Até o início dessa Copa Africana das Nações, poucos brasileiros já tinham ouvido falar no nome do técnico Gílson Paulo. Nascido no Rio de Janeiro, ele rodou um bom tempo por clubes do interior do estado antes de pendurar as chuteiras e assumir a função de treinador. Reconhecido pelo trabalho desenvolvido nas categorias de base do Vasco, Gilson fala a língua da boleiragem, embora seu perfil não se enquadre necessariamente no padrão da categoria. Calmo, o técnico costuma ser econômico nas palavras, estando sempre cercado de pessoas que refletem sua humildade.
Alheio às polêmicas envolvendo o regime da família Obiang, ele assumiu a seleção de Guiné-Equatorial as vésperas dessa Copa Africana das Nações, preocupado exclusivamente com o futebol. Dessa forma levou um time desacreditado a uma improvável classificação para as quartas-de-final, motivos que o fizeram deixar de lado a timidez para vibrar efusivamente. Não por acaso se tornou um dos personagens centrais do torneio, ajudando a Nzalang Nacional a ganhar 44 posições na última atualização do ranking da FIFA.
Em entrevista exclusiva ao Futebol de Seleções, o técnico falou um pouco mais sobre os bastidores desse trabalho, que a partir de agora estará voltado para as eliminatórias da CAN 2013 e da Copa do Mundo de 2014. De passagem pelo Brasil, ele revelou durante essa conversa que pretende trazer a seleção para se preparar por aqui e que também estará viajando nos próximos meses por França, Inglaterra e Alemanha em busca de mais jogadores com ascendência guinéu-equatoriana. Sinal de que procura novos trunfos para continuar surpreendendo, provando ao mundo que os resultados positivos obtidos nesse continental africano não foram obra do acaso. Confira:
Gílson, inicialmente gostaríamos que você falasse um pouco mais sobre sua ligação com o futebol. Como começou na modalidade?
Como atleta joguei nas bases de Campo Grande, Bangu, me profissionalizando no São Cristóvão Futebol Clube.
E como surgiu o convite para dirigir a seleção da Guiné-Equatorial?
Surgiu da vontade do presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, de ter um treinador brasileiro. Fui indicado pelo treinador Antônio Dumas, técnico que fez um bom trabalho em alguns países da África e consultado, indicou-me para assumir a seleção guineana.
Até surgir essa oportunidade, o que você sabia sobre esse país? Quais foram as maiores dificuldades ao aceitar esse desafio?
A distância da família, porque com idioma tive algumas facilidades.
Seu antecessor, o renomado francês Henri Michel, abandonou o cargo as vésperas dessa Copa Africana das Nações disparando contra os dirigentes locais. Segundo ele, havia interferência no gerenciamento da equipe. Qual o clima que você encontrou em sua chegada? Como era a sua relação dos dirigentes locais?
Encontrei um clima favorável, calmo e tranquilo. Tudo normal.
Quais foram os maiores desafios ao se traçar o planejamento para esse continental restando poucos dias para o início do torneio? Você procurou dar continuidade ao trabalho que vinha sendo desenvolvido ou adotou uma linha própria na condução da Nzalang Nacional?
Todo treinador tem o seu método de trabalho e eu não sou diferente. Observei os guinéu-equatorianos, os adversários e à partir daí, montei a minha estratégia.
Como você definiu a convocação para o torneio? Já conhecia os atletas?
Já encontrei os jogadores convocados. O que não tive lá foi tempo. Em duas semanas precisei treinar os atletas, observar os adversários e foi tudo muito corrido.
Entre alguns nomes ausentes em sua relação final para o torneio estavam o brasileiro naturalizado André Neles (que já passou por Atlético Mineiro, Benfica, Internacional e Palmeiras, mas atualmente está no futebol catarinense) e Benjamín Zarandona (veterano de 35 anos que joga na 3ª divisão espanhola, mas foi campeão europeu sub-21 com a Espanha em 1998). Chegou a considerar essas alternativas?
Não tive tempo de inventar, trabalhei com os atletas que estavam disponíveis no momento.
Muito se falou sobre a questão das naturalizações em relação ao selecionado guinéu-equatoriano. Quais os desafios em lidar com atletas que vinham de partes diferentes do mundo?
Não tive dificuldade em relação aos atletas, até porque, mesmo sendo de paises diferentes, todos são profissionais e experientes.
Qual foi a emoção da estréia em uma Copa Africana das Nações? Ouvir o hino do país que você está defendendo (e que também organizava a competição) desperta algum sentimento especial?
Não dá nem para explicar. A Copa Africana das Nações é uma das maiores competições entre seleções e a emoção de ver um estádio lotado, gritando os nomes dos seus ídolos e cantando o hino do seu país é inexplicável. Não tem como não se contagiar com a emoção da massa.
E como foi a emoção pela vitória contra a Líbia? Qual era a atmosfera do estádio e o clima nos vestiários?
A emoção foi muito grande. Em nossa conversa mostrei aos jogadores a importância de ganhar a primeira partida e do efeito psicológico que ele nos proporcionaria para garantir a nossa classificação.
Nesse jogo, o atacante Rodolfo Bodipo (um dos mais badalados da seleção) começou na reserva por estar se recuperando de lesão e ao entrar em campo acabou se contundindo definitivamente. Sua ausência fez muita falta para a equipe?
Sim. Rodolfo é um jogador técnico e experiente.
Ainda em relação à estréia de Guiné-Equatorial nessa CAN 2012, repercutiu internacionalmente a informação de que o ministro da agricultura Teodoro Obiang Mangue (filho do presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasolo), prometeu US$ 1 milhão de dólares como bicho pela vitória. Levando em conta que o país possui o maior PIB per capita da África, mas 70% da população vive abaixo da linha da pobreza, tal fato gerou diversas críticas negativas, sendo inclusive denunciado pela organização não-governamental ONE Francia, que tem entre seus fundadores Bono Vox e combate a pobreza extrema. Como o senhor avalia toda essa questão? Acha que a premiação influenciou de alguma forma a motivação do plantel?
Não teve influencia nenhuma no rendimento dos atletas porque todos são jogadores acostumados a ganhar bichos em seus clubes. Particularmente, não tive tempo de me dedicar a nenhum outro assunto que não fosse a preparação da equipe. Não conheço a política do país, ainda nem conheço o país. Por esse motivo, fica impossível me pronunciar sobre esse assunto.
Quanto a questão financeira, como é o investimento da federação local na seleção? As condições de trabalho são boas? A estrutura fornecida pode ser considerada ideal para as ambições do país?
Ainda não tive acesso à questão de investimento feito pela federação, mas posso garantir que os estádios são muito bons e que todo o necessário foi feito.
Voltando a falar dessa CAN 2012, Gílson... O país chegou ao continental como pior colocado no ranking da FIFA entre os demais participantes. A classificação era um objetivo plausível desde o início ou previamente a meta era não fazer feio jogando em casa?
Pela seleção ser considerada pequena, até o povo pensava em perder de pouco nos jogos, mas eu como profissional não posso entrar numa competição pensando em perder. Não haveria razão para estar lá se não fosse pensando em produzir um trabalho positivo.
A vitória contra Senegal, decisiva para a classificação, surpreendeu? Levando em conta que os Leões de Teranga eram os favoritos da chave, quais foram os maiores desafios na preparação da equipe para essa partida?
Só me preocupei em deixar os atletas concentrados na partida e de transmitir um clima de tranquilidade. Buscamos o tempo todo focar apenas as estratégias de jogo para cada adversário.
Vocês acabaram derrotados por Zâmbia no desfecho da 1ª fase. Quais as impressões que ficaram em relação ao país que viria a se sagrar campeão do torneio?
É uma equipe técnica com jogadores experientes, merecedores desse resultado final.
Após a classificação, como era o clima pelas ruas do país, Gílson? A população se mobilizou em relação à seleção? Como era a sua convivência com a torcida?
O clima era de euforia total. A população foi em massa a todos os jogos. Andando pelas ruas, pude receber o carinho dos torcedores, felizes e agradecidos. Pediam-me até para fazer fotos (risos).
Nas quartas-de-final, Guiné-Equtorial deu o azar de cruzar com a Costa do Marfim, grande favorita ao título, mas que acabou terminando na vice-colocação. Depois de um início promissor, a equipe não resistiu à força do adversário e acabou sofrendo seu pior revés no certame. Como o senhor avalia essa derrota? Quais foram os fatores decisivos na definição do placar? A melhor exibição de Drogba no torneio fez a diferença?
Na verdade não me senti derrotado, mas pecamos na marcação. Drogba sempre faz a diferença por se tratar de um jogador de muita qualidade.
Qual foi a repercussão da campanha na imprensa local, Gílson? O que estão falando de você aí na África?
Apesar de termos sidos derrotados, a ênfase foi o resultado alcançando e não a derrota em si. A imprensa local está tão feliz quanto à população.
A renovação do contrato com um merecido aumento mostra que os dirigentes locais estão satisfeitos com seu desempenho. Esse respaldo reforça a confiança para a sequência do trabalho? O sucesso atual pode aumentar as expectativas e consequentemente a cobrança pelos resultados?
O motivo dessa confiança não está baseado em grana e sim no trabalho que vinha sendo feito desde o inicio. Todo profissional é contratado para um objetivo e é natural esperar o resultado desse trabalho. Comigo não será diferente.
Em uma chave com Tunísia (que fez boa campanha nessa CAN 2012), além de Serra Leoa e Cabo Verde (que vem evoluindo nos últimos anos), quais são as perspectivas do seu time na caminhada rumo o mundial do Brasil em 2014? Como você avalia esses adversários? Acha que é possível sonhar com uma classificação inédita para a Copa do Mundo?
Serra Leoa usa de muitas variações durante as partidas e Cabo Verde, por ser um time mais lento, joga mais focado no contra-ataque. Temos uma caminhada difícil pela frente, porém, não impossível. Penso positivo e as minhas expectativas são as melhores.
Ano que vem, a Confederação Africana de Futebol passa a organizar seu continental em anos ímpares e teremos uma nova CAN. Sem vaga garantida como na atual edição, o senhor está confiante em mais uma boa campanha de Guiné-Equatorial?
Sim, teremos as eliminatórias da CAN em setembro e o nosso adversário deve ser o Gabão.
O senhor tem perspectivas de retornar ao futebol brasileiro? Surgiram novas propostas de emprego? Qual o planejamento para o futuro?
A minha meta e continuar trabalhando com futebol e tenho um ano de contrato pela frente. Por enquanto estou focado nisso. O meu objetivo é apenas realizar bem o meu trabalho. Já recebi proposta, mas ainda não considerei nenhuma. O que posso falar a respeito é que uma das propostas veio de um time brasileiro.
Para fechar: Recentemente, o Vasco da Gama se viu envolvido em uma tragédia com o falecimento do jovem Wendel Junior Venâncio da Silva, de 14 anos, que estava em testes no clube. De uma forma geral, Gílson... Como o senhor avalia as condições de trabalho nas categorias de base do futebol brasileiro? A estrutura implementada no país é a ideal?
Mesmo não estando no Brasil fiquei sabendo do acontecido e sou solidário aos companheiros do Vasco e a família do garoto. Acho que os trabalhos nas categorias de base dos clubes brasileiros sempre foram de boa qualidade, e os clubes sempre se preocupam com a formação dos cidadãos. O esporte de modo em geral é uma grande ferramenta de inclusão social, socialização das raças e de educação como um todo. Não existem fronteiras, principalmente para o futebol.
Encerrando, nós gostaríamos de deixar o espaço aberto para que você faça alguma consideração que não foi oportunizada. Qual a mensagem que o senhor deixa para os leitores do Futebol de Seleções?
Vou deixar aqui uma frase de Albert Einstein que traduz bem o reconhecimento ao meu amor e dedicação de anos ao futebol: “O único lugar aonde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”.
Fonte: Futebol de Seleções