltou a tomar o remédio para hipertensão, procedimento que havia abandonado, num desleixo que pode ter sido fatal para o AVC, somado ao stress inerente à sua atividade. Para manter-se conectado ao trabalho, conversa diariamente com o ex-auxiliar Cristóvão Borges, um amigo de longa data que assumiu o time do Vasco na sua ausência. Jura que pouco opina. “Quem manda é ele. Cristóvão é quem sabe o dia a dia do clube e tem de suportar a pressão se os resultados não vêm”, afirma. Seja em casa, seja nas sessões de terapia, ele tem visto futebol o tempo inteiro. “Acompanho tudo: campeonato português, francês, brasileiro, série B...” É bom os adversários abrirem o olho. A exemplo de seu xará Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra que retomou a Terra Santa dos muçulmanos no século XII, Ricardo Gomes tem bravura que permite prever novas conquistas.