“Eu era mais feliz quando tinha raiva”, diz Heleno de Freitas pela voz de Rodrigo Santoro. Verdade. O Heleno de Freitas da vida real era muito mais feliz antes de a sífilis e o éter transfomarem raiva em loucura. Sua história, das mais dramáticas vividas por um jogador de futebol no Brasil, é a de um ídolo — bonito, elegante, inteligente, rico, famoso, excepcionalmente bom de bola — que em pouco tempo perdeu tudo isso para viver seus últimos anos entre as paredes de um sanatório em Barbacena. Nisso, e pela consciência que tinha de sua derrocada, a história de Heleno é mais triste que a de Garrincha.
Sua raiva era a de um craque diferente, pela vontade de ganhar, pelo desespero com que buscava a perfeição, pela intolerância com os pernas de pau, pela aversão aos adversários desleais e pela reação explosiva aos árbitros incompetentes. O futebol era a sua vida. E quando o domínio da bola começou a perder-se nos pés do homem de nervos estropiados, foram-se a raiva e a felicidade.
Na época, chamavam-no de “temperamental”, poucos percebendo, por trás dos destemperos com os adversários e com os próprios companheiros, vestígios da paralisia progressiva que começava a miná-lo.
“Eu sou a própria vontade de vencer”, diz Heleno novamente pela voz do ator que o representa soberbamente no filme de José Henrique Fonseca. Um filme que enfatiza a derrocada do ídolo em relação à glória de Heleno como centroavante clássico, de passes e chutes precisos, excelente cabeceador, titular do Botafogo, da seleção carioca e do escrete brasileiro, no tempo em que se escrevia scratch.
Em mais de uma cena, fica-se sabendo do sonho (na verdade, obsessão) de Heleno em relação à Copa do Mundo que se realizaria no Brasil em 1950. Outra vez, verdade. Heleno tinha sido um dos grandes nomes do Campeonato Sul-Americano de 1945, no qual, com Tesourinha e Zizinho de um lado, Jair e Ademir do outro, formara um ataque “cheio de luzes”, como o definiu a revista argentina “El Grafico”. Tinha cumprido, também, excelentes temporadas de 1946 a 1949. Neste último ano, com a camisa do Vasco, pelo qual sagrou-se campeão invicto (triste ironia para um botafoguense que jamais passara de vice em seu clube de coração). Enfim, com Leônidas da Silva perto de aposentar-se e sem outro centroavante de seu nível à vista, Heleno tinha todo o direito de sonhar.
A quem assiste ao filme — sem ter tido a oportunidade de viver aquela época — talvez ocorra uma pergunta: não fosse a briga com Flávio Costa, técnico do Vasco e da seleção brasileira (briga de revólver que o filme revive), será que Heleno teria realizado seu sonho? E, com ele no ataque, o Brasil teria melhor sorte?
Resposta negativa para as duas perguntas. A briga com Flávio já era atestado de que a raiva de Heleno dera lugar à loucura. E o admirável craque que ele tinha sido já saíra de campo para não mais voltar. No final, no sanatório, sequer lhe restavam as lembranças de quando fora feliz.