Nenê relembra viagens no 473 para jogar basquete no Vasco

Terça-feira, 06/03/2012 - 11:16

O olho comprido apontava em direção ao tênis bacana, ao carrão que parecia tão longe do alcance de suas mãos. A realidade passava longe do luxo para aquele menino de São Carlos, que todos os dias pegava o 473 para ir treinar no Vasco. Naquele time de estrelas comandado por Hélio Rubens, Nenê começou, aos pouquinhos, a mostrar seu valor. Tinha fome de bola, mas pressa também. Resolveu então fazer as malas, partir para os Estados Unidos e tentar a sorte na NBA. Deu de ombros para todos os que disseram que não conseguiria entrar. A fé no sonho era maior. Em 2012, completa sua décima temporada na liga profissional americana feliz com o reconhecimento, e ainda querendo jogar outras cinco.

Aos 29 anos, o pivô do Denver Nuggets já tinha tudo o que um dia cobiçou. Nesse período, caiu, se levantou, venceu um câncer no testículo, se casou, ganhou alguns fios de cabelos brancos que são prontamente arrancados, mas ainda faltava algo. Faltava o filho, que ele não sabia se poderia ter nos braços depois da doença. Há 7 meses, Mateus alegra a casa da família Hilário e é chamado pelo pai de presente de Deus. Para poder vê-lo nascer e também por questões contratuais, Nenê decidiu pedir dispensa da seleção brasileira, que foi a Mar del Plata brigar pela classificação olímpica. Acompanhou os jogos, se emocionou com o fim do longo jejum de 15 anos, ouviu e leu as críticas sobre sua ausência, e achou melhor se calar.

Lá atrás, nos tempos de São Januário, a timidez e o medo de falar o português errado faziam Nenê evitar as entrevistas. Alguns anos depois, passou a se posicionar mais, tendo Romário com inspiração. Aprendeu que ousadia dentro e fora de quadra tem um preço. Por isso, passou a ser amado por uns e nem tanto assim por outros. E assim, segue em frente, mesmo admitindo ter ficado chateado algumas vezes com o julgamento das pessoas. Em entrevista ao GLOBOESPORTE.COM, disse que ainda tem um velho sonho a ser realizado: quer defender o Brasil nos Jogos de Londres, a partir de julho. Vem tratando a fascite plantar e a lesão na panturrilha para poder voltar a jogar bem e esperar pela decisão de Rubén Magnano.

- Disputar as Olimpíadas é um sonho, sim!

Há dez anos você deixava o Brasil atrás do sonho de jogar na NBA. Como foi chegar a um país novo, como um jogador desconhecido? Que lembranças, boas e ruins, você tem quando olha para trás?

Eu entendo que as coisas boas vêm. Como cristão sei que as ruins são para fortalecer, para fazer a gente crescer. Nesse tempo, aconteceram muitas lesões, inveja, críticas, e isso tudo me fortaleceu e deu experiência. Se não passasse por isso eu não teria hoje como aconselhar outras pessoas a sobreviver a tudo. Acho que depois dessas temporadas, eu faria tudo de novo. Talvez não passasse por coisas que passei. Achei que fui uma marionete por não saber a língua ou me locomover. E várias pessoas tiraram proveito, perdi muitas coisas, perdi dinheiro... Mas da experiência negativa tirei coisas positivas e passei a abrir mais os olhos. Se não fosse pela fé poderia ter cometido coisas mais sérias. Tive que me estruturar espiritualmente e hoje estou firme e forte. As coisas para mim sempre foram muito difíceis.

Naquela época você imaginou que poderia chegar a ser um pivô respeitado e cobiçado como é hoje?

Lembro muito bem que meu pastor e amigo, nos tempos de Vasco, disse que eu ia ser um grande jogador tendo fé naquilo que não se vê. Fui com fé e com coragem, sem esperar que ninguém acreditasse em mim. Era uma promessa grande para um menino de 17, 18 anos se imaginar na NBA e conquistar espaço e respeito. Tomei a decisão de vir para os EUA e tentar. Todos falavam que eu não ia conseguir. Mas eu sou assim... se falarem que eu não vou conseguir alguma coisa, aí é que vou atrás. É uma virtude que Deus me deu, essa ousadia. Ele gosta de pessoas de coragem. Tenho fraquezas também, mas Ele me escolheu para isso.

O que mudou no seu jogo durante esse período?

Até hoje sinto nervosismo. Se não sentir isso não me preparo. Escuto música gospel e fico pensando o que vou fazer em quadra. Dentro dela, o meu sorriso fecha e fico que nem um robô. Já joguei com emoção durante muitos anos, hoje sou mais estável, mais frio. Que nem o Tim Duncan. Me espelho nele. É um dos melhores da liga e joga centrado. Ele é o cara. Sempre gostei dele e tive oportunidade de conversar em quadra. Sou um cara que observa muito em quadra e tento extrair algo daquelas pessoas. Na minha carreira, aprendi a fazer troca de mãos, gancho e enterrada vendo o Vargas. Com o Sandrão (Sandro Varejão) aprendi a pegar a bola e chutar de um espaçozinho pequeno. Mingão era chato e atrevido. Com Duncan, o posicionamento dos pés. Do Juwan Howard tirei o porte físico e o modo de pensar e ler o jogo. O arremesso é meu mesmo (risos).

Em 2010, durante a preparação para o Mundial, você disse que faz o possível para não esquecer suas raízes. Que lembra do ônibus que pegava, dos ex-jogadores do Vasco...

Eu costumo zoar o Alex (ex-jogador do Vasco e seu braço direito nos EUA). Todo mundo tinha o sonho de ir para a América, e hoje temos uma boa condição de vida, filhos e mulheres americanas. Mas lembro sempre do ônibus que eu pegava todos os dias para treinar. Aquele 473 tem muita história. E Alex ia comigo às vezes. Eu ia para o treino com a bolsinha do Vasco, um MP3 pequeno, boné e bermuda. E os caras indo de carrão. Era uma viagem de 45 minutos onde eu via as coisas belas do Rio e também as favelas. Foi uma lição que vale até hoje. Acho que se você sabe se manter humilde, não tem como nada vir a corromper a pessoa.

Você nasceu em uma família humilde, teve uma infância difícil. Hoje vive do basquete, ganha milhões por temporada e é pai. Como tem sido essa nova experiência na sua vida e que lições pretende ensinar ao seu filho Mateus?

Humildade. Com humildade a hora vem, o sucesso vem, a riqueza vem, o reconhecimento vem. Vou ensinar que tudo tem um preço e exige sacrifício. Nada vem de graça e é preciso lutar. Vou contar a história da vida real, de que o pai trabalhou muito forte. De que é preciso ter os pés no chão, ter humildade e fé sempre.

Em algum momento, quando recebeu a notícia de que estava com câncer no testiculo, temeu que não pudesse formar uma família ao lado de Lauren?

Sim. Mas sabia que Deus ia me usar de uma forma, só não sabia como. Passei por um câncer, voltei a jogar após quatro meses e fui aplaudido de pé por mais de 20 mil pessoas no primeiro jogo. Não vou esquecer disso nunca. Depois de passar por tudo, várias pessoas venceram a doença vendo o meu exemplo. Teve um menino de 4 anos, lourinho de olhos azuis, que teve três tipos de câncer e um deles era na cabeça. Quase morreu na quimioterapia, mas eu falei com ele antes: "Coma feijão, vegetais e beba muito leite". Ele estava sem fome quando fez e pediu à mãe para me ver. E ele venceu. Carrego a foto dele no meu celular. Teve um outro, de 25 anos, que teve quatro. E eu disse que queria vê-lo de cabelo longo de novo. Para eles eu sou uma milagre vivo, que superou as adversidades e sem saber virei exemplo. Foi muito difícil. Eu soube que o resultado do meu exame tinha dado positivo quando estava dando uma clínica para crianças. Desliguei o telefone e segui o que estava fazendo até o fim. Mas depois fiquei desesperado. Eu chorava, achava que tinha tanta gente ruim no mundo e por que logo eu tinha sido que passar por aquilo? Eu não tinha certeza de nada, mas depois entendi que grandes bênçãos vêm com grandes lutas. Em toda a minha vida tudo teve seu tempo, de acordo com a vontade do Senhor.

A proximidade do nascimento do seu filho foi o motivo que o fez pedir dispensa da disputa da Copa América de Mar del Plata?

Claro! A coisa mais importante naquele momento era meu filho. Sou uma pessoa de princípios, e meu primeiro filho era uma coisa que eu poderia não ter tido (por causa do câncer). As pessoas às vezes não entendem, mas eu queria ver aquele presente nascer e crescer. E eu também ia ser agente livre, tinha um problema contratual, não ia ter quem cobrisse o seguro.

Você mais uma vez foi alvo de críticas da torcida, de jogadores e até de dirigentes por não ter ido a uma competição com a seleção (em algumas vezes por causa de lesão e em outras por alegar problemas particulares ou com antiga gestão da CBB). Como tem sido lidar com essa situação?

Olha, eu sou fã do Romário... porque ele é uma pessoa que não deve nada a ninguém e fala mesmo. A minha reação foi ficar quieto. As pessoas que me conhecem sabem que sou muito profissional e que tudo o que faço é consciente. Não tem como você jogar um campeonato com lesões, problemas familiares e contratuais. Claro que fico chateado por ver muita gente falando do que não sabe. Mas todo mundo um dia passa por isso...

Você acompanhou a campanha da seleção que colocou fim ao longo jejum olímpico? Como reagiu ao ver que sua geração conseguiu recolocar o Brasil nos Jogos?

Eu estava nas montanhas com a minha esposa, assistindo ao jogo da classificação no hotel. Estava tendo um casamento lá embaixo e eu vendo no computador. Quando conseguimos a vaga me deu uma emoção por dentro porque por todos esses anos nós jogadores queríamos muito isso. E conseguimos. Eu não estava lá, mas me emocionei. Espero que as pessoas comecem a se juntar para melhorar o basquete no Brasil. Não adianta ir a uma edição de Olimpíadas e continuar o conflito, a inveja. É preciso aproveitar o momento para fazer o basquete crescer no país.

Disputar as Olimpíadas ainda faz parte dos seus sonhos? Acredita que terá chances de integrar esse grupo?

Com certeza é um sonho. Mas não adianta eu representar um país nas Olimpíadas ou no torneio que for se não estiver saudável e forte. Você tem que estar feliz e protegido. Se eu vou estar no grupo, não posso responder, porque não sou eu que escolho. O que sei é que o Rubén Magnano é uma pessoa de caráter, íntegra e que sabe separar emocional e as coisas que tem que ser feitas. Disputar as Olimpíadas é um sonho, sim.

O que você ainda carrega daquele Nenê de 10 anos atrás? Como e onde imagina estar daqui a mais 10?

Ah, eu estou com cabelo branco, cheio deles na barba. Arranco todos (risos). Mas continuo sendo um negão tipo A: bonito e sangue bom. Se eu não me valorizar, quem vai? (brinca). O que eu quero é ser a mesma pessoa de sempre. Não sei o que vou estar fazendo daqui a 10 anos. Talvez cuidando dos negócios em que investi. Vou querer estar no meio do esporte e louvando a Deus. Não, não como pastor porque cada um tem um dom, um chamado. No meu caso, Deus colocou o basquete no meu caminho e determinou que tudo o que eu passasse mudaria a vida das pessoas. No futuro, irei falar dos feitos, mas não virando um pastor. Mas eu gosto de música, toco contrabaixo e posso louvar assim. Mas fazer isso cantando, vou ter que melhorar um pouquinho a voz (risos).

Sonha que seu filho se torne um jogador de basquete quando crescer ou de futebol, como você tentou ser um dia?

Aqui eu acho que ele vai ser jogador de beisebol. Ele é forte e vai mandar as bolinhas para as nuvens (risos). O que eu quero mesmo é que ele seja feliz e que tenha integridade.



Fonte: GloboEsporte.com (texto, foto), Youtube (vídeo)