Paixão pelo Vasco 'acompanha' torcedores até mesmo após a morte
Segunda-feira, 19/08/2024 - 01:38


Seu Octacílio da Conceição recebeu um recado claro do médico. Já nonagenário, tinha que parar de assistir aos jogos do Vasco. A paixão pelo clube era tão intensa que estava afetando sua pressão e pondo o coração em risco. Só que, como praticamente toda família é de cruz-maltinos, a TV seguia ligada quando o time entrava em campo. O patriarca não resistia e deixava o quarto para torcer (e sofrer) junto.

— Mas não foi do coração que ele morreu, não — esclarece sua filha Rose, explicando em seguida que foi uma pneumonia que levou o pai, há quatro anos.

De forma simbólica, o Vasco o acompanhou após a morte. No columbário do cemitério da Penitência, no bairro do Caju, uma faixa faz companhia à urna caracterizada com o escudo do Vasco, à sua fotografia (dentro de uma moldura com a cruz-de-malta) e a um quadro que emula a camisa do time. Estão lá também o fone de ouvidos e a capa do celular com o qual Seu Octacílio escutou muitos jogos.

Columbário é onde os familiares podem deixar a urna com as cinzas do morto. Ficam armazenadas em nichos na parede, fechados por uma tampa de vidro, o que permite ver o interior destes espaços. As famílias podem acrescentar o que mais quiserem e couber. Normalmente, põem foto, uma placa com o nome da pessoa e objetos que remetem a ela. Como referências às suas maiores paixões.

A partir da pandemia, as cremações cresceram enquanto opção. E os columbários vem sendo ocupados. A medida que isso ocorre, as referências futebolísticas começam a colorir os ambientes, quebrando a ideia de clima frio e melancólico.

No nicho onde está a urna de Luiz Francisco Moita, as cores que imperam são o verde, o branco e o grená. Quando ele morreu, a família não teve dúvidas do que fazer com o nicho. Pôs foto dele com filhos e neto no Maracanã (numa moldura do Fluminense), a camisa tricolor e o boneco de Germán Cano, que ocupava a cabeceira de sua cama.

Moita morreu em dezembro de 2022, aos 67 anos. Não teve tempo de ver o clube do coração campeão da Libertadores. Mas, na comemoração da família pelo título, foi como se estivesse presente.

— Minha sensação é que a herança do meu pai foi a paixão pelo Fluminense. Mesmo depois de falecido, fica passando para as gerações seguintes. Como o meu filho. Quando o avô faleceu, ele tinha só dois anos, não entendia nada. Mas agora decidiu ser tricolor. Quando o ouvi dizendo isso senti aquela emoçãozinha de entender que foi passado pelo meu pai — reflete a filha Ana Carolina.

Os objetos deixados ao lado das urnas representam a forma como as famílias gostariam de lembrar de seus entes. Para Gilberto Marques, a camisa do Botafogo ajuda a lembrar da dedicação da mãe Maria Telma ao clube, dos gritos e xingamentos quando assistia aos jogos e do quanto gostava de futebol. Jogava bola com a mesma garra que criou os filhos sozinha por ter se tornado viúva precocemente.

— Ela faleceu em 2020, de Covid. Não pudemos ter uma despedida. Foi ruim. Então meu irmão e eu optamos por manter a memória dela ali — contou Gilberto, que herdou as calopsitas da mãe e batizadas de... Seedorf e Loco Abreu.

O futebol se destaca até mesmo entre os famosos. A urna do ator Pedro Paulo Rangel é acompanhada por uma camisa do Fluminense. A do funkeiro Mc Marcinho, por uma do Flamengo. Já no nicho do sambista Nelson Sargento há uma fotografia sua com as cores do Vasco.

Mas nem todos são lembrados pelo clube do coração. Há quem opte pelo frasco do perfume favorito do morto, pelos óculos usados ao longo da vida ou as cores da escola de samba.

— Não é apenas uma sala onde você guarda as urnas. É um lugar que se transforma um memorial. As pessoas chegam e perpetuam a imagem daquele ente querido — explica Karla Belchioir, CEO do cemitério da Penitência.

Chama a atenção a existência de nichos que já contam com fotos e objetos, mas que ainda não receberam a urna. Elas seguem na casa dos familiares, a espera de que estejam dispostos a abrir mão do convívio. Isso porque o columbário, no fundo, diz mais sobre os vivos e como eles se relacionam com os que partiram.

— O Vasco me lembra meu pai. Toda vez que vejo o jogo, que leio uma notícia, é como se ele estivesse ao meu lado — afirma Rose, emocionada.

Fonte: O Globo